Escolhas livres feitas por poetas das mais diferentes vocações e dos mais variados apetites. Cada instinto perseguiu um registo. Há quem, na sua escolha, pretenda fixar em arquitectura literária superior a fugacidade da vida, há quem, também se fixando nesse desgaste, aproveite para a festejar (Ferreira Gullar, evocado pelo brasileiro Antonio Cicero), há quem se sinta confrontado por um poema-soco ou por um poema que, para falar de amor, traz a sombra da morte. Ou ainda por um poema que despoja o homem de pulsões que o diminuem.

São também convocados poemas (como o de Lawrence Ferlinghetti, escolhido por Tiago Gomes) que celebram o gosto perigoso em viver e outros que também relevam os aspectos técnicos – aqueles que, se bem cozinhados, conseguem criar a emoção poética que só a grande arte consegue atingir. E, aqui e ali, emerge a ironia, estratégia de sobrevivência de uma poesia que, se tremendamente grave, poderia parecer escusada.

Num poema de António Amaral Tavares, autor recém-descoberto por Renata Correia Botelho, diz-se: “Doutor há muito pouco tempo para a poesia”. Podemos vir com a conversa de circunstância, habitual nos salões e nas redes sociais: todos os dias são dias para a poesia. Não são, até porque há dias em que é preciso ir pagar o IRS. E por isso, já que existe um dia só consagrado ao género, que o aproveitemos para lermos e dizermos poemas, para celebrar a poesia como serena partilha, numa comunidade diversa.

Luís Filipe Castro Mendes

“Magnificat” de Álvaro de Campos

Cada poema é um encontro, no processo em que é escrito tanto como no processo em que é lido. Encontrei há muito tempo este poema e sei que de repente ele me veio cortar a respiração e ferir-me com a terrível consciência de que nunca poderemos sair do nosso próprio ser, nem pela vida nem pela morte. Cárcere do ser, li mais tarde no mesmo Álvaro de Campos. Mas o soco que o poema dá em nós (“e a dor dói como um soco”, Alexandre O’Neill) só o sentimos bem nesses momentos em que da ideia se passa ao espanto quase físico do encontro com uma verdade de nós que nós não sabíamos. O poeta é afinal aquele que sabe dar-nos de surpresa um soco no mais fundo do que somos. Para com isso aprendermos a ver melhor o esplendor do mundo.

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Quando é que passará esta noite interna, o universo,
E eu, a minha alma, terei o meu dia?
Quando é que despertarei de estar acordado?
Não sei. O sol brilha alto,
Impossível de fitar.
As estrelas pestanejam frio,
Impossíveis de contar.
O coração pulsa alheio,
Impossível de escutar.
Quando é que passará este drama sem teatro,
Ou este teatro sem drama,
E recolherei a casa?
Onde? Como? Quando?
Gato que me fitas com olhos de vida, que tens lá no fundo?
É esse! É esse!
Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei;
E então será dia.
Sorri, dormindo, minha alma!
Sorri, minha alma, será dia!

Fernando Pessoa

Inês Fonseca Santos

“Passagem”, de Manuel António Pina

Escolho o poema que fecha a obra de Manuel António Pina, se é que tal é possível, um poema que feche seja o que for, em vez de abrir. E escolho-o porque, figurando como poema final, como derradeiro poema, aponta, logo no título, para a noção de “Passagem”, para esse movimento cíclico a que está condenado o poeta, o criador, «[a]gora que os deuses partiram». Esse eterno retorno às palavras que se situam «tão sem peso por cima do pensamento» é a maior celebração da poesia no que ela tem de possibilidade de fuga ao uso comum da linguagem e no modo como ela, a poesia, se continua a escrever (e inscrever) mesmo não tendo mais do que palavras para dizer o mundo. Dá-se ainda o caso de este poema me ser dedicado. Lembrá-lo hoje — e todos os dias — é o meu modo tosco de agradecer e retribuir a Pina.

