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Charlie Haden relembrava frequentemente o ano de 1971. A primeira memória era de outubro, quando nascem as filhas do contrabaixista norte-americano, logo três, de uma assentada. O parto das trigémeas, demorado e traumatizante, abalou o músico, que decidiu justificar ao seu companheiro e patrão, Ornette Coleman, que dadas as circunstâncias — a mulher em convalescência e uma série de recém-nascidos — não podia embarcar na iminente digressão europeia em novembro. A mulher, Ellen Haden, quem sabe por qualquer intervenção divina, convenceu o marido a reconsiderar, até que, à última hora, outro volte-face: Portugal é incluído na tournée. Charlie Haden assegurou a Ornette Coleman que se recusava a subir a um palco de gente fascista e colonialista. E Ornette Coleman, o fundador do free jazz, respondeu de improviso: e se fizermos algum tipo de protesto?
A meio caminho da digressão europeia, em Varsóvia, Charlie Haden conheceu um radialista português, José Duarte, e aproveitou para testar o terreno. O que aconteceria em Portugal, perguntou, se dedicar a canção “Song for Ché” aos movimentos de libertação africanos? José Duarte, que nunca conhecera outro Portugal a não ser o impiedoso da ditadura, não teve dúvidas, Charlie Haden seria preso. “Que exagero”, há de ter pensado o músico, onde é que já se viu um país aliado prender um cidadão norte-americano? Ainda naquele ano Spiro Agnew, vice-presidente dos EUA, almoçou com Marcello Caetano e jogou golfe no Estoril com Frank Sinatra, e até a dupla Richard Nixon/Henry Kissinger — olha quem — organizou uma cimeira nos Açores com o presidente francês, Georges Pompidou, entre fanfarra e bandeirinhas.
E a composição de Charlie Haden, “Song for Ché”, além de uma evidente homenagem ao revolucionário Che Guevara, estava enquadrada num álbum-protesto da banda nova-iorquina Liberation Music Orchestra, um declarado veículo de ativismo político contra a guerra, qualquer guerra, seja num arrozal em Laos ou na mata em Guiné-Bissau. Novamente, a influência de Ellen Haden seria determinante. “Quando se conheceram, ela foi muito influente ao passar-lhe os seus ideais e a sua política, abriu-lhe a mente para um estado superior de compreensão e para assumir mais riscos com a música”, revelam-nos as próprias trigémeas, entretanto uma banda familiar, The Haden Triplets. A mãe, Ellen, relembra-nos sensibilizada 1971: “Quando recordo o que aconteceu há 50 anos — o nascimento das nossas filhas, passar de uma família de um filho para quatro filhos, logo a seguir o Charlie parte para uma grande tournée com o Ornette, e o que aconteceu em Portugal — tenho que admitir que me evoca memórias muito fortes”.
No dia 20 de novembro, em frente a 10 mil portugueses, Charlie Haden agacha-se ao microfone de Ed Blackwell, baterista do Quarteto de Ornette Coleman, e repete as palavras que decorava em cochichos ao longo do dia:
“A próxima canção é dedicada aos movimentos de libertação das pessoas negras de Moçambique, da Guiné e de Angola”
A plateia irrompe num súbito tumulto — gritos, assobios, urros e palmas — segue as linhas graves do contrabaixo de Charlie Haden, e os punhos cerrados no ar confirmam a ameaça de insurreição no I Festival Internacional de Jazz de Cascais. Na algibeira do músico estava um gravador que capta o instante, lançado mais tarde em canção: “For A Free Portugal”. “Entendemos o que ele disse e batemos palmas pela coragem”, recorda-nos o saxofonista de Miles Davis, Gary Bartz, hoje professor no Oberlin Conservatory, em Ohio. “Eu sabia que o Charlie estava do lado da FRELIMO, que era a favor da independência em Moçambique, e concordei logo com aquelas palavras”.
[“For a Free Portugal”, de Charlie Haden:]
“Vi o Charlie Haden a falar com o Ornette Coleman, e o Ornette Coleman disse que estava de acordo, ‘à tua responsabilidade’, respondeu”, revela-nos Paulo Gil, baterista e produtor de jazz, em 1971 responsável pela promoção do Jazz de Cascais na imprensa. “E são dez mil malucos de pé, mesmo a malta de direita levantou-se, não percebeu o que ele tinha dito”. A PIDE percebeu de imediato, circunscreveu o palco, e a Polícia de Choque preparou-se para entrar no recinto, sob a liderança do Comandante da PSP de Cascais. “Foi um bocado tenso”, confirma o fadista João Braga, um dos organizadores da festa, que a partir daquele momento estava a bloquear o portão de entrada. “Fiz o meu melhor para não entrarem, disse que as cadeiras da plateia não estavam agarradas ao chão e aquilo podia transformar-se numa batalha campal”.
