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A história do Teatro Nacional de São João começou a ser escrita bem antes de março de 1920, altura em que inaugurou o edifício na Praça Batalha, no Porto, tal como hoje o conhecemos. A primeira construção surgiu quando a prima-dona italiana Giuntini, na estreia do antigo Teatro do Largo do Corpo da Guarda, em maio de 1760, lamentou ao governador da cidade, Francisco de Almada e Mendonça, as más condições de acústica do espaço e o modesto tamanho do palco.
Francisco de Almada, perdido de amores por Giuntini, prometeu construir um teatro lírico digno da sua grandiosidade. Graças à contribuição financeira das gentes do Porto, nasceu o Real Teatro São João, inaugurado a 13 de maio de 1798, cujo nome é uma homenagem ao rei D. João VI. Vicente Mazoneschi, cenógrafo italiano do Teatro Nacional de São Carlos, em Lisboa, executou o plano segundo o modelo dos teatros italianos e a obra contou também com a intervenção pontual do pintor António Domingos Sequeira.
“A primeira construção ficou associada ao dinamismo de Francisco de Almada, conhecido como ‘Marquês de Pombal do Norte do Reino’, figura decisiva no desenvolvimento do Porto oitocentista. Esta iniciativa representou um exemplo de vontade, do orgulho e da capacidade empreendedora da burguesia da época. Ao longo de décadas este foi um lugar de paixões e representações, bem presentes na obra de Camilo Castelo Branco. Algumas peças do escritor foram ali, inclusive, levadas a cena”, escreve Eduardo Paz Barroso no livro “Teatro Nacional S. João: Um Renascimento”.
Na noite de 11 de abril de 1908, um incêndio destrói completamente o edifício. “Na época eram comuns os incêndios em casas deste género. O teatro tinha cortinas, muita madeira e era iluminado a azeite”, explica ao Observador o jornalista e investigador Germano Silva. “Tratava-se de um teatro lírico importante na cidade, era um símbolo máximo de cultura, se fosse destruído e nunca mais se reerguesse seria uma grande perda”, acrescenta.
É o arquiteto portuense José Marques da Silva, mais tarde também responsável pela Estação de S. Bento, que ganha o concurso para a reconstrução do teatro. Inspira-se nos padrões italianos e franceses na decoração da sala e ao optar por substituir a pedra pelo cimento e betão armado tornou-se revolucionário. Muitas das pedras do antigo teatro, que integravam a parte velha da muralha fernandina, foram utilizadas na obra e ainda hoje são visíveis numa das paredes junto ao palco.
A empreitada não respeitou a planta urbana e a ordem arquitetónica da cidade, nos anos seguintes, foi a própria Praça da Batalha que ‘rodou’ para acomodar o espaço, tendo inclusive sido demolida uma capela porque tapava a fachada do edifício. O projeto de Marques da Silva demorou vários anos a estar concluído devido a contratempos como a revolução republicana, a primeira grande guerra, epidemias, dificuldades nas importações e problemas burocráticos.
Depois das declamações e da ópera, a partir da década de 30, o edifício serviu quase exclusivamente para exibições cinematográficas, sendo mais tarde, na década de 60, também palco de peças teatrais.
Enquanto a cidade dormia, gravou-se o hino do Futebol Clube do Porto
“Lembro-me como se fosse hoje, foi um sonho realizado”, é assim que Maria Amélia Canossa recorda a noite em que, aos 18 anos, gravou o hino oficial do Futebol Clube do Porto no Teatro Nacional de S. João. A sua ligação ao clube vem desde cedo. “Nasci numa família portista, o meu pai achava que eu iria ser um menino, por isso fui criada como uma maria-rapaz. Aos três anos já ia ao futebol com e ele e com o meu avô”, conta em entrevista ao Observador.
Quando o Estádio das Antas estava em construção, a cantora foi contactada pelo clube azul e branco, que lhe propôs fazer espetáculos para angariação de fundos no Palácio de Cristal. “Disse logo que sim e achei o gesto tão grandioso que merecia um hino. A partir daí, a minha cabeça não parou. Sabia que queria algo forte e emotivo, falei com muitos maestros e quando ouvi os primeiros acordes percebi logo que era este.”
O estádio foi inaugurado em maio de 1952, mas a 31 de março desse mesmo ano a canção, composta por António Figueiredo e Melo, com letra de Heitor Campos Monteiro, foi gravada com pompa e circunstância, após uma sessão de cinema noturno. Em palco estavam apenas a orquestra, dirigida pelo maestro João Calvário, o coral da Igreja do Bonfim, Maria Amélia Canossa e o técnico de som com um gravador pequenino de fita magnética. Apesar da boa acústica da sala, era necessário esperar que a cidade adormecesse para que a gravação ficasse imune de ruídos exteriores. Os trabalhos terminaram pelas cinco da manhã e nessa noite foi também gravada uma marcha para o clube.
“É um hino brilhante, até hoje recebo e-mails e telefonemas de não portistas a dizerem que gostavam que este hino pertencesse ao clube deles, mas também de portistas que ainda ficam arrepiados sempre que o ouvem. Acontece-me o mesmo a mim”, diz aos 87 anos. A apresentação oficial do hino dos portistas aconteceu no Coliseu do Porto, com casa cheia, e a cantora ainda se lembra do que levou vestido. “Ofereceram-me uma camisola como a dos jogadores, não vesti os calções porque naquela altura as mulheres não os podiam usar, então levei uma sala plissada branca.”
“Se não fosse o teatro não viajava tanto. É uma segunda casa”
Jorge Silva chegou ao S. João com 14 anos pela mão do pai que era mestre de obras numa altura em que o teatro ainda funcionava como cinema. Hoje é um dos funcionários mais antigos da casa. “Ele reparava o edifício, as casas de banho, fazia pinturas, tratava das luzes. Começou a trazer-me para o ajudar e para não ir fazer asneiras com más companhias”, conta em entrevista ao Observador.
Entre escadotes e parafusos, Jorge passou a gostar do ofício, trabalhou como piquete a fazer recados para o teatro até atingir a maioridade e assim ter autorização para estar na cabine de projeção. “Lembro-me que alguns filmes eram censurados e que o ‘Oficial e Cavalheiro’ batia recordes.” Em 1998, teve uma proposta da Lusomundo para ir trabalhar para o cinema do NorteShopping, em Matosinhos, o primeiro centro comercial português, mas recusou. “Fui ficando por aqui, não me arrependo.”
Jorge é responsável pela maquinaria do teatro, que considera “motor e o coração” da casa. “Nós preparamos e montamos os cenários para que tudo aconteça. No cinema e na televisão há planos que só focam o que interessa, no teatro está tudo a olho nu. As pessoas quando entram veem os atores, mas por trás há semanas e semanas de muito trabalho.” Depois de saber junto de cada encenador o que é pretendido, o técnico vê os ensaios na plateia para ver o que está ou não a funcionar. Recorda as muitas as diretas que já fez dentro do teatro para cumprir timings, seja para montar um espelho XXL para uma peça infantil ou coordenar várias cordas suspensas no teto. O melhor da sua profissão, garante, é poder viajar em digressão com a companhia.
“Às vezes parecemos os The Rolling Stones com a casa às costas em camiões TIR. Nem sempre é fácil adaptar o cenário a cada sala e cumprir os prazos. É uma grande responsabilidade, mas pensamos sempre que vai correr tudo bem. Uma coisa é certa: se não fosse o teatro não viajava tanto. É uma segunda casa.” Da Roménia ao Brasil, Jorge Silva já pisou muitos palcos, mas garante que o do S. João “é sempre especial”, aos 60 anos não tenciona “arrumar as botas”.
A estreia, a franja e o regresso de Benedita Pereira
Benedita Pereira nasceu no Porto e sempre foi “a palhaça da família”. Os pais detetaram nela algum jeito para a arte de representar e inscreveram-na no Balleteatro – Centro de Formação aos 8 anos, onde tinha aulas regulares de teatro e dança contemporânea. “Apesar de ainda não ter noção de que o meu futuro iria passar por ali, sempre levei aquilo muito a sério”, recorda em entrevista ao Observador.
Em 1998, fez uma audição para peça infanto-juvenil Ubardo, de Luísa Costa Gomes, e foi escolhida. Aos 13 anos, dirigida por Filipe Crawford, estreava-se assim nas tábuas do S. João. “Foi a primeira vez que entrei no teatro nacional, mas nunca mais me esqueço do cheiro a madeira nos corredores e das luzes verde e vermelha que nos permitiam ou não em cena. Estava habituada ao auditório do Balleteatro e lembro-me da imensidão daquele palco.” Para a personagem, que dividia com outra atriz, Benedita teve que decorar pela primeira vez um texto mais realista e fazer algumas mudanças de visual. “Fui obrigada a cortar a franja, o que me traumatizou bastante. Recordo-me que usava duas tranças e um vestido vermelho feito à medida muito idílico”.
Aos 16 anos deixa o Balleteatro e aos 18 muda-se para Lisboa. É na capital que se torna conhecida do grande público, sendo a primeira protagonista da série “Morangos com Açúcar”. Segue depois para Nova Iorque para estudar e trabalhar, mas em 2016 regressa ao ao Teatro Nacional de S. João parar integrar o elenco da peça “Os Últimos Dias da Humanidade”, de Karl Kraus, encenada por Nuno Carinhas e Nuno M. Cardoso. “Voltar ali foi quase um relâmpago de memórias. O cheiro continua o mesmo, as senhoras do guarda roupa eram as mesmas e lembravam-se de mim, até me mostraram o vestido vermelho que usei quando era miúda”, conta.
Se por um lado encarou o momento como um “regressar a casa”, por outro sentiu-se uma “outsider” no elenco por não conhecer ninguém. Esteve um mês em cena e fez “amigos para a vida”. “Antigamente considerava impossível ficar no Porto a trabalhar como atriz, hoje não.” Por estar mais longe do mercado televisivo, e de tudo o que o rodeia, a atriz considera que no Porto “há mais organização, as pessoas estão mais focadas e têm mais tempo para fazer teatro (…) nem sempre é fácil conciliar as duas coisas, o teatro paga mal, é difícil gerir e conciliar tudo isso.”
Ainda este ano, Benedita Pereira promete regressar ao palco do Teatro Nacional de São João para uma peça, ainda sem título, encenada por João Cardoso e Nuno Carinhas. “Farei comédia, que é muito a minha praia. Acho que talvez por isso se lembraram de mim.”
“Um espectador assíduo? O ministro Augusto Santos Silva”
Fernando Camecelha é frente de casa no teatro há 16 anos. “Sou natural de Lisboa, trabalhava na área de produção e candidatei-me a esta vaga. Acabei por ficar pelo Porto”, explica em entrevista ao Observador. A primeira memória que tem do S. João é de ver a peça “Os Gigantes da Montanha”, de Luigi Pindarello, na plateia onde hoje senta as pessoas. Fernando é responsável pela área de acolhimento ao público, do bar às bilheteiras, passando pela entrega de programas. “Vejo sempre os ensaios gerais, todos os espetáculos têm a sua especificidade, muitos deles interferem na zona pública, nas entradas e saídas de atores, tenho de estar informado.”
Já conhece os cantos à casa e todas as caras que a visitam, sabe que há mais mulheres do que homens a ver teatro e que durante a semana são os jovens estudantes que mais aderem à cultura. “O ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, e a mulher são dos nossos espetadores mais assíduos, vêm várias vezes por mês, usufruem bastante.”
São muitas as histórias e as peripécias que tem para contar. Uma delas não presenciou, contaram-lhe, mas ficou na sua memória para sempre. “Quando isto ainda era cinema, o pai de uma pessoa bastante conhecida, que era um resistente, foi avisado, a meio de um espetáculo, por um arrumador de carros que a PIDE estava lá fora à espera dele. Graças a isto, acabou por sair pela porta dos artistas nas traseiras.”
Em 2012, estava em cena no São João uma peça com um elenco de pessoas negras, o que motivou uma manifestação de skinheads à porta do teatro. “Geri a situação com alguma parcimónia, tentei que os atores não saíssem nem tivessem noção do que estava a acontecer. Felizmente o público ignorou-os.”
Mas nem todos os episódios acabaram de forma tão pacífica como esta. Fernando Camecelha conta que em 2017, numa das récitas do “Macbeth”, de William Shakespeare, uma das pessoas do público enviou uma mensagem a um amigo e escreveu: “já rolam cabeças e espicha sangue no Teatro de São João”, fazendo referência aos atos sangrentos da peça. Minutos depois, uma unidade de intervenção da PSP cercou e entrou no edifício por achar que se tratava de algo real. “Fui eu que tive de lhes explicar tudo, até fui com eles ao terceiro balcão para confirmarem que não estava realmente a acontecer nada, a não ser teatro.”
“O São João nunca será uma cópia do Dona Maria”
Corria o ano de 1992 quando o Estado Português adquiriu o São João Cine à família Pinto da Costa, batizando-o como Teatro Nacional São João. “Honório de Lima, avô do Jorge Nuno Pinto da Costa, era um homem ligado à música e aos vinhos, foi também acionista do Orfeão do Porto e mecenas. Na casa de família, na Rua de Cedofeita, ainda permanece uma maquete deste teatro”, explica o jornalista e investigador Germano Silva.
Pedro Santana Lopes era secretário de Estado da Cultura na época e nomeou Eduardo Paz Barroso como diretor do teatro. “A primeira memória que tenho do teatro é muitíssimo anterior à minha entrada no teatro. É de um cinema, na década de 60 e 70, onde me lembro de explodir de risos com os filmes do cómico francês Louis de Funès”, partilha em entrevista ao Observador.
Para Paz Barroso, um dos grandes temas que percorria a cultura portuguesa no início dos anos 90 era a descentralização. “Com a minha experiência como ensaísta, jornalista e programador, achava sempre que a descentralização era uma espécie de falso problema, o que era preciso era criar novas centralidades. Aparentemente a minha tese, que não era só minha, conjugou-se bem com a intenção de se fazer um teatro nacional no Porto.” A proposta foi algo inédita e revolucionária, uma vez que só existam teatros nacionais em Lisboa. “Na época, o Porto e o país eram excessivamente centralizados em Lisboa. Não existia Serralves, muito menos a Casa da Música, o Rivoli estava a começar a ser um teatro municipal”, recorda o primeiro diretor.
Numa primeira fase, foram levadas a cabo muitas iniciativas musicais, especialmente relacionadas com o jazz, “que não é a vocação canónica de um teatro nacional, mas era uma necessidade que a cidade tinha”. Mais tarde, seguiram-se parcerias com o Museu Nacional do Teatro, o Ballet Gulbenkian e o acolhimento de produções externas com artistas internacionais. Destaque para a criação de “A Tempestade”, de Shakespeare, encenada por Silviu Purcarete, em 1994, uma produção feita de raiz. “O rasto que deixei é aquilo que está hoje à vista”, sublinha Eduardo Paz Barroso, acrescentando que teve “tudo para fazer, porque nada estava feito”. Certo é que “o São João nunca será uma cópia do Dona Maria” e isso, garante, passou pela sua intenção programática.
O primeiro diretor do teatro será um dos sete convidados que irá orientar uma visita guiada pelo espaço este sábado, juntamente com o arquiteto Luís Soares Carneiro, o ator António Durães, o encenador Nuno Carinhas ou a atriz Emília Silvestre. O dia terá uma programação recheada distribuída pelos palcos do São João, Teatro Carlos Alberto, Mosteiro S. Bento da Vitória e Teatro Aveirense, sendo que um dos pontos altos será a reposição da peça “Turismo Infinito”, a partir de textos de Fernando Pessoa, e encenação de Ricardo Pais, também diretor do teatro centenário entre 1995 e 2009.
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