Com que palavras ou que lábios
é possível estar assim tão perto do fogo
e tão perto de cada dia, das horas tumultuosas e das serenas,
tão sem peso por cima do pensamento?

Pode bem acontecer que exista tudo e isto também,
e não só uma voz de ninguém.
Onde, porém? Em que lugares reais,
tão perto que as palavras são de mais?

Agora que os deuses partiram,
e estamos, se possível, ainda mais sós,
sem forma e vazios, inocentes de nós,
como diremos ainda margens e diremos rios?

mapina

Manuel Cintra

“Muriel”, de Ruy Belo

É, desde sempre, não só o meu poema de amor favorito em toda a literatura portuguesa (que eu conheça) como é, mais do que isso, o meu poema favorito. Acontece que o tema dominante no que escrevo é o amor, e dentro do amor, por razões muito pessoais e objectivas, o desencontro. Este poema fala de ambos, como a meu ver só o Ruy Belo soube fazer. Para além da música das palavras, como sempre incomparável, o Ruy consegue aqui uma emoção, uma intensa tristeza, uma maneira de ir ao encontro do amor tornando-o impossível que me comove sempre, e que se me entranha de cada vez que o leio, seja para mim, seja para outrem. Como sempre, a ferramenta certeira é, além disso, a morte. O Ruy utiliza a morte, seu tema obsessivo, tanto para falar de amor como para o que quer que seja. Ora fá-lo com uma profundidade e uma melancolia tais, que sempre, há trinta anos que leio este poema, ele renasce em mim, e põe-me a chorar por dentro. São razões muito físicas e emotivas, nada intelectuais.

Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava […]

[este é um excerto de “Muriel”. Ouça aqui o poema na íntegra:]

Francisco José Viegas

“Os Justos”, de Jorge Luis Borges

O poema “Os Justos”, de Jorge Luis Borges, resume a ideia de que há poemas que salvam a nossa vida. À medida que o tempo passa, que a morte se atravessa no caminho, que a memória exige esforço e sacrifícios cada vez mais pesados, a poesia parece transportar algum material de salvação. Não para a morte, física e real — mas para a vida, que falha tantas vezes. Não é uma solução nem um bálsamo; é um fragmento de beleza (e de alegria, e de serenidade, e de atenção) que busca a nossa perplexidade.

Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sul jogam um xadrez silencioso.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que leem os tercetos finais de certo canto.
O que acarinha um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo.

Jorge_Luis_Borges_1951,_by_Grete_Stern

Inês Lourenço

“Não só quem nos odeia ou nos inveja”, de Ricardo Reis

Nos tempos que correm, apetece saborear esta ode pessoana, enquanto desafiante e sabotadora dos actuais estilos de vida e de pensamento. Vão pela borda fora os empreendedorismos, o ter cada vez mais e melhores coisas, os hedonismos vários e até os monoteísmos, que tantas guerras sangrentas proporcionam, seguindo o poema um paganismo sadio e ético. Claro, que há a questão das influências, horacianas, epicuristas, estóicas ou heraclitianas. Mas os grandes poetas são intemporais. Dão-nos sempre capacidade acrescida de respiração e de aceder a uma total liberdade, anulando as contingências do mundo.

Não só quem nos odeia ou nos inveja
Nos limita e oprime; quem nos ama
Não menos nos limita.
Que os deuses me concedam que, despido
De afectos, tenha a fria liberdade
Dos píncaros sem nada.
Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada
É livre; quem não tem, e não deseja,
Homem, é igual aos deuses.

João do Nascimento

“O pai morava no fim de um lugar”, de Manoel de Barros

Descobri a poesia de Manoel de Barros em 2001, e não foi preciso mais do que a leitura breve de alguns dos seus poemas para que me tocasse. A visão profunda que transpira na sua escrita dos elementos vulgares, tão quotidianos quanto imensos e desimportantes, é tão grande que ganha nos seus textos a dimensão harmoniosa daquilo a que alguns chamarão: alma.