“Acho que o Charlie Haden não entendeu muito bem o contexto onde se encontrava, o país e as políticas de controlo e censura em Portugal”, considera Rão Kyao, um dos músicos com a missão ingrata de subir ao palco depois da tempestade. Enfim, o espetáculo prosseguiu e os tentáculos de informação e segurança do regime aguardariam pelo momento apropriado, exatamente na hora do embarque para os EUA, de manhã cedo: Ornette Coleman e companhia são coagidos a bordo, e Charlie Haden é subitamente apreendido, entregue a um carro da PIDE, a caminho do calabouço na Rua António Maria Cardoso. Na sede da PIDE, as horas arrastam-se amargas, entre uma cela em completa escuridão e uma sala de interrogatório, de holofotes na cara, às cegas, Charlie Haden recorda a mulher, as três filhas recém-nascidas e não controla as lágrimas.
“Fomos acordados de madrugada com três horas de sono para uma reunião forçada à Rua António Maria Cardoso”, continua João Braga, que é intimado a par de Luís Villas-Boas, o fundador do Hot Clube de Portugal e do Jazz de Cascais, a justificar o desaforo de Charlie Haden. Gary Bartz: “Soubemos de imediato da prisão, todos os músicos da tournée sabiam, não se falava de mais nada. ‘Soubeste o que aconteceu? Será que deveríamos ir embora? Mas não podemos abandoná-lo!’”. E quando a Embaixada dos EUA finalmente intervém e liberta o músico, recambiado para Nova Iorque, ainda havia responsabilidades por apurar. A primeira ordem da PIDE aos organizadores do festival é cancelar a brincadeira e devolver os bilhetes. A segunda ordem, após alguma negociação, é mais portuguesa, à base da atençãozinha, deixe cá ver, 500 livre-trânsitos para o festival e não se fala mais nisso. “Não sabia que havia tanta gente a gostar de jazz”, recorda divertido João Braga. “Mas correu bem. Entramos lá com o festival proibido e cancelado e saímos a poder fazer o festival.”
No mesmo dia, às 13h da tarde, após vagamente subornar a PIDE com bilhetes, mais uma dose de realidade portuguesa para os organizadores do festival: estão na bancada do Estádio da Luz a ver o Portugal-Bélgica. “Uma das coisas que quero fazer em Portugal é ver jogar Eusébio”, tinha antecipado Dizzy Gillespie ao Diário de Lisboa. O compositor de “A Night in Tunisia”, protagonista do segundo dia do Jazz de Cascais, assiste a um jogo morno do Pantera Negra, e no rescaldo priva em casa do próprio Eusébio, em volta de um gira-discos. Nessa tarde, o galanteador do bebop ainda dá uma entrevista ao Século Ilustrado, sintetizando um conceito fundamental: o eterno movimento da canção popular:
Como música negra, o jazz é o resultado das nossas experiências como negros no interior dos Estados Unidos. Cada novo artista chega ao jazz com uma mensagem específica. Por sua vez, esta mensagem é uma espécie de guia elucidativo quanto à época em que se desenvolve”.
E a contemporaneidade do jazz manifesta-se tanto no sopé do Mississippi, como do Tejo, Charlie Haden estava destinado a relembrar o Portugal de 1971 que se vivia uma ditadura, que se morria em África pelo direito à independência. O jazz não é passivo, nem passado, é uma forma musical urgente de diálogo com o tempo imediato. O alvoroço da plateia do Jazz de Cascais confirmou que a serenidade do povo português era enganadora, o país e a canção estavam vivos, em movimento, prestes a eclodir uma revolução. Continua Dizzy Gillespie:
“O homem nunca se cansará de afirmar que está vivo. Por isso, o jazz não morrerá nunca. O jazz vive dentro de toda a gente.”
“Em novembro? Então vamos fazer o festival de jazz em novembro”
Nos dias 20 e 21 de novembro de 1971, o I Festival Internacional de Jazz de Cascais apoderou-se do debate nacional, das capas dos jornais, da rádio e das conversas de café, com uma programação aparentemente inconcebível com o conservadorismo do Estado Novo, a começar pelo belicoso revolucionário Miles Davis. E o festival nasce, como não podia deixar de ser, à mesa de jantar, entre copos valentes. O fadista João Braga, cliente regular na Taverna do Embuçado, em Alfama, adepto fervoroso do jazz desde que assistiu a “O Terceiro Homem” e “Toi, le venin”, convida Luís Villas-Boas a jantar em memória do falecido Louis Armstrong. “Era um pretexto para jantar no Embuçado”, nota João Braga, que trava amizade com o “pai do jazz português” na editora Philips, onde grava fados com regularidade. “No meio dos copos, ele desabafou e disse que andava há vinte anos para fazer um festival de jazz em Portugal e não conseguia”. Entra o beber, sai o saber, pelas três da manhã, o fadista pergunta ao “Villas” quando é que os pontas de lança do emblemático Newport Jazz Festival, Miles Davis e companhia, partem para uma digressão europeia. “Em novembro? Então vamos fazer o festival de jazz em novembro”.
