Toque de Sousa para Madjer, atraso do argelino, bola a rolar, início de jogo. Os assobios enquanto o FC Porto tem a posse já indiciam qualquer coisa, a ovação no primeiro corte de jogadores do Bayern mostra o resto: Viena recebe mesmo um confronto entre Golias e David (dentro e fora de campo), que ainda por cima está limitado com as ausências por lesão de Lima Pereira, Gomes e Jaime Pacheco. E no primeiro ataque, Hoeness, o calmeirão de 34 anos e 1,90 metros, consegue cabecear a bola na área um pouco ao lado, num lance onde Madjer aparece a defender quase no limite da área.
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O ataque dos dragões está entregue a Futre, o camisola 10. E só Futre. Grande parte da Europa está de olhos neste canhoto capaz de fintar dois e três adversários numa cabine telefónica, mas ele joga sozinho nos últimos 30 metros do campo. Por estratégia, nitidamente: Madjer baixa na direita para vigiar as subidas de Pfügler, Quim com a ajuda de Sousa tenta travar as investidas de um dos melhores laterais direitos da atualidade, Winklhofer. Até que Jaime Magalhães dá um abanão no jogo, com uma jogada onde finta o primeiro, desvia o segundo e coloca a bola para ir tentar buscar em corrida às costas da defesa bávara antes de sofrer uma entrada dura que o atira sem piedade para o chão agarrado à perna. Ele, melhor do que ninguém, sabe a importância desses momentos na final de uma prova europeia. Até porque ele, a par de João Pinto, Eduardo Luís e Sousa, esteve na derrota frente à Juventus na Taça das Taças de 1984.
O FC Porto mantém a sua estrutura muito junta, a fechar todos os espaços, mas o Bayern tenta de todas as maneiras chegar à área dos dragões. Todas as maneiras e feitios: até os lançamentos laterais servem para colocar diretamente a bola na molhada à espera de um golpe de sorte, com o polivalente Brehme a mostrar força de braços para Eduardo Luís contrapor com força no jogo aéreo. Os azuis e brancos atacam pouco mas mais ou menos bem, dentro do género. Mas o banco está nervoso: o adjunto Octávio Machado bate com os pés, o delegado ao jogo fuma um cigarrito. As equipas anulam-se e quem mostra serviço são os responsáveis do relvado do Prater, em Viena, que carregaram e bem nas marcações do campo: cada vez que a bola toca numa das linhas, salta sempre uma nuvem de pó. A cal é boa e recomenda-se.
Lothar Matthäus, o capitão faz-tudo do Bayern, pensa a construção de jogo, orienta a primeira fase de transição defensiva e ainda marca livres: aos 22′, um toque bastou para a desviar a bola da barreira e colocá-la a jeito para o pontapé forte mas à figura do guarda-redes Mlynarczyk. Ai é? Então toma lá: um minuto depois, Celso, que está acostumado a marcar livres diretos (quem se esquece do balázio que enganou Vítor Damas frente ao Sporting), atira forte, fortíssimo, mas ao lado da baliza desse vulto das balizas mundiais que é Jean-Marie Pfaff.
Mas já se sabe, no futebol a mínima distração é a morte do artista. Mas acontece: aos 25′, Jaime Magalhães coloca-se junto à linha para perturbar o lançamento de Pfügler, o árbitro belga Alexis Ponnet pede ao número 7 para ir para trás, o lateral faz o arremesso de forma rápida, o médio azul e branco desvia apenas de raspão a bola e Kögl, de cabeça, faz o desvio certeiro para a baliza dos dragões. O Bayern adianta-se no marcador na final de Viena.
Rummenigge, Michael, não é tão bom como o irmão Karl-Heinz mas vai aproveitando os poucos espaços entre linhas para tentar aparecer. Hoeness, Dieter, não é tão bom como o irmão Uli mas vai desgastando a defesa portista com a sua envergadura física. Mas é Kögl que marca e faz a diferença em campo, com os seus raides pelo flanco esquerdo. Ainda assim, em vantagem, o Bayern tanta chamar o FC Porto, trocando a bola cá atrás. Os dragões não se deixam cair no engodo e continuam com Madjer, o dianteiro que brilhava desde o Mundial de 1982 entre os vários períodos de lesões, mais preocupado em defender do que propriamente em ajudar Futre no ataque. Rummenigge (39′) e Hoeness (42′) tentam o 2-0. Celso, de livre direto, ameaça o empate (45′). E chega o intervalo.
Artur Jorge lê o jogo ao intervalo e mexe. Mexe e bem, não só pela substituição em si mas também pelo posicionamento dos jogadores em campo: Juary, o talismã que passou por várias equipas italianas e que todos têm na retina pelos três golos ao Barcelona, junta-se a Futre no ataque, Madjer passa a atuar em terrenos mais centrais, Jaime Magalhães e Sousa ocupam posições mais laterais no meio-campo. Algo que o Bayern nunca consegue contrariar durante a segunda parte. Nem sequer perceber, para tentar travar.
Madjer, com dois remates de ressaca de fora da área a passarem ao lado, deixa os primeiros avisos. E Udo Latek, técnico dos bávaros, sai disparado do banco, louco com a forma como Artur Jorge transformara David em Golias no domínio do encontro. Depois, é Sousa que arrisca a sua sorte, mas a bola passe de novo ao lado. O Bayern, no único lance de perigo nos primeiros 15 minutos, fica a queixar-se de uma grande penalidade não assinalada por falta de João Pinto sobre Kögl. Duvidoso, certo. Mas num jogo tão ríspido dentro do fair-play, a coisa passa bem. Até porque está bonito, com Futre a fintar um-dois-três-quatro até rematar de pé esquerdo ao lado.
Artur Jorge olha para o banco. Há Festas, há Frasco, voltou a haver Casagrande, o avançado brasileiro que parece recuperado da grande lesão contraída com o Bröndby em Copenhaga. A fórmula das últimas semanas está de regresso e agora é a sério: sai o lateral esquerdo Inácio, entra o médio Frasco. Eduardo Luís, central, descai para a esquerda, Celso fica sozinho no eixo, André recua quando os dragões não têm bola. Tudo pronto para o ataque final ao golo do empate, frente a uma equipa do Bayern que está sem gasolina e olha para Udo Lattek mas não vê aditivo extra à vista. Golias era um tigre de papel que podia cair ao mínimo sopro. É isso que acontece. E que sopro.
Eduardo Luís faz o lançamento para Celso, joga à frente em André, lateraliza em João Pinto, varia o jogo para Eduardo Luís, dá na frente em Madjer, atrasa para André, devolve a João Pinto, dá em Eduardo Luís, passa a Frasco, combina com Juary, bola em Frasco, solicitação de Juary na área, cruzamento atrasado, calcanhar de Madjer… gooooooooooloooooo do FC Porto. Uma obra-prima terminada com classe e que tem a bola nos pés dos jogadores portistas durante 46 segundos. Os mesmos 46 segundos que mudam por completo a final.
Madjer está cansado. Espremido ao máximo. Vai até à linha lateral e, enquanto Rodolfo Moura vai aplicando o milagroso spray nos gémeos para aguentar os 13 minutos que faltam para o final do encontro, Domingos Gomes fala com o argelino enquanto agarra o garrafão da água. Madjer reentra em campo. E, 81 segundos depois, aos 79′, o golo adianta-se no marcador: passe longo de Celso para a esquerda, raide em velocidade de Madjer que deixa sentado no chão Winklhofer, cruzamento de pé esquerdo e Juary, ao segundo poste na pequena área, encosta para o 2-1 que poucos acreditariam no início do jogo mas que todos esperavam ao longo da segunda parte.
O tempo passa, as buzinas da zona das bancadas dos adeptos do FC Porto até parecem ter um som mais rouco. Já estamos no período de compensação e os fotógrafos, num passo vagaroso, saem da linha de fundo para se prepararem para a festa. Alguns estão mesmo em frente ao banco dos azuis e brancos, mas ainda de costas para a alegria contagiante que está prestes a rebentar. Final do jogo, loucura em Viena!
Estávamos a 27 de maio de 1987. Exatamente há 30 anos. Mas podia ter sido hoje, tal como o relato da primeira conquista europeia de sempre do FC Porto neste texto.
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