Senhor do pormenor, em Manoel de Barros tudo é tão insignificante quanto grandioso, percepcionando-se a essência humana em objectos simples e banais misturados de forma imprópria, irónica, tocando-se a natureza, o lixo, os despojos do quotidiano e os lugares, de maneiras imprevisíveis e luminosas. Os rios caminham sobre latas e os alicates dormem em esteiras. Realidade só revelável pela voz da poesia.

Ainda que português, ou cidadão de outra qualquer nacionalidade, ao ler os textos tão intrinsecamente brasileiros de Manoel de Barros, o leitor percebe o que é isso de linguagem universal. O que é isso de poesia.

O pai morava no fim de um lugar.
Aqui é lacuna de gente – ele falou:
Só quase que tem bicho andorinha e árvore.
Quem aperta o botão do amanhecer é o arãquã.
Um dia apareceu por lá um doutor formado: cheio de
suspensórios e ademanes.
Na beira dos brejos gaviões-caranguejeiros comiam
caranguejos.
E era mesma a distância entre rãs e a relva.
A gente brincava com terra.
O doutor apareceu. Disse: Precisam de tomar anquilostomina.
Perto de nós sempre havia uma espera de rolinhas.
O doutor espantou as rolinhas.

João Luís Barreto Guimarães

“Musée des Beaux Arts”, de W. H. Auden

Porque encontro neste poema – para além de aspectos mais técnicos de oficina que me agradam profundamente, como por exemplo a métrica ou a dicção -, todo aquele sentido trágico da vida e do sofrimento que o acaso dos dias tantas vezes nos apresenta colado à comicidade. Tragédia e comédia, só aparentemente opostas. Alguém escreveu que a tragédia é somente comédia mal desenvolvida. E o facto deste poema interligar a mitologia grega com a pintura de Brueghel, numa ekkfrasis de tom quase coloquial, torna este poema moderno hoje como daqui a cem anos. A persona poética conversa com o leitor através de uma qualidade de verso assinalável, com vários estratos de leitura, o que faz com que o poema, aparentemente, não se esgote. É um texto de um grande grande poeta, dono de uma intelecção pensada e repensada. Imenso.

Acerca do sofrimento, nunca se enganaram
Os Velhos Mestres: quão bem entenderam
A condição humana; como está presente
Enquanto alguém se alimenta ou abre uma janela ou monotonamente segue a caminhar;
Como, enquanto os velhos esperam apaixonada e reverentemente
Pelo miraculoso nascimento, deve sempre haver
Crianças que não queriam especialmente que acontecesse, patinando
Num lago na orla da floresta:
Nunca esqueceram
Que até o mais terrível martírio deve seguir o seu curso,
Custe o que custar, a um canto, nalgum lugar descuidado
Onde os canídeos acorrem em suas vidas de cão, e o cavalo do torturador
Coça seu inocente traseiro por detrás de uma árvore.

No Ícaro de Brueghel, por exemplo: como tudo se afasta
Ociosamente do desastre; o lavrador poderá
Ter ouvido o splash, o grito desamparado,
Mas para ele não era um importante fracasso; o sol brilhou
Como soía sobre as pernas brancas que desapareceram na verde
Água; e o frágil e grandioso navio que deve ter avistado
Algo espantoso, um rapaz caindo do céu,
Tinha um destino para ir e afastou-se calmamente.

format, portrait;male;elderly;The, Stage;Playwright;Roles, &, Occupations;Personality;British;American;ES, BB, 9386;ES, P/AUDEN/WYSTAN, HUGH/BRITISH, POET,

Tiago Gomes

“Ocupamos a praia do Amor”, de Lawrence Ferlinghetti

Um poema sobre ocupantes, amantes e demais revolucionários. Do sobrevivente da geração beat, um poema que também pode ser uma celebração das maravilhosas praias portuguesas. Ferlinghetti, figura menos conhecida da geração beat, mas de importância fundamental como editor, por exemplo, do livro “Uivo” de Allen Ginsberg e fundador das importantíssimas livrarias City Lights em São Francisco, epicentro do movimento da beat generation. Lawrence Ferlinghetti, para mim, mestre da poesia do quotidiano, social e de uma simplicidade desarmante. A ler, muito actual. O autor cumpre 97 anos no dia 25 de março.