E novembro, convém esclarecer, estava a cinco meses do jantar na Taverna do Embuçado. O contrarrelógio começa na questão crucial do financiamento. Em 1966, por exemplo, Villas-Boas chega a anunciar um festival sem financiadores, com Dave Brubeck e John Coltrane, que é rapidamente cancelado. A solução de João Braga é recorrer ao futuro sogro, presidente do Banco do Alentejo. “A negociação foi muito difícil, porque cheguei a ouvir coisas do género ‘porque você não faz um festival com nomes do que nós chamávamos de nacional-cançonetismo’; e irritei-me um bocado com essa observação”. O Banco do Alentejo arrisca o financiamento e João Braga segue para Paris, de encontro com a ex-cantora de jazz Simone Ginibre, o ponto de contacto europeu de George Wein, o fundador do Newport Jazz Festival. “Por iniciativa do empresário George Wein, o elenco do Festival de Newport desloca-se todos os anos à Europa”, explica Villas-Boas ao Diário de Lisboa, quando finalmente pode anunciar, depois de anos a perseguir este sonho, o I Festival Internacional de Jazz de Cascais. “Aproveitando a digressão que estão neste momento a fazer pela Europa, vamos trazer a Portugal música que, de outra maneira, seria materialmente impossível de reunir.” E subitamente, quem diria, é um festival de jazz desenrascado em cima do joelho, que coloca o Portugal “orgulhosamente só” dentro da Europa.
Hoje, 50 anos depois, o cartaz do primeiro Jazz de Cascais mantém-se um assombro: Septeto de Miles Davis com Keith Jarrett; Quarteto de Ornette Coleman; Dexter Gordon; Phil Woods and his European Rhythm Machine; e os Giants of Jazz, a fina flor do bebop e derivados, incluindo Dizzy Gillespie, Thelonious Monk e Art Blakey. O cachet de 720 contos conseguiu, considera Villas-Boas, “um resumo da história do jazz moderno”. E assim como o Festival de Música de Vilar de Mouros, quatro meses antes, almejava-se que a juventude portuguesa, amordaçada a uma ditadura interminável, protagonizasse o arraial. “É necessário que este festival não seja hermético”, analisa o especialista da matéria, Manuel Jorge Veloso. Era fundamental quebrar uma certa apatia com um evento cultural de massas, e o jazz podia cumprir este papel, veja-se a prova dada por Miles Davis perante meio milhão de pessoas, no Isle of Wight Festival em 1970. Villas-Boas na apresentação do festival à RTP:
Julgo ter chegado o momento oportuno para uma organização deste género. Uma vez que, o mundo da música ligeira, da música pop, está nitidamente a convergir para a música que lhe deu origem, a música jazz, este será talvez o momento da viragem.”
Os maestros desta sinfonia, Luís Villas-Boas e João Braga, reforçam a orquestra com mais um produtor, Hugo Mendes Lourenço, outro colaborador da editora Phillips — “os três malucos do jazz”. O anfiteatro escolhido é o Coliseu dos Recreios ou o Campo Pequeno, até João Braga, a morar em Cascais desde miúdo, sugerir um tal de Pavilhão do Dramático de Cascais, que estava há dez anos em obras intermináveis. E o derradeiro aval, evidentemente, seria da Secretaria de Estado e da Informação e Turismo, que albergava a Direção do Serviço dos Espetáculos. “Fomos recebidos no Palácio Foz pelo César Moreira Baptista”, conta o fadista sobre reunião com o responsável máximo do pelouro, que fica agradado com o conceito e localização do evento. “O César Moreira Baptista mandou falar com o Presidente da Câmara de Cascais — e uma particularidade do Estado Novo é que não eram necessárias grandes negociações — o Presidente da Câmara de Cascais disse: ‘para novembro nem pense nisso, aquilo nem tem teto’. E o Moreira Baptista diz: ‘o senhor não percebeu o que eu disse, eu quero que este festival se faça em novembro’. ‘Com certeza senhor ministro’. Foi imediato”.
A ressalva do Presidente da Câmara de Cascais era compreensível, o Pavilhão do Dramático de Cascais, ou Pavilhão dos Desportos de Cascais, estava com as obras paradas há dois anos, sem pavimento, sem casas de banho, nem sequer eletricidade. Entra em cena o recentemente falecido Duarte Mendonça, sócio do Hot Clube de Portugal que convence o seu patrão, da empresa de instalações elétricas J.F. Azevedo e Silva, a tratar da eletricidade em troca de publicidade. A Junta de Turismo da Costa do Sol e a Secretaria de Estado e da Informação e Turismo complementam o investimento do Banco do Alentejo, com objetivo de dinamizar o turismo da zona, e o figurinista do Teatro ABC, Mário Alberto, encarrega-se do palco. A cobertura do Dramático de Cascais é abafada com esferovite, instala-se um “sistema de aquecimento rudimentar”, e apesar das almofadas distribuídas pelas bancadas, a aspereza do cimento seria, até à demolição em 2005, uma marca registada de um dos palcos mais icónicos em Portugal, que inaugura precisamente no Jazz de Cascais.
“Continuam a importar escravos de Cabo Verde para as vossas obras?”
