Ninguém devia nunca ter 14 anos, ser exposto à trágica situação de ter 14 anos, e nunca ninguém devia nunca ter 14 anos em 1989, o ano em que os Cure editaram Disintegration (para gáudio de todo o miúdo de 14 anos, melancólico, tímido e com bom gosto); e o ano em que Peter Weir realizou o “Clube dos Poetas Mortos” (para susto e gáudio de todo o miúdo de 14 anos, melancólico, tímido e com bom gosto).
Houve ótimos filmes em 1989, provavelmente mais conseguidos que Clube dos Poetas Mortos ou que resistiram melhor à passagem do tempo: o espantoso “Do The Right Thing”, de Spike Lee; “Sexo, Mentiras e Vídeo”, de Steven Soderbergh, que inventou o cinema indie; “Crimes e Escapadelas”, um Woody Allen vintage; “Drugstore Cowboy”, o primeiro filme de Gus Van Sant com alguma exposição. Tudo filmes que, mais que marcar uma época, impuseram um olhar e ainda hoje mantêm o queixo erguido.
Mesmo entre o cinema comercial há uma série de títulos que tinham tudo para arrasar a concorrência, de tal modo que um filminho sensível como o “Clube dos Poetas Mortos” – que fez trinta anos a 2 de junho e quem me dera só ter trinta anos a 2 de junho – nem sequer devia ter chegado aos olhos dos adolescentes de 14 anos: “When Harry Met Sally” (o da famosa cena do orgasmo de Megg Ryan); “Nascido a 4 de Julho”; o último Indiana Jones da trilogia original; o primeiro Batman, de Tim Burton; “A Guerra das Rosas”. Ou, na secção-extremamente-comercial, “Regresso ao Futuro II”; “Arma Mortífera II”; “Caça-Fantasmas II” ou “Querida, Encolhi os Miúdos” – uma lista que hoje soa assustadora.
[o trailer de “Clube dos Poetas Mortos”:]
É de facto espantoso que filmes como “Do The Right Thing” e “Sexo, Mentiras e Vídeo” tenham conseguido espaço mediático – porque se repararem bem naquela lista, não há ali um filme acabado em II que não tenha sido meticulosamente desenhado para produzir gratificação imediata, ou pelo menos tão imediata quanto era possível em 1989. O que torna ainda mais espantoso o feito de “Clube dos Poetas Mortos”, um filme cuja trama pode ser descrita como: um professor ensina poesia aos alunos.
É suposto que um filme em que se passa boa parte do tempo a dizer poesia seja motivo de chacota pela exata população a que se dirige: os adolescentes. Talvez até tenha havido chacota – mas também foi um êxito que fez mais de 200 milhões nas bilheteiras e arrecadou um César e um BAFTA para melhor filme, além do prémio David di Donatello para melhor filme estrangeiro e uma nomeação para o Óscar. Talvez mais importante que isso: há uma geração que se identifica com o filme.
Uma boa parte do charme do filme reside em Robin Williams, que começava