Depois de uma ausência dos palcos, Manel Cruz deu um concerto no Silo Auto do Porto, a 29 de novembro do ano passado. Não com os Pluto, nem com os Supernada, e muito menos com os Ornatos Violeta. No cartaz do evento era mesmo o seu nome que estava pintado, o que suscitou curiosidade extra: Manel Cruz a solo? O que é isso?

Quem não viu, terá nova oportunidade na tarde de sábado, 6 de junho, no festival NOS Primavera Sound, no Porto. Com algumas diferenças. Na altura, o concerto organizado pela Câmara Municipal do Porto anunciava que o público ia poder ouvir canções de toda a carreira do homem que fundou os Ornatos Violeta, os Pluto e os Supernada. Mas no Silo Auto só se ouviram composições novas e algumas do projeto Foge Foge Bandido. Não é isso que se vai passar desta vez. Durante cerca de 50 minutos, o músico vai apresentar-se enquanto Estação de Serviço. “Uma paragem para pôr gasolina, enquanto se vê no mapa o caminho que se fez e para onde se quer ir”, escreve a editora Turbina.“Um olhar para o passado e para o que eu fiz, para o presente e para o futuro”, disse Manel Cruz ao Observador.

A entrevista foi feita no quinto andar de um prédio na Rua de Santa Catarina, no coração do Porto. É lá que fica o atelier onde passa a maior parte dos dias e onde faz trabalhos de artes gráficas com a mulher, Susana. Ao lado de um quadro terminado, e outro por acabar há anos, estava a capa do próximo disco do grupo Retimbrar, que o antigo vocalista dos Ornatos Violeta tinha acabado de colar, com a ajuda de António Serginho e Afonso Passos, dois dos membros da banda.

Quando em novembro deu o concerto no Silo Auto, em que no cartaz se apresentava como “Manel Cruz”, toda a gente ficou na expetativa: Manel Cruz a solo? O que é isso?

Não é Manel Cruz a solo porque tenho mais três gajos comigo [risos]. Nunca pensei tocar a solo porque para mim a música tem uma parte sozinha que me agrada muito, que é a composição, estar a brincar no estúdio e tudo mais, mas tocar sozinho não me cativa muito. Sei lá. Imagino que para tocar sozinho tinha de pensar nas coisas de outra maneira mas também precisava de uma grande motivação que era apetecer-me tocar sozinho. E, para mim, tocar é sinónimo de partilha com os outros.

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Mas o nome com que se apresenta no cartaz do NOS Primavera Sound é Manel Cruz.

Isso é porque são as minhas músicas, mas o nome do projeto é Estação de Serviço. Gosto sempre de arranjar um nome, um conceito. Para mim a música é sempre isso, mas depois até por uma questão comercial preferem usar o nome. É como as fotografias. Eu enviei para os jornais uma fotografia de promoção que eu acho que está muito fixe, só que não tem cabeças! Foi uma montagem que fiz connosco e do ponto de vista artístico agrada-me muito. Mas nos jornais ninguém usa porque não tem caras. Parece evidente, mas não é porque a tua imagem é uma extensão do teu trabalho artístico. E não há essa cultura. A cultura que existe é a de aproveitar o máximo possível a imagem das pessoas, a visibilidade, para vender o máximo. Não é que esteja errado, é preciso haver coisas comerciais, o que eu gosto é da diversidade.

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No atelier, Manel Cruz aproveita para pintar. À direita, um quadro inacabado. ©Sara Otto Coelho

Com quem é que vai partilhar o palco então, e o que vão tocar?

Com o Nico Tricot, o António Serginho e o Eduardo Silva. Vamos tocar algumas músicas novas que eu fui fazendo sem ter projeto para elas e que não estão editadas, e músicas mais antigas de Pluto, Supernada e Foge Foge Bandido. Fazemos versões diferentes, estou a curtir a ideia de, sempre que dou uma fornada de concertos, fazer coisas diferentes com as músicas, tanto podem ser tocadas rapidíssimo como mais lento, ou só com uma guitarra. Dá para fazer montes de coisas e isso é muito fixe. Nas das bandas decidimos uma formação muito simples, só com banjo, guitarra, bateria, baixo e vozes. E com isso decidimos que tínhamos de tocar tudo, o que foi um desafio porreiro, que te obriga a encarar as músicas de uma maneira muito essencial. É este o conceito base deste projeto. Só não vou tocar Ornatos.

Porquê excluir Ornatos Violeta?

Experimentámos! Mas foi mais estranho. Também existem há mais tempo, têm uma identidade muito marcada. Eu pensei em termos do espetáculo. Nós fomos fazendo várias músicas e elas foram vivendo em comunhão. Outras também saíram sem ser dos Ornatos, como o “Ovo”, que é uma música recente que eu tenho. O espetáculo do Primavera Sound vai ser às cinco e meia da tarde, solinho… Pá, tens de imaginar que músicas é que pões lá. É quase como faz um DJ, podes pensar dessa maneira. E as dos Ornatos não colavam com as outras. Não quer dizer que ficassem mal, e até gostei das versões que fizémos, mas não encaixavam no universo do concerto.

Vai sair algum disco dos Estação de Serviço no futuro?

Não, o projeto é um olhar para o passado e para o que eu fiz, para o presente e para o futuro. Foi para fazer o balanço num momento em que eu não tenho propriamente um disco e quero e preciso de tocar, e pensei: “O que é que posso fazer? Não vou fazer uma coisa só porque preciso de trabalhar e ganhar o meu, que preciso, mas não vou fazer só por causa disso, tenho de arranjar algo que me dê pica!”. E a pica veio de torcer essas músicas, mexer-lhes e brincar com elas. Estação de Serviço é isso, um projeto com prazo limitado. Em setembro acaba.

E depois, já sabe o que vai fazer?

Sim, também estamos, os mesmos, a fazer coisas novas enquanto banda. Que é se calhar o que gosto mais de fazer, compôr em banda. Vai ser um projeto criado de raiz.

Então vai criar uma nova banda?

Espero que sim [risos].

Vai aproveitar para ver outras bandas no Primavera Sound?

Já me falaram de algumas coisas. Disseram-me que iam os Pharmakon, cena pesadíssima que tenho curiosidade em ver ao vivo como é, Patti Smith… Mas ainda não decidi nada.

Que bandas é que tem andado a ouvir?

Muitas coisas que me aconselham, de que os amigos falam… Tenho andado a ouvir The National, o último do D’Angelo, chamado Black Messiah, sei lá… [vira-se para o computador e mostra a playlist] Breastfist, Cody Chesnutt, o Daniel Johnston que eu curto como o carago, adoro os discos do David Lynch, Matthew E. White é muito bom, Dead Combo, comprei agora o dos Plus Ultra que saiu agora… Stephen Malkmus, que já conheço há muito tempo e tenho andado a ouvir… O Serginho também me mostrou agora Fela Kuti e ando a curtir… Vou conhecendo e algumas coisas vão ficando.

No caminho para a entrevista passou a “Coisas” dos Ornatos Violeta na rádio, algo que acontece com frequência. Que idade têm os seus filhos? Se ouvirem na rádio já têm noção de que é o pai que está a cantar?

O mais velho tem oito anos e os mais novos seis. Durante muito tempo não lhes mostrei nada do que fazia. Nada, nada. A dada altura foi inevitável e eles já iam ver os concertos. E eu gostava que eles fossem, é a profissão do pai.

Foram aos concertos de regresso dos Ornatos Violeta nos Coliseus, em 2012?

Sim, estavam lá a brincar com os carrinhos [risos]. Mas não lhes mostrava porque achava que um dia quando crescessem iam acabar por ouvir e ver. O que escondi mais foi a parte mediática, que acho que tem o valor que tem – que não é muitas vezes o valor que lhe dão – mas não queria que isso fosse confuso para eles, não é? Irem à internet e terem lá o pai mas a mãe não. Pá, não interessa nada isso, mas tinha receio que fosse confuso. Preferi que o processo fosse o mais natural e normal possível, sem esses filmes que eu acho que a sociedade depois já lhes vai meter na cabeça. E as músicas, também não tive essa… O pai tinha uma profissão que era ser músico, pronto. Agora começaram a ouvir e a ir ver coisas.

E o que é que eles dizem?

Há uma que eles gostam muito, que é a do “Ovo”. “Ó pai, mostra aquela!”. Depois também vêem o vídeo com os pintainhos e tal. Mostramos-lhes muita música. De tudo, não só rock.

Daqui a uns anos vão entrar na adolescência, e é normalmente nessa fase que se começa a ouvir Ornatos Violeta. Já imaginou se eles ficam fãs da banda?

[risos] Por acaso já me passou pela cabeça. É estranho… Não sei se o facto de eu ser o pai também lhes vai tirar aquela frescura de conhecer uma voz, conhecer uma cena. Nessa altura já devem estar fartos de me ouvir!

Há pouco disse que a fama tem o valor que tem, e que esse não é muitas vezes o valor que lhe dão. O Manel nem sequer tem Facebook. A parte mediática incomoda-o?

Se calhar um bocadinho. O Facebook também tem a ver com o facto de eu não ter vida para isso. Às vezes passam-se tempos em que nem leio os mails, porque eu preciso de tempo. O tempo soa-me sempre a pouco, entende? E mais do que arrogância ou humildade ou seja lá o que for, é não me apetecer. Não me apetece! É fixe por um lado, porque uma pessoa tem a vaidade, a vontade de que as coisas sejam reconhecidas. Gosto de ter uma entrevista fixe, que saia um artigo sobre aquilo que eu faço, isso gosto. Há a pertinência de sair um artigo ou outro, mas o que eu acho é que muitas vezes há informação a mais. Há vida social a mais nesse aspecto. E um artista pode ter essa parte mais mediática do que tem um cirurgião ou alguém que esteja nos bastidores, mas precisa igualmente do tempo para trabalhar e para fazer as coisas que nalguns momentos os jornalistas vão gostar de escrever. Eu prefiro trabalhar, engordar o porco, matar o porco, tirar as consteletas e então depois fazemos o jantar e dá-se as entrevistas.

Se me incomoda? Há o lado da nossa vaidade inerente de gostarmos do reconhecimento, mas eu acho que é diferente ser reconhecido e ser famoso. Tudo o que nos distancia muito dos outros deixa-nos mais sozinhos no sentido em que tu não és aquilo. Parece que estás a usufruir de mais do que aquilo a que tens direito. E não és mais que os outros, és igualzinho! Por que razão é que te fartas de aparecer? A tua música sim! Vende o que vender, as pessoas vão, gostam da música e, quantas mais forem, porreiro porque isso depende do mérito do teu trabalho. A parte mediática, visual da pessoa, eu acho que é o menos interessante e acho que já me… Agora não porque já me tento alhear dessa questão, não estou com as pessoas e a pensar se elas me conhecem ou não, mas já houve alturas em que ficava na dúvida se me estavam a conhecer e a gostar de mim por aquilo que eu lhes estava a mostrar, ou porque já me conheciam. O que é um bocado injusto porque eu não as conhecia a elas. E era fixe quando percebia que não me conheciam de lado nenhum e havia empatia sem ter a ver com uma admiração. Que também é porreiro, não estou a cuspir no prato, se alguém vem ter contigo a dizer que gosta muito da tua música é fixe, mas lá está, são pessoas que conhecem a tua música e vão-te conhecer na rua porque foram ao teu concerto. Não é porque te viram na televisão. Essa parte chateia-me um bocado e eu tento evitar. As coisas podiam ser direcionadas mais ao trabalho das pessoas e menos às pessoas.

Foi por isso que escolheu uma fotografia sem cabeças para promover os Estação de Serviço?

[risos] Isso foi uma invenção sua agora mas que é gira, gosto da ideia. Isto inicialmente iam ser fotos com balões, fotografámos e eu depois ia pôr as caras distorcidas nos balões. Só que quando vi no Photoshop sem cabeças deu-me vontade de rir. Somos nós, só que não existe comunicação nenhuma, há um silêncio ali em cima que eu achei mesmo fixe. Mas é engraçado isso que está a dizer. É uma antítese da foto promocional. Até porque depois enviámos e o pessoal respondia a perguntar se podia ir buscar fotografias ao passado. Eu já sabia, mas que se lixe. Foi na mesma assim. É que mesmo do ponto de vista do negócio ninguém me garante que a nossa foto sem cabeças no jornal não chama mais a atenção do que ter as nossas caras.

Numa entrevista dada ao Diário de Notícias, em 2012, pouco antes dos sete concertos dos Ornatos Violeta nos Coliseus, disse que a única hipótese de as pessoas deixarem de perguntar quando é que os Ornatos voltavam era se isso acontecesse mesmo. E que, após o regresso, poderiam os cinco seguir com as vossas vidas e projetos. Resultou? Os fãs deixaram de pedir o regresso ao ativo da banda?

Sim, deixaram. Na altura não foi só naquela de “não me chateiem mais”, acabou mesmo por ser surpreendente para mim a forma como correu. Eu tinha muito medo de fazer aquilo. As coisas quando estão bem no sítio delas, não tenho angústias de aproveitar o que correu bem para voltar a fazer. Para mim é sempre: “agora é que vai ser!”. E estava com receio de saber como é que eu ia interpretar agora, com os 30 e muitos anos que tinha, músicas que comecei a fazer com 15. Nem queria fazer da mesma maneira. Mas os Ornatos eram uma entidade tão vincada, tão assente na memória das pessoas que quem era eu para destruir aquilo? Já deixou de ser meu. E acabou por não ser assim tão difícil. Às vezes basta deixar de cantares da maneira como cantas, que depois quando eu ia ouvir… Que diferença! Não fui ouvir como é que cantava antes. Comecei a cantar as músicas naturalmente como canto agora e de facto quando vou ouvir acho que é muito diferente. Bastou o estarmos todos diferentes, todos bem uns com os outros a curtir, sentir também que não tínhamos aquela ansiedade da juventude que tínhamos na altura, que é fixe e muito energética, mas agora tínhamos outras coisas como a maturidade, a calma que vem com a idade, a cena para fazer a música soar de uma maneira que se calhar nunca soou nalguns aspetos. Depois de termos começado a ensaiar apercebi-me que havia músicas que me soaram como nunca antes. Outras de que não gostava resolvi-as. Ao mudá-las ligeiramente percebi: “andei tanto tempo a odiar esta merda e afinal era só resolver isto”. Essas coisas aconteceram. E foi muito mais fixe do que eu imaginava. Ou do que eu temia.

Divertiu-se?

Acho que me diverti como não me divertia nos últimos anos dos Ornatos. Porque éramos putos, já havia muita coisa em causa, já havia muita gente a ganhar dinheiro, já havia muito compromisso, já não estávamos assim [entrelaça os dedos] na essência. Tudo aquilo já era muito mais do que só nós. E ali éramos nós com toda a gente numa festa de comunhão, desprendidos e descomprometidos em relação a muitas coisas. Sabíamos que era aquela festa e não mais. Valeu a pena. Mesmo.