“Vocês continuam a importar escravos de Cabo Verde para as vossas obras?”, provoca Miles Davis, acabado de aterrar em Lisboa, a caminho do Hotel Palácio, no Estoril. “Ele falava tudo muito sussurrado, tinha de se ouvir com esforço”, sublinha João Braga, que é incumbido de receber Miles Davis e comitiva, incluindo namorada, cabeleireiro; e a RTP, que escolta o génio do trompete do Aeroporto de Lisboa até ao hotel. “Quem eram os trabalhadores, eram escravos negros?”, continua Miles Davis, a apontar para a Ponte Salazar, enquanto percorre a Avenida Brasília. E seguiam estrada fora conforme as exigências do músico, a saber, “uma limusine com um chauffeur branco, loiro, alto, e fardado a preceito, com boné”. No dia seguinte, tudo em linha com outra exigência de Miles Davis: um sparring partner branco no quarto de hotel. Isto é: um parceiro de pugilismo.
“Mas o primeiro boxeur que arranjei, do Clube do Rio de Janeiro, no Bairro Alto, virou-se ao Miles depois de ele exagerar um bocadinho. E o Miles ficou danado e disse que queria um gajo era para levar porrada. Então fui para o Atlético da Mouraria e encontrei um boxeur um bocado veterano, que quando soube o que pagavam, disse que podia bater à vontade: ‘por esse preço não há problema nenhum’”.
Os episódios folclóricos da única passagem de Miles Davis em Portugal, sobretudo as sucessivas menções à escravatura, revelam um manifesto desconforto do músico nesta última paragem da digressão europeia. Em 1971, enquanto por aqui era proibida qualquer menção à “política adotada quanto ao Ultramar Português”, e entre cinco a quinze mil trabalhadores braçais cabo-verdianos estavam “enlatados” em camaratas, a receber “menos dez centavos que os portugueses”, Miles Davis estava imerso no Movimento dos Direitos Civis, no Black Panther Party, no Pan-africanismo – o diabo a quatro aos olhos do regime de Marcello Caetano. E a aproximação de Miles Davis a uma consciencialização negra era um retrato fidedigno do jazz da época, que entra em rota de colisão com o colonialismo português no Jazz de Cascais.
Miles Davis nasceu em Alton, St. Louis, numa cidade segregada, com divisão social entre negros e brancos, e morreu há 30 anos, em Santa Monica, Califórnia. As composições do trompetista são indissociáveis das cicatrizes da segregação. “Também cresci numa cidade segregada em Baltimore, Maryland, sou um produto da segregação”, reflete Gary Bartz, o saxofonista do Septeto de Miles Davis, que em 1971, assim como Miles Davis, Charlie Haden e tantos outros, decide que a cantiga jazz também pode ser uma arma, ao editar o álbum de protesto Harlem Bush Music. “Havia um problema que precisávamos de enfrentar. Eu senti a necessidade de expressar musicalmente o meu desgosto com a forma como os seres humanos eram tratados, ainda mais com a Guerra do Vietname. Depois de trabalhar com o Max Roach, o Charles Mingus, e mais tarde o Miles, eles incutiram-me a importância de ler e descobrir o que estava a acontecer.” Em Cascais, no dia do concerto, Gary Bartz percorre a Marginal de mota e estaciona diante do Forte São Julião da Barra, é recebido amavelmente pelo exército português, e fica a imaginar esta fortificação nos tempos do comércio de escravos, num país chamado Portugal.
“Sol cá fora, num sábado deslumbrante de Novembro”, retrata o Século Ilustrado, em reportagem para o Jazz de Cascais, e Villas-Boas contextualiza ao colega do Diário de Lisboa: “Miles Davis é um músico que se encontra em permanente evolução e se interessa particularmente pela música pop”. No ano anterior, o trompetista abraça definitivamente a cultura popular, desde a eletricidade distorcida de Jimi Hendrix, acrescentando pedais de efeitos ao seu instrumento, ao balanço funk de Sly Stone. Bitches Brew é o álbum revolucionário no qual Miles Davis baseia o concerto em Portugal, acompanhado pelo prodigioso Keith Jarrett ao órgão e piano elétrico, que retornava a Portugal depois tocar com Charles Lloyd no Luisiana Jazz Club, o bar de Villas-Boas em Cascais. O Septeto de Miles Davis era uma formação inédita, incluindo ainda Gary Bartz, Ndugu Leon Chancler, James Mtume Foreman, Charles Don Alias, e Michael Henderson — o recentemente editado The Lost Septet é desta digressão, assim como os concertos memoráveis de Berlim e Oslo. “Essa era a música que o Miles ouvia dentro da cabeça”, explica-nos Gary Bartz. “O trabalho de um músico-artista é projetar ideias e pensamentos em música, é ouvir o que nunca foi ouvido, e o Miles continuava a ouvir mais e melhor”.
O palco do Jazz de Cascais assemelhava-se a uma arena, a malta encalhada ao sopé da cena, a rodear os músicos de trás para a frente, e agachada entre as colunas de som. Os assobios começaram ao entardecer, às 22h era uma berraria. O radialista José Nuno Martins tenta acalmar os ânimos: “Miles Davis está já a caminho!”. O cabeça de cartaz rasteira a organização e exige ser a primeira atração. No Hotel Palácio, João Braga entrega-lhe três embalagens de Profamina que Miles consome de enfiada, depois de meditar dentro do armário. Em cinco minutos, de “calças de cetim” e “olhar duro”, o músico chega ao Dramático de Cascais, beija a namorada e está em palco. Comovido, Villas-Boas apresenta: “Não tenho palavras para dizer, isto é absolutamente indescritível… Vamos ouvir Miles Davis!”.
“Entrado em cena, o choque foi brutal”, escreve Jorge Lima Barreto, em reportagem para a Mundo da Canção. “O público estupefato não acreditava na potência, a força visceral do jazz que ouvia, as pessoas agitavam-se descontroladas”. O herói do trompete está de óculos octogonais, echarpe engravatado, fivela de ouro e espera pela sua deixa encurvado, em posição de ataque — “Numa hora passada de exibição, nem um sorriso. Como se o público não contasse, como se a multidão fosse o inimigo potencial”. Miles Davis estava numa missão e essa missão não incluía o charme encantador de Kind of Blue. Em palco estava o sangue, suor e lágrimas de 1971:
“A figura negra e esguia de Miles Davis apontou o trompete aos oito mil espectadores e uma catadupa de sons estranhos esmagou os dezasseis mil ouvidos”
O maluquinho que gosta do batuque e dos sons estridentes
Luís Villas-Boas, um pregador do free jazz, escolhe a dedo o concerto que sucede a Miles Davis: o Quarteto de Ornette Coleman. “Coleman procura essencialmente o desequilíbrio da forma. A música, para ele, é uma ação e não uma reflexão”, analisa o Século Ilustrado, enquanto Raul Calado, no “Cinco Minutos de Jazz”, comenta: “Quando assisti a um recital de Ornette compreendi que estava pela primeira vez diante de um génio”. Em 1971, as composições do multi-instrumentista do Texas faziam escola, os tempos de basbaque do público estavam ultrapassados, e preparava-se para lançar dois álbuns clássicos: Science Fiction e Skies Of America. Em Cascais, Ornette Coleman maneja o trompete, o violino e o saxofone, mas poucos recordam o virtuosismo, a lembrança que ecoa são as palavras do seu contrabaixista, Charlie Haden, que entra na história de pés juntos ao homenagear os inimigos mais vis da nação portuguesa, o MPLA, a FRELIMO e restantes movimentos africanos de independência. Segundo relatos de pessoas próximas, Villas-Boas ficou furioso, inconsolável, afinal a sua mulher é que tinha razão, Helena Villas-Boas, que foge para Londres em antecipação de qualquer desastre subversivo. E quem seriam os responsáveis por tremenda desfeita, pensava Villas-Boas. Certamente não foi Charlie Haden sozinho, seria uma tramoia dos seus detratores, a querer matar o Jazz de Cascais, o sonho de uma vida?
“Há 25 anos era dado como ‘mentecapto’, ‘atrasado mental’ — ‘o maluquinho que gostava do batuque e dos sons estridentes”, escreve o Diário de Lisboa. “Hoje é impossível falar do jazz no nosso país sem referir o nome de Luís Villas-Boas”. “É o pai do jazz em Portugal”, acrescenta Paulo Gil, pelo “esforço mais contínuo e mais intenso para divulgar esta área da música”, desde a produção dos primeiros grandes concertos internacionais, à criação da loja de discos especializada, a Discostudio. Aos 47 anos, Villas-Boas balançava a organização do Jazz de Cascais com o seu emprego de oficial de operações de voo na KLM, de fatos imaculados, do xadrez ao tweed, camisa aberta e óculos escuros sem armação. “Era uma pessoa de contrastes, entre o homem erudito e uma faceta mais popular”, considera João Moreira dos Santos, autor de Jazz em Cascais e O Jazz segundo Villas-Boas. A figura atarracada, o célebre bom garfo, e as eventuais altercações — ameaças e pancadaria — chocavam com o charme da sua presença. É esta combinação insólita que alavanca o jazz em Portugal, primeiro com o programa “Hot Club”, na Rádio Club Português, e depois com a criação da associação Hot Clube de Portugal, em 1950.
“Eu não nasci no Hot Clube, mas quase”, diz-nos Rão Kyao, que em 71 cumpria o serviço militar e era o saxofonista da única banda portuguesa no Jazz de Cascais, os The Bridge de Kevin Hoidale, norte-americano radicado em Portugal. É no Hot Clube de Portugal, na Praça de Alegria, em Lisboa, que a geração de Rão Kyao improvisa uma espécie de formação musical, em sessões de audição de discos e jam-sessions entre músicos amadores e profissionais que seriam a espinha dorsal do jazz português. “A minha mãe morreu quando eu era muito novo, um desastre de automóvel, eu era miúdo, uma coisa muito dura que de certa maneira teve consequências na vida, sobretudo numa criança”, revela o músico lisboeta, que quando conhece Ray Charles e o seu saxofonista David ‘Fathead’ Newman, e mais tarde Vitor Santos no Hot Clube, dá os primeiros passos do que seria uma contínua descoberta musical. “As jam-sessions no Hot Clube eram como um espetáculo, mas uma coisa que não era assumida, era onde discutíamos, tirávamos ideias uns dos outros. E sempre no jazz, a pop passava-nos completamente ao lado.”
Lia-se na Flama: “O Hot Clube de Portugal é o único representante, em termos de agremiação, do jazz em Portugal”. E nos bastidores, esta hegemonia estava em disputa há mais de dez anos, como nos contextualiza João Moreira dos Santos: “Era uma luta entre dois titãs: O Villas-Boas e o Raul Calado. No final dos anos 50, no Hot Clube, há um desentendimento porque o Villas-Boas acha que o Hot Clube deve ser um clube com limite de sócios e fechado. E o Raul Calado, um homem que ainda não se tinha afirmado, desafia Villas-Boas com uma lista candidata para abrir o clube. Raul Calado perde por um voto”. E Raul Calado aproveita o ambiente de contestação estudantil para fundar o Clube Universitário de Jazz (CUJ), uma associação em oposição direta ao Estado Novo, próxima da Casa dos Estudantes do Império (CSI), embrião dos movimentos independentistas africanos. Em 1961, a PIDE encerra o CUJ, mas não havia volta a dar, o jazz português tinha entrado no debate político. Dez anos depois, no Jazz de Cascais, aprofunda-se a trincheira entre Villas-Boas e Raul Calado, que espelhava uma tensão adjacente à música popular da época: a canção deve ou não carregar um significado político?
José Duarte confessa à Flama que não é sócio do Hot Clube de Portugal, ponderando que a associação liderada por Villas-Boas, “pouco ou nada tem feito”, “logo eu veria toda a vantagem na actual existência de outro clube”. O radialista do “Cinco Minutos de Jazz” — às 23h30 na Rádio Renascença desde 1966 — era camarada de Raul Calado e membro fundador do Clube Universitário de Jazz. “Há quem puxe das calças aos que sobem”, enfurece-se Villas-Boas em resposta, “nada faço pela glória pessoal”, “mas também não gosto de ser gozado”, “sou bruto”, e acrescenta, cuidadinho: “posso mesmo empregar o físico, se necessário”. Villas-Boas estava absolutamente convencido que José Duarte era de certa forma responsável, ou pelo menos cúmplice, do protesto político de Charlie Haden no palco do Dramático de Cascais. João Moreira dos Santos: “Havia um choque geracional, a primeira geração de músicos de jazz, do Villas-Boas, tinham sido os detentores da crítica e opinião do jazz em Portugal, e de repente, no Cascais Jazz, confrontam-se com uma geração que é mais politizada, anti-regime, e tomam posições inconformistas”.
E fora destas contendas do jazz português, de sete cães a um osso bem magrinho, o género musical permanece um corpo estranho para a maioria dos portugueses, ou na pior das hipóteses, uma ofensa à integridade nacional. Em antecipação do festival, um leitor do jornal A Capital escreve indignado a seguinte carta ao diretor do Dramático de Cascais, segundo o livro Jazz em Cascais:
No próximo sábado, 20 e 21, meia dúzia de loucos vão organizar no vosso digníssimo pavilhão mais um festival de jazz. Lamento bastante que V. Exa tivesse autorizado um tal festival de música jazz-batuque-americano-inglês, que é apenas uma demonstração de ódio e propaganda contra a nossa música e o nosso folclore, que alguns idiotas procuram eliminar em Portugal. Os malfeitores, anti-portugueses, são:”
E o autor da carta começa a enumerar os ditos malfeitores idiotas, entre eles, Manuel Jorge Veloso, o crítico de jazz omnipresente em jornais, televisão e rádio, ex-baterista do Quarteto do Hot Clube de Portugal, colaborador da editora Sassetti/Guilda da Música. Outro malfeitor é Manuel Guimarães, o principal dinamizador de jazz no Porto, professor de inglês no Liceu Garcia de Orta que organiza em 1971 o I Festival de Jazz no Porto — “há recentemente um surto de jazz no Porto bem superior ao que se faz em Lisboa”, garante a Disco, Música & Moda. Entre as bandas deste festival no Porto estava, a jogar em casa, o Anar Jazz Group, de outro protagonista fundamental desta história: Jorge Lima Barreto. Aos 22 anos, recém-licenciado em História de Arte, Jorge Lima Barreto apresenta-se um homem livre, anti-Villas-Boas, anti-Raul Calado, e prepara-se para editar o alegado primeiro livro original português sobre jazz: A Revolução do Jazz.
Uma das missões destes educadores do jazz era separar o trigo do joio, isto é, delimitar e canonificar o que pode ser considerada a música herdeira do verdadeiro jazz. A canção ligeira de music-hall e bailaricos, de boîtes e casinos, “dancings” de quartetos e orquestras, que permanecia ubíqua em Portugal, seja um Thilo Krasmann ou Jorge Costa Pinto, era desdenhada como uma arte menor que não entraria para as contas do jazz português. Os educadores do jazz, e sobretudo Villas-Boas, acreditavam que seriam os associados do Hot Clube que começariam a editar álbuns portugueses para formar o gosto do cidadão comum, que permanecia distanciado do “verdadeiro” jazz, restrito a clubes elitistas e a discos importados. “Será que o jazz se está mesmo a radicar em Portugal?”, pergunta um jornalista a José Duarte, que responde: “Sem músicos, sem revistas, sem discos, as condições não existem”.
O baterista Paulo Gil era um dos discípulos do Hot Clube que batalhava para alterar o parco cenário do jazz português. Em 1971, compõe a banda-sonora para uma curta-metragem de Manuel Costa e Silva, “A Passagem”, com uma banda inteiramente portuguesa: Nuno Gonçalves, Vitor Santos, Pedro Osório e o pianista Rui Cardoso. “O Manuel Costa e Silva filmou no cemitério dos comboios, no meio das máquinas paradas”, lembra Paulo Gil sobre um dos raros discos de originais de jazz editados na época. “E naquela altura eu não escrevia praticamente nada, o Rui Cardoso sabia de composição e ajudava-me”. O baterista e sócio do Hot Clube desde os 17 anos era ainda membro de uma série de bandas, entre elas os Contacto, com o pianista brasileiro Marcos Resende, a estudar medicina em Lisboa. São os Contacto que sobem ao palco do Festival de Música de Vilar de Mouros e fazem a abertura de Stan Getz na Queima das Fitas, Coliseu do Porto. Outro projeto embrionário de Paulo Gil em 1971 é Poesia e Música de Jazz de Manuela Machado, com o contrabaixista Jean Sarbib, mais tarde conhecido como Saheb Sarbib — irmão do pianista André Sarbib e filho de outro pianista, Roger Sarbib, refugiado em Portugal desde a Segunda Guerra Mundial. E é este apanhado de refugiados e emigrantes, estudantes e músicos amadores, que inegavelmente formavam um jazz português.
O baterista de referência para os sócios do Hot Clube era Manuel Jorge Veloso, uma personalidade de televisão de baquetas penduradas, praticamente reformado da música. “Estou completamente destreinado”, confessa ao Diário de Lisboa, receoso do enorme desafio de Villas-Boas para o Jazz de Cascais: acompanhar Dexter Gordon — “um dos mestres de todos os saxofonistas contemporâneos”. O saxofonista norte-americano estava na Europa há mais de dez anos, a cumprir o que lhe desse na real gana, como por exemplo, porque não, um filme pornográfico dinamarquês. Esta vida errante não comportava uma banda estável e a solução de Villas-Boas estava na prata da casa: Manuel Jorge Veloso, Marcos Resende e Jean Sarbib — um argumento incontestável que existia um jazz português. “É a afirmação dos músicos portugueses”, concorda João Moreira dos Santos. “A opinião pública descobre que havia quem se dedicasse ao jazz em Portugal, como o Rão Kyao ou o Manuel Jorge Veloso”.
Depois de Dexter Gordon, os The Bridge fecham a primeira noite do Jazz de Cascais com o desconhecido “João Ramos Jorge” ao saxofone — “a revelar-se uma agradável surpresa”. “São os primórdios da minha formação como músico, da procura de um caminho”, reflete hoje Rão Kyao, aos 74 anos, lembrando que em breve estaria absorto na música indiana, guiado por uma flauta de bambu, e a intrometer definitivamente o jazz na música popular portuguesa. “A música foi me dando outras direções, assumi-me como português no mundo”, continua, apontando o Jazz de Cascais como o ponto de partida, tanto para o músico Rão Kyao, como para os milhares de portugueses na plateia. “O festival extravasou os amantes do jazz, a maioria do público não eram amantes do jazz, muita gente nem sabia o que era aquilo. O próprio evento criou um movimento de culto.”
Monstros sagrados no país do fado
Domingo à noite, a receção morna aos The Bridge repetiu-se na abertura do segundo dia do Jazz de Cascais — “tocar ao lado de monstros não os aterrorizou, mas ouviram certos protestos da assistência”. Em seguida, o saxofonista norte-americano Phil Woods, líder da banda parisiense Phil Woods and his European Rhythm Machine, encoraja a plateia em vão, resguardada para o último concerto do festival: The Giants of Jazz, um supergrupo com Dizzy Gillespie, Thelonious Monk, Art Blakey, Sonny Stitt, Kai Winding e Al McKibbon:
Entre quatro paredes de cimento aconteceu um fenómeno chamado jazz, trazido por monstros quase sagrados até ao país do fado”
No centro, o baterista Art Blakey coordena o carnaval, chocalha sorridente o extraordinário colar de ouro, no flanco de Sonny Stitt — “talvez o maior sax-alto do mundo depois de Charlie Parker” — que sopra desalmadamente para sobreviver entre os titãs Dizzy Gillespie e Thelonious Monk — “mentores do movimento dos anos 40 que modificou radicalmente o jazz e as formas musicais subjacentes”. Eram deuses finalmente ao alcance do comum mortal português, num pavilhão gimnodesportivo em Cascais. Ao piano, Monk permanece impassível, de cachucho no mindinho, um contraste com o incitador Dizzy, que dá um passo em frente e carrega as bochechas de ar até ao limite, a decorrer clássicos absolutos como “A Night in Tunisia” e “Round Midnight”. No final, às três da manhã, o deus trompetista desce do púlpito, caminha entre a plateia e cede um vislumbre da imortalidade, a solar em cima de uma cadeira, mais um rasgo de individualidade, mais uma prova que estamos vivos, que a canção mexe — “Foi o delírio. Tocava-se no no palco, com os instrumentos, e tocava-se na sala, com as mãos. Dizzy Gillespie veio para o meio da gente. Tocou para o público, com o público, entre o público”.
“No fim, uma só palavra: O jazz venceu em Portugal e tornou-se música popular”, conclui sabiamente Jorge Lima Barreto na Mundo da Canção, rematando: “Não foi um público erudito. Foi um público maravilhado. E foi melhor assim”. O impacto do Jazz de Cascais na música popular portuguesa é imensurável. Entre o público maravilhado estavam os pilares da nossa canção, Amália Rodrigues, José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Fernando Tordo, Jorge Peixinho, ou os ainda adolescentes Carlos Barretto e Maria João. Amália Rodrigues, que já tinha colaborado com Don Byas por iniciativa de Villas-Boas, confessa à RTP que está em Cascais precisamente para abrir caminho: “É para ver se entendo alguma coisa que eu vim ver”. E o compositor Jorge Peixinho resume a importância da nossa música entrosada com o resto do mundo, em constante andamento:
“Qualquer criador, como é o meu caso, só se enriquece com experiências novas. E o jazz vejo-o como um complemento da nossa cultura tradicional”
“Entretanto, a RTP começou a irradiar as gravações que executou em Cascais”, denuncia Fernando Cascais na Flama, um dos jornalistas que tentava desde a homenagem de Charlie Haden escrever nas entrelinhas o que nenhum televisor ou rádio poderia divulgar — a RTP exibe somente alguns excertos do festival no programa “Pop 25”. “O estômago bem acomodado do telespectador do serão não suporta pratos muito fortes. Ou muito indigestos.” O incansável José Jorge Letria era mais atrevido:
“Quem é que não sentiu um nó na garganta com a violência (negra) do quarteto de Ornette Coleman? Quem é que não estremeceu ao ver o punho cerrado de Dewey Redman bem erguido no ar, no final da sua atuação? E éramos todos nós os acusados”
Jorge Lima Barreto também pisca o olho: “Uma longa ovação para este contrabaixo e para a ideologia da sua música”. E Manuel de Lima, do Século Ilustrado, descreve a música de Charlie Haden como “libertação”, e segue, a quente, a compreender de imediato a relevância histórica do festival: “A primeira qualidade a salientar neste festival é o seu sentido polémico”. A polémica, os aplausos e apupos, as tensões sociais e culturais, as quezílias cá do burgo, era o chão de onde brotava a canção popular.
No desfecho do Jazz de Cascais, o presidente reeleito do Hot Clube de Portugal, estava em estado de graça: “Uma ideia minha antiga, agora apoiada no que rendeu o festival e numa organização comercial voltada para a música, é a criação de uma escola de executantes, onde a música ligeira se aprenda e os mais dotados, daí partem para o jazz”, explica Villas-Boas à Flama, detalhando a edificação do que seria o futuro do jazz português, a Escola Luís Villas-Boas, hoje em Alcântara.
“A ideia está em marcha, mas ainda não é uma realidade, nem sei quando o será. A ser viável, no entanto, poderá ser a maior das consequências do Festival de Cascais”
Outra consequência foi a prova que era exequível um evento musical de massas rentável em Portugal, depois do fiasco financeiro de Vilar de Mouros. E a porta fica escancarada, o Jazz de Cascais repete-se ano após ano, assim como os inconvenientes protestos políticos, antes e depois do 25 de abril, sob o leme de Villas-Boas e, desde 1974, em parceria com Duarte Mendonça.
“Na campanha a favor do jazz, que é o da sua compreensão, o trabalho de sapa já está feito”, celebra a Flama. “O caminho foi aberto em novembro, em Cascais. A paisagem é aliciante”. E a paisagem, deduz a revista, de sentido aguçado, é irreversível: “Os festivais futuros continuarão com milhares de ouvidos. Mas ouvidos mais atentos e abertos”. E um Portugal todo de ouvidos, a fazer circular a canção, é uma caixa de ressonância que nunca deve ser desprezada – em 1971, 2021, ou nos próximos 50 anos.
“Haverá sempre mais para ouvir”, conclui o professor Gary Bartz, a encerrar por agora a sala de aula: “A música é como o universo, é tão vasto que ninguém o pode aprender, apenas estudar, apenas ouvir”.
Gary Bartz está neste momento a apresentar dois novos lançamentos: Jazz Is Dead 6 e Live In Bremen 1975. E Rão Kyao apresenta o álbum Gandhi.