Ocupamos a praia do amor
entre bandolins de Picasso repletos de areia
e patas de esfinge semi-enterradas
e papéis de piquenique
patas de caranguejos mortos
e marcas de estrelas do mar

Ocupamos a praia do amor
entre sereias encalhadas
com seus bebés berrando e maridos calvos
e bichinhos de madeira feitos em casa
com colheres de gelados a fazer de pés
que não podem amar ou andar
excepto para comer

Ocupamos a orla do amor
seguros como só os ocupantes sabem ser
entre poças remanescentes
de maré salgada de sexo
e os suaves regatos de sémen
e balões flácidos enterrados
na carne macia da areia

E ainda rimos
e ainda corremos
e ainda nos deitamos
nos botões do amor
mas é mais profundo
e mais tarde
que pensamos
e tudo se gasta
e todas as nossas boias d’amor falham
E bebemos e afogamo-nos

Miguel-Manso

“O Autocarro”, de Leonard Cohen

Não sei explicar bem o porquê de escolher este e não outro. Na verdade podia ser outro. Mas este tem um sentido aventureiro que me agrada. Cumprir uma aventura sem sair da secretária.

Era o último passageiro do dia!
Estava sozinho no autocarro
feliz por estarem a gastar todo aquele dinheiro
só para me levarem pela oitava avenida acima.
Condutor! — gritei — somos só tu e eu esta noite
Vamos fugir desta grande cidade
para uma cidade mais pequena, mais de acordo com o coração
Vamos guiar através das piscinas de Miami Beach
tu no assento do condutor e eu vários assentos atrás
Mas nas cidades raciais trocaremos de lugar
para mostrar como te arranjaste no Norte
e vamos descobrir alguma pequena vila piscatória americana
na desconhecida Florida
e parar junto à areia
um enorme autocarro chamando sobre si as atenções
metálico, pintado, solitário
com matrícula de Nova York

GAND, GHENT, AFP,

Margarida Ferra

“O Canto da Chávena de Chá”, de Fiama Hasse Pais Brandão

Não é a primeira vez que repito este poema quando me pedem um. Gosto do modo como Fiama chama a poesia e a natureza para contracenarem além das deixas decoradas. Também porque sou uma leitora feliz diante do lirismo temperado com ironia. E apesar de duvidar muito, ainda acho que, a servir para alguma coisa, a poesia estará aqui para nos trazer à mesa novos sentidos, chamando os nossos, vivos, e outras explicações. Como esta de que a porcelana e o osso estão ligadas além da mão que segura a chávena e de que as palavras de um poema encontram o lugar certo no universo para uma mesa de verga (imagino-a desfiar-se, a chávena de chá, agora mal equilibrada, sobre o tampo).

Poisamos as mãos junto da chávena
sem saber que a porcelana e o osso
são formas próximas da mesma substância.
A minha mão e a chávena nacarada
– se eu temperar o lirismo com a ironia –
são, ainda, familiares dos pterossáurios.
A tranquila tarde enche as vidraças.
A água escorre da bica com ruído,
os melros espiam-me na latada seca.
É assim que muitas vezes o chá evoca:
a minha mão de pedra, tarde serena,
olhar dos melros, som leve da bica.
A Natureza copia esta pintura
do fim da tarde que para mim pintei,
retribui-me os poemas que eu lhe fiz
de novo dando-me os meus versos ao vivo.
Como se eu merecesse esta paisagem
a Natureza dá-me o que lhe dei.
No entanto algures, num poema, ouvi
rodarem as roldanas do cenário,
em que as palavras representavam
a cena da pintura da paisagem
num telão constantemente vário.
Só o chá me traz a minha tarde,
com a chávena e a minha mão que são
o mesmo pedaço de calcário.
Hoje a bica refresca a água do tanque,
os melros descem da latada para o chão,
e as vidraças devagar escurecem.
As palavras movem-se e repõem
no seu imóvel eixo de rotação
o espaço onde esta mesa de verga
gira nas grandes nebulosas.

