O Parlamento discute, esta sexta-feira, na generalidade, o projeto de lei assinado pelos partidos da maioria, que propõe a introdução de taxas moderadoras na interrupção voluntária da gravidez (IVG). O Observador foi tentar perceber que valor poderá ter esta taxa, em que momento poderá ser cobrada e a que mulheres. Uma das conclusões a que chegou foi a de que a taxa moderadora apenas poderá ser aplicada às consultas de especialidade que sucedem a decisão e, mesmo assim, muitas mulheres continuarão isentas. O projeto vai baixar à especialidade sem votação, o que na prática quer dizer que fica aprovado na generalidade. O ministro da saúde, Paulo Macedo, já disse que esta matéria “não é prioritária”.

“O PSD e o CDS-PP entendem que, por uma questão de justiça e de equidade no acesso aos serviços e aos cuidados de saúde, não faz sentido diferenciar positivamente a mulher que interrompe a gravidez por opção, face a todos os outros cidadãos (…). Entendemos que as mulheres que interrompem a gravidez por opção devem estar sujeitas aos mesmos critérios que todos os outros cidadãos”, lê-se no projeto de lei que deu entrada no Parlamento, na semana passada.

A deputada do CDS-PP, Teresa Caeiro, clarificou ao Observador que as consultas prévias não serão taxadas. Contudo, questionada sobre o montante da futura taxa moderadora e sobre que atos médicos serão abrangidos, Teresa Caeiro limitou-se a dizer que “não se pode saber exatamente qual a taxa moderadora a aplicar pois é uma questão técnica, que não cabe ao Parlamento decidir”. “Terá de ser a Direção Geral de Saúde (DGS) a pronunciar-se”, acrescentou a deputada, que acabou por arriscar um valor de “20 ou 30 euros”.

Mas a verdade é que o quadro legal existente – referente às taxas moderadoras – permite já antecipar o desfecho deste projeto de lei. É que no Serviço Nacional de Saúde (SNS), nem medicamentos administrados nos cuidados de saúde, nem cirurgias são taxados, e se o objetivo do PSD e do CDS-PP é sujeitar as mulheres que decidem interromper a gravidez aos mesmos critérios dos outros cidadãos, sobra apenas a possibilidade de taxar consultas e os meios complementares de diagnóstico (exames e análises) necessários após a decisão estar tomada.

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Acresce ainda que, no caso em particular da IVG, nem todas as consultas poderão ser taxadas. É o que acontece, por exemplo, com a consulta prévia – a consulta obrigatória anterior à realização da interrupção da gravidez, na qual a mulher é informada sobre os diferentes métodos de interrupção, questionada sobre a sua história clínica, esclarecida sobre os métodos de contraceção que poderá adotar e onde lhe é entregue o consentimento livre e esclarecido. Aqui, a mulher ainda é considerada grávida e, por essa condição, está isenta do pagamento de taxas moderadoras. Tanto na consulta, como na realização da ecografia para determinar o tempo de gestação e outras análises que sejam necessárias.

Além desta consulta, também continuará isenta na consulta de planeamento familiar que se segue à da interrupção da gravidez. Já para não falar dos casos em que a própria consulta de interrupção é também uma consulta de planeamento familiar. Nesse caso, está igualmente isenta.

Mas admitindo que a consulta da interrupção não é uma consulta de planeamento familiar, e sim de especialidade, então é nessa altura que a mulher será chamada a pagar uma taxa moderadora que deverá ser de 7,75 euros, que é o custo para o utente de qualquer outra consulta de especialidade num qualquer hospital. No caso da interrupção ser medicamentosa, como são a maioria no SNS – 96, 4% dos casos em 2014 -, é necessária uma consulta médica de controlo 15 dias depois da interrupção, que também deverá ser paga ao mesmo valor. Portanto, no limite, a mulher que interrompe a gravidez, por opção, e por via de medicamentos, pagará 15 euros por duas consultas de especialidade.

Mulheres poderão continuar isentas por vários motivos

Além dos atos médicos que estão, por natureza, isentos, há ainda mulheres que continuarão isentas de qualquer taxa moderadora, por preencherem um qualquer outro critério de isenção. Ao Observador, o secretário de Estado adjunto do ministro da saúde, Leal da Costa, atestou que “a enorme maioria das pessoas que recorrem à IVG no setor público estão isentas”.

Só para ter uma noção, segundo o último relatório de registo de interrupções da gravidez, com dados relativos a 2014, 21,57% das mulheres que abortaram por opção estavam desempregadas (se o subsídio de desemprego for inferior a 628,83€ preenchem um dos critérios de isenção), 11% tinham menos de 19 anos (as isenções alargaram-se recentemente até aos 18 anos), 18% eram trabalhadoras não qualificadas, normalmente com salários mais baixos. Lembre-se que, por baixos rendimentos (agregado familiar com rendimentos inferiores a 1,5 vezes o Indexante dos Apoios Sociais, o equivalente a 628,83 euros, por mês), há mais de três milhões de portugueses isentos de taxas moderadoras no SNS.

“A nossa estimativa é que muito mais de metade fique isenta”, admitiu Teresa Caeiro, insistindo que “não há justificação para não haver taxas neste procedimento”.

PSD não queria taxas moderadoras em 2012

A introdução de taxas moderadoras na IVG é, de resto, uma pretensão antiga do CDS-PP. Frise-se, porém, que, em 2012, o PSD se demarcava desta ideia. Na altura, o deputado social-democrata Miguel Santos dizia que o seu partido não acompanharia o CDS-PP numa iniciativa legislativa somente para aplicação de taxas na IVG. “Aplicar taxas moderadoras pura e simplesmente à IVG não iremos acompanhar”, disse Miguel Santos à Lusa, em junho de 2012. Três anos depois, os dois partidos do arco da governação avançam juntos neste projeto de lei que baixará automaticamente à especialidade, sem precisar sequer de ser votado esta sexta-feira.

Questionado sobre o que levou à mudança de posição do PSD, Miguel Santos respondeu ao Observador que “foram produzidos um conjunto de relatórios técnicos que não existiam”. “A nossa posição mudou também porque este projeto – que fui eu que escrevi – considera as taxas moderadoras só para o ato cirúrgico ou medicamentoso em causa. Antigamente havia uma perspetiva de aplicação de taxas moderadoras a tudo”, acrescentou o deputado, que acabou por esclarecer que por ato cirúrgico ou medicamentoso se deve entender a consulta em que a mulher avança com um ou outro método de interrupção da gravidez.

Também na altura “tínhamos atenção às interrupções voluntárias da gravidez reincidentes, que desvirtuavam a aplicação da lei e que eram utilizadas como método contracetivo, mas não encontrámos uma solução técnico-legal adequada para corrigir essa situação. Era preciso constituir um banco de dados de acesso a todos os serviços de país para aplicar essa medida”, completou Miguel Santos.

“A interrupção da gravidez não é um método contracetivo”

Lisa Ferreira Vicente, chefe da Divisão de Saúde Sexual, Reprodutiva, Infantil e Juvenil, da Direção-geral de Saúde (DGS) não vê “nenhuma razão para estar agora a mudar as taxas moderadoras”. Ao Observador, Lisa Vicente defendeu que “a interrupção da gravidez não é um método contracetivo” e para sustentar a afirmação citou os dados das revisões apresentadas pelos serviços que fazem interrupções: “Cerca de ​metade das mulheres que interrompem a gravidez por opção engravidou porque a contraceção falhou e outra metade não fazia contraceção”.​ Aliás, olhando para os indicadores de 2014, só 4,65% das mulheres que fizeram uma IVG não escolheram qualquer método contracetivo na consulta de planeamento familiar seguinte.

A responsável da DGS fez ainda questão de enquadrar toda esta questão da com os números mais recentes sobre a interrupção voluntária da gravidez.

“Sete em 1.000 mulheres em idade fértil interrompem a gravidez. Estamos a falar de 0,7% das mulheres em idade fértil”, colocou em perspetiva Lisa Vicente.

Olhando para os dados da DGS percebe-se ainda que mais de 70% das 16 mil mulheres que interromperam voluntariamente a gravidez, em 2014, nunca tinha feito uma outra interrupção anteriormente. Fazendo a leitura contrária: 28,4% já tinha abortado antes. Mas desse conjunto de mulheres não é possível saber quantas o fizeram por opção ou por um qualquer outro motivo previsto na lei – violação, perigo de morte ou grave lesão para a mulher, ou grave doença ou malformação congénita do nascituro – nem é possível perceber em que altura da vida o fizeram, pelo que não é possível perceber a dimensão do “problema” da reincidência sublinhado pelo deputado do PSD e outros defensores da introdução de taxas moderadoras na IVG.

A verdade é que nunca se registou um número tão baixo de interrupções voluntárias da gravidez como em 2014 – 16.039. Em 2008, no ano seguinte ao referendo à despenalização do aborto em Portugal, fizeram-se mais dois mil abortos por opção da mulher (18.014), um número que foi subindo até 2011 (19.921), e veio caindo desde então. A grande maioria (70,2%) das IVG são feitas no setor público e são realizadas por via medicamentosa (96,4%), sendo que no setor privado se continua a recorrer mais à cirurgia (92,4%).

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O argumento do aborto ilegal para dizer “não” às taxas

Mas se há defensores, também há opositores à ideia de introduzir uma taxa moderadora. Quando, no final da semana passada, o projeto de lei do PSD e do CDS-PP deu entrada no Parlamento e ficou agendada a discussão para esta sexta-feira, multiplicaram-se as reações. Do lado do Partido Socialista, várias vozes se pronunciaram contra. Isabel Moreira, por exemplo, condenou a “selvajaria moral” da introdução de taxas moderadoras na IVG. Pelo Bloco de Esquerda, Catarina Martins disse que a proposta não “tem pés nem cabeça” e, do lado do PCP, a vice-presidente da bancada, Paula Santos, recusou o fim da isenção, que considerou um “retrocesso nos direitos sexuais e reprodutivos”.

Também a Secção Regional do Sul da Ordem dos Médicos emitiu um parecer, onde concluiu que “o referendo de abril de 2007 trouxe a possibilidade de IVG em instituições oficiais, devidamente creditadas e com assistência médica e apoio assistencial de outros profissionais de saúde”, permitindo que a mortalidade e a morbilidade materna perinatal se tivesse tornado “praticamente inexistente”.

Por isso mesmo, “as consultas de IVG devem ser gratuitas e de livre acesso, garantindo assim que ninguém será discriminado ou atrasará a sua ida à consulta por motivos económicos”, defendeu a secção da OM.

Já a Sociedade Portuguesa da Contraceção lembrou, em comunicado, que “toda a atividade no âmbito da saúde sexual e reprodutiva está isenta de taxa moderadora” e que “aplicar taxa moderadora à IVG, para além de levantar múltiplos problemas na sua concretização, poderá levar a um desvio de mulheres novamente para o aborto clandestino e não seguro perdendo-se também a oportunidade de intervir no aconselhamento contracetivo”.

Lisa Vicente sublinhou igualmente que “é muitíssimo importante que o valor da taxa seja bem definido para que não seja mais vantajoso as mulheres fazerem ilegalmente a interrupção”.

Para Teresa Caeiro, “o argumento da clandestinidade não colhe”. “A clandestinidade ou mesmo a semi-clandestinidade serão sempre mais caras do que a legalidade”, afirmou. Também Luís Graça, diretor do serviço de obstetrícia do Centro Hospitalar Lisboa Norte (Santa Maria e Pulido Valente), defende a introdução de uma taxa moderadora “moralizadora”, mas logo a seguir afirmou que “não é por causa de uma taxa moderadora que a mulher vai deixar de fazer a IVG”.

Além do projeto da maioria, serão também analisadas, na sexta-feira, propostas da iniciativa do grupo de cidadãos “Pelo Direito a Nascer”, como a de tornar obrigatório que a mulher veja e assine a ecografia antes de prosseguir com a interrupção, que não foi incorporada neste projeto de lei do PSD e CDS-PP.

O ministro da Saúde já teve oportunidade de reagir a este projeto de lei, dizendo que o respeita, ainda que não seja “uma prioridade” para o Governo introduzir taxas moderadoras neste ato médico. Na mesma linha, o secretário de Estado Leal da Costa acrescentou, ao Observador, que “se fosse prioritário mudar o regime de isenção na IVG já o teríamos feito, como fizemos com os menores de 18 anos e com os desempregados”. “Mas defendemos que devem ser as pessoas a ter isenção e não os atos [médicos]. Por isso, nunca houve tantos isentos como hoje. Mais de metade dos utentes do SNS estão isentos”, rematou Leal da Costa.