Tal como “Persépolis”, de Marjane Satrapi (2007), e “A Valsa com Bashir” (2008), de Ari Folman, “Flee — A Fuga”, do dinamarquês Jonas Poher Rasmussen, é uma animação documental apontada a um público adulto, assente numa história pessoal e familiar real, e com atualidade social e política. O filme tem um outro ponto de contacto com o de Folman: uma dimensão confessional, catártica, em que a evocação do passado recente serve para fazer luz sobre o presente e libertar o protagonista de um peso que arrastava consigo e não partilhava com ninguém.
“Flee — A Fuga” é a história de um homem que mentiu para salvar a vida e a família. O protagonista, Amin (o nome é mudado para salvaguardar o anonimato), é um amigo de juventude do realizador (que o filma e entrevista enquanto ele lhe conta a sua odisseia), um afegão homossexual que fugiu do seu país em 1989, após os talibãs terem derrotado o ocupante soviético e tomado o poder. Amin, a mãe, um dos irmãos mais velhos (o outro vivia na Suécia há alguns anos) e as duas irmãs, seguiram, ironicamente, para Moscovo, então a receber em cheio o choque do fim do comunismo e da dissolução da União Soviética. (O pai, piloto da Força Aérea, havia sido preso e morto ainda pelo governo pró-comunista de Mohammad Najibulah).
[Veja o “trailer” de “Flee-A Fuga”:]
Após ter passado por uma série de vicissitudes e perigos, juntamente com o resto da família, e das duas raparigas terem sido enviadas para a Suécia viver com o irmão mais velho, Amin, então ainda adolescente, conseguiu fugir para a Dinamarca. Mas teve que deixar a mãe e o irmão mais velho em Moscovo, já que o dinheiro só dava para pagar um só passe ao traficante que o levou. Lá chegado, no aeroporto, Amin teve que mentir e dizer que era órfão para obter asilo político. Após reencontrar o irmão e as irmãs na Suécia, instalou-se finalmente em Copenhaga e aí construiu a sua vida profissional, pessoal e sentimental.
[Veja uma entrevista com o realizador Jonas Poher Rasmussen:]
Mas esteve durante anos vergado ao fardo da culpa por haver abandonado a mãe e o irmão, e a ter que mentir e omitir factos da sua vida anterior a autoridades, amigos e namorado; e teve que aprender a encarar e interiorizar a sua homossexualidade, considerada uma doença no seu país e na sua cultura (neste aspeto, o filme não faz proselitismo nem entra pelo caminho da vitimização ou da retórica militante, já que a família de Amin aceita as suas tendências sexuais e o tema é tratado sem crispação e até com algum humor, sobretudo nos “flashbacks”, quando, adolescente e ainda no Afeganistão, ele nota que tem uma forma particular de ser fã de Jean-Claude Van Damme).
[Veja uma entrevista com o produtor e o protagonista:]
Poher Rasmussen recorre aqui e ali a imagens de arquivo, e mescla animação digital e tradicional num registo quase sempre realista, e esteticamente sóbrio. E que se revela formal e dramaticamente mais eficaz nas sequências de pesadelo em que Amin e a família tentam fugir clandestinamente para a Noruega, em pleno inverno (eles são refugiados de guerra legítimos e não migrantes ilegais), na companhia de outros afegãos fugidos aos talibãs, primeiro fechados num contentor num navio de carga, e depois empilhados no porão de um pequeno e instável barco de pesca, acabando detidos em condições miseráveis na Estónia e devolvidos à URSS.
Aquilo que teria sido mais caro e mais trabalhoso e problemático de realizar em imagem real, é feito e transmitido pela imagem animada com o mesmo impacto emocional, complexidade psicológica e validade no contar, e a história transita entre passado e presente, e o geral e o íntimo, sem irregularidades formais, estéticas ou narrativas. Após ser distinguido em Sundance e ganhar os Prémios Europeus de Cinema em Documentário e Animação, “Flee — A Fuga” foi o primeiro filme animado a ser nomeado em simultâneo aos Óscares de Melhor Longa — Metragem Animada, Filme Internacional e Documentário de Longa-Metragem. E vem enriquecer a animação de fundo documental e autobiográfico.