Fiama1

Carlos Alberto Machado

“Tenho de construir hoje esta planície”, de R. Lino

Em cada livro de poemas aprende-se de novo a respirar (como a um corpo amante): o prazer de dizer o poema como nosso, deixarmos de existir entre a sua respiração e a nossa qualquer diferença.
A poesia de R. Lino concentra poderosamente a força e a violência que advêm da “geografia” e do esgaçar da memória, numa serena e delicada mutação em palavras – implodem e espalham a sua força pelo interior, sem o estrondear do definitivo (mortal).

Tenho de construir hoje esta planície.
Separo as ruas, entrego os lados
aos quatro pontos cardeais, faço
do largo um sítio, abro as portas
de um castelo já sem uso.
Subo pelas escadas da torre
até ao cimo dos telhados
uma mancha meio branca
por entre os tapetes de pedra.
Em cima, fica a rua de cima
um gato passa entre as duas
em baixo, fica a rua de baixo.
Escolho as varandas ao redor
há um rio que me leva como um barco
nesse cantar aqui cantado. Hoje tenho
de construir esta planície
as estevas das fronteiras
uma mudança de países
o outro lado retalhado
por vacas e por verdes trabalhados.
Do lado do cemitério
a vida é talvez mais selvagem
os coelhos e as perdizes
e o que nasce sem se plantar.

Rui Almeida

“Nem nos defende a ausência”, de José Augusto Seabra

Dos 21 poetas, nascidos entre 1930 e 1941, incluídos por António Ramos Rosa no volume que constitui a quarta série das ‘Líricas Portuguesas’ (1969), José Augusto Seabra (1937-2004) é, tanto quanto sei, aquele que nunca teve a sua obra poética reunida ou com uma ampla antologia. E todo o sentido faria, pois trata-se de alguém que, nos 14 livros de poemas, publicados entre 1961 e 2002, reflecte um percurso pessoal riquíssimo, que vai desde a experiência do exílio, por causa da oposição ao Estado Novo, até à carreira diplomática que o levou a vários países como embaixador, passando pela experiência académica, em Paris, que o revela como um dos mais importantes estudiosos de Fernando Pessoa, ou pela profunda reflexão crítica da relação da cultura com a cidadania. O poema escolhido é do seu primeiro livro e revela já a marca da «lúcida perscrutação de um espaço interior», apontada por Ramos Rosa, que acompanhará toda a sua obra.

Nem nos defende a ausência:
é o reverso.
Sabemos todos já bem a ciência
da traição que se oculta a cada verso.

Nem nos salva a desculpa
de anoitecer, poetas:
por cada mea culpa,
apontam-nos a morte noutras setas.

Ficar nem chega. Ou ir
ou sepultar-nos.
Foge-nos o tempo já de decidir
Sequer suicidar-nos.

A bem ou mal, poetas.
Liberdade
só esta que sorri por entre as frestas
hesitante do peso da verdade.

Leonardo

“IX”, do “Discurso sobre a reabilitação do real quotidiano”, Mário Cesariny

Por (e para) altura do nosso tempo imediatista, que, por milagre ou paradoxo, consegue estagnar nas coisas mais velhas do mundo, surgir-nos-ia Cesariny. Os seus versos, aqui, não deixam de me lembrar uma cabeça de que se derramasse uma cascata. À superfície temos a imprevisibilidade dos lados para que se derrama, o ritmo estrondoso das águas a bater em si próprias. Depois, são as imagens que se riem ruidosamente de nós, «homens só até aos joelhos», «lindas lindas raparigas só até ao pescoço», «poetas até à plume», riem-se que permitamos que nos fechem o caminho para a «noite Cadillac obsceno». E quem diria que voltaríamos ao tempo (ou nunca saímos?) em que «o joelho está tão barato»? Já no fundo de tanto riso, acredita-se, há-de haver alguma amargura. E, portanto, esperança. Pelo que a maravilha da poesia está aqui: quando as palavras se conseguem alimentar de um tempo e de um espaço posteriores, corroendo-os. Muito mais estará nestes que pisamos, em que se diz muito pouco, ou em que aquilo que se pode dizer tem os seus respectivos estágios de afogamento.

no país no país no país onde os homens
são só até ao joelho
e o joelho que bom é só até à ilharga
conto os meus dias tangerinas brancas
e vejo a noite Cadillac obsceno
a rondar os meus dias tangerinas brancas
para um passeio na estrada Cadillac obsceno

e no país no país e no país país
onde as lindas lindas raparigas são só até ao pescoço
e o pescoço que bom é só até ao artelho
ao passo que o artelho, de proporções mais nobres,
chega a atingir o cérebro e as flores da cabeça,
recordo os meus amores liames indestrutíveis
e vejo uma panóplia cidadã do mundo
a dormir nos meus braços liames indestrutíveis
para que eu escreva com ela, só até à ilharga,
a grande história de amor só até ao pescoço

e no país no país que engraçado no país
onde o poeta o poeta é só até à plume
e a plume que bom é só até ao fantasma
ao passo que o fantasma – ora aí está –
não é outro senão a divina criança (prometida)
uso os meus olhos grandes bons e abertos
e vejo a noite (on ne passe pas)

diz que grandeza de alma. Honestos porque.
Calafetagem por motivo de obras.
relativamente queda de água
e já agora há muito não é doutra maneira
no país onde os homens são só até ao joelho
e o joelho que bom está tão barato

www.omarona.blogspot. com Mário Cesariny de Vasconcelos (1923-2006)

Cláudia R. Sampaio

“Homens que são como lugares mal situados”, de Daniel Faria

Poema que confirma o génio de Daniel Faria e de uma maturidade assombrosa para um jovem poeta. Revelador da sua visão mística e visceral, é ainda de um perfeito domínio formal aliado a uma poesia que ilumina, numa incessante busca e contemplação e numa serena exaltação dos mistérios do homem, intensificando-os, deixando-os no lugar.

Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens sem fuso horário
Homens agitados sem bússola onde repousem

Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas

Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas

Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são como sítios desviados
Do lugar

Pedro Mexia

“A de Sempre, Toda Ela”, de Paul Éluard

Lembro-me do tempo em que comecei a ler seriamente poesia, e em que «a poesia» se identificava quase por completo com este poema de Paul Éluard (traduzido por António Ramos Rosa): aspiração, celebração, invenção, espanto. Comecei por encontrar uma tradução de Hölderlin, clássico-romântico, poeta de grandes exaltações e grandes odes, mas logo depois descobri Éluard, mais acessível, mais contemporâneo, um dos surrealistas franceses, talvez o maior poeta francês do seu tempo. E até encontrar um estilo que fosse mais ou menos meu, este era o estilo eu imitava: a de um intimismo comovido, reiterativo, agradecido, poemas sobre a grande alegria de ter ou não ter, a candura de esperar, a inocência de conhecer. Mas Eliot refreou-me essa tendência, tal como os disfóricos Hardy e Larkin, e Álvaro de Campos, e a vida também. De modo que hoje vejo Éluard como uma recordação de um momento em que a poesia era uma evidência, uma omnipresença. Já não acredito nisso, mas estou grato por essa ficção de juventude

Se eu vos disser: «tudo abandonei»
É porque ela não é a do meu corpo,
Eu nunca me gabei,
Não é verdade
E a bruma de fundo em que me movo
Não sabe nunca se eu passei.

O leque da sua boca, o reflexo dos seus olhos
Sou eu o único a falar deles,
O único a ser cingido
Por esse espelho tão nulo em que o ar circula através de mim
E o ar tem um rosto, um rosto amado,
Um rosto amante, o teu rosto,
A ti que não tens nome e que os outros ignoram,
O mar diz-te: sobre mim, o céu diz-te: sobre mim,
Os astros adivinham-te, as nuvens imaginam-te
E o sangue espalhado nos melhores momentos,
O sangue da generosidade
Transporta-te com delícias.

Canto a grande alegria de te cantar,
A grande alegria de te ter ou te não ter,
A candura de te esperar, a inocência de te conhecer,
Ó tu que suprimes o esquecimento, a esperança e a ignorância,
Que suprimes a ausência e que me pões no mundo,
Eu canto por cantar, amo-te para cantar
O mistério em que o amor me cria e se liberta.

Tu és pura, tu és ainda mais pura do que eu próprio.

Paul_Éluard_circa_1930

Antonio Cicero

“Anoitecer em Outubro”, de Ferreira Gullar

Observe-se uma característica curiosa desse poema. Ele evoca a transitoriedade da vida humana, porém não é depressivo. É que o poema celebra esse momento particular da vida, logo, celebra a vida, mesmo reconhecendo sua finitude. O poema é um monumento a esse momento efêmero da vida, momento mais valioso ainda até mesmo em virtude de sua efemeridade. “Efêmero” é o que dura um dia: e o poema colhe esse dia: “carpe diem”, como se diz em latim.

A noite cai, chove manso lá fora
meu gato dorme
enrodilhado
na cadeira

Num dia qualquer
não existirá mais
nenhum de nós dois
para ouvir
nesta sala
a chuva que eventualmente caia
sobre as calçadas da rua Duvivier

Renata Correia Botelho

“Doutor eu tenho uma guerra tremenda dentro da minha cabeça”, de António Amaral Tavares

Era-me, até há poucas semanas, desconhecido o seu nome: António Amaral Tavares. Nunca lera nada dele, não me soava sequer familiar. Cheguei à sua poesia depois de o saber vencedor, no final de 2015, do Prémio Nacional de Poesia Diógenes, atribuído pela revista Cão Celeste. Foi dos encontros mais impressionantes que vivi. Um estrondo que nos fica a latejar, impiedoso, entre os dedos e o coração. Despojado de astúcias poéticas, cru e dorido como a noite. E, no fim das palavras, como se à noite não se seguisse mais nada.

Doutor eu tenho uma guerra tremenda dentro da minha cabeça
um euro e trinta e cinco cêntimos 16 de Agosto de 2011
não dá para o tabaco. Quero lembrá-lo que o verão está a acabar

e eu já ouço passos nos caminhos da lama e do medo
e há coisas que só no verão se fazem e eu ainda não fiz
como ouvir o rumorejar do mar nos meus pulsos.

Os seus medicamentos doutor deixam-me sem mim
o meu pai disse-me que a minha doença só lhe traz problemas
doutor há uma pedra intraduzível entre nós dois

quero dizer-lhe que há pessoas muito pobres que querem
o meu rim esquerdo doutor o mundo não é perfeito
e não me diga para lhe contar tudo como a um padre

eu não quero morrer outra vez essa frase fá-lo muito feio.
Acredite que vi gente morrer porque era maior que o corpo
tenho a impressão que o corpo não sabe o que tem dentro

acredite que consigo fundir uma lâmpada só com o olhar
já fundi muitas lâmpadas só com o olhar
e que vi um anjo atravessar os muros de um hospício

rasante e belo como uma garça.
Doutor há muito pouco tempo para a poesia.
Isto que lhe digo é verdade todos os dias doutor.

a amaral tavares

José Anjos

“Como?”, de Vasco Gato

Poema absoluto do Vasco Gato sobre o mistério da sublimação e do seu maior ofício: o gesto. o gesto de colher, de receber na medida certa da intenção (a nossa e a das próprias coisas); o gesto que desaparece para dar lugar ao fruto; o gesto de ter escrito— o “mover de mão” —; o poema — gesto e fruto ao mesmo tempo; o gesto de ter acabado de o ler pela primeira vez; o gesto de repetição; a pergunta — gesto de empreender a percepção do que ainda não existe; a espera — gesto do tempo; o tempo — gesto de Deus.

colher
dos ramos altos
sem saltar
o fruto sereno
da tua passagem
— como?

vasco gato

Carlos Bessa

“Desculpas não faltam”, de José Miguel Silva

Entre os muitos poemas de que gosto escolho “Desculpas não faltam” (do livro Serém, 24 de Março. Averno, 2011), de José Miguel Silva, pelo tom e pelo modo como, em poucos versos, se mostra que a poesia que realmente importa seduz, emociona e deslumbra, podendo mesmo brincar prosaicamente com topos e temas clássicos e transfigurar, com algum humor, pequenos aspectos do quotidiano, que ganham assim outra claridade.

Uma casa junto ao Vouga,
rio de água suficiente,
onde apenas se mergulha
até à cintura, a pequena horta
de Virgílio, o amor robustecido
por nenhuma esperança
e tantos livros para ler
– que desculpa vou agora dar
para não ser feliz?

silvajm_foto

João Rios

“Ao lado”, de Joaquim Castro Caldas

Verso a verso o poema entranhou-se como corpo de pássaro sobre a toalha de mesa. Do seu voo restam ainda cores de incêndio e a mais genuína arte de reeducar o silêncio.

havia tantas coisas
que eu te queria dizer
se não fosse o abismo

de te perder num afago
de te ter do outro lado
do medo à minha beira

havia tantas coisas
que eu te queria dizer
se não fosse o amor

que há noites ao teu lado
em que me dói não sei
onde é que a distância ai

Rui Cóias

“The Hollow Men”, de T.S. Eliot (excerto)

Ler e pensar este poema de Eliot é como escolher o fim de um mundo, o início de um tempo agonizante, acompanhar uma mão que vai esculpindo, com o seu rigor, crueza formal e limpidez absolutamente inebriantes, as lamentações de ideais perdidos do primeiro quartel do século XX, que são, na sua essência, como que uma estrela crepuscular na história que nos dirige através do desmoronamento e da ambiguidade sombria.

A sua imagem permite-nos a rememoração enigmática, como se andássemos ao longo de um vale vazio (hollow valley) atormentados pelas cinzas da esperança, da nossa, e do mundo, enquanto, mesmo por isso, ouvimos para sempre os seus versos na voz entrecortada de Marlon Brando, entre as sombras, da selva, do Apocalypse.

Nós somos os homens vazios

Somos os homens de palha

Apoiados uns nos outros

A parte da cabeça cheia de palha. Ai

As nossas vozes foram secas e quando

Juntos sussurramos

São serenas e sem sentido

Como vento em erva seca

Ou pés de ratos sobre vidro partido

Na secura da nossa cave

Molde sem forma, tonalidade sem cor,

Força paralisada, gesto sem movimento;

Os que cruzaram

Com os olhos certeiros, para o outro reino da morte

Lembram-se de nós – quem sabe – não de

Violentas almas perdidas, mas somente

De homens vazios

Homens de palha.

Thomas_Stearns_Eliot_by_Lady_Ottoline_Morrell_(1934)

Nuno Costa Santos, 41 anos, escreveu livros como “Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco” ou o romance “Céu Nublado com Boas Abertas”. É autor de, entre outros trabalhos audiovisuais, “Ruy Belo, Era Uma Vez” e de várias peças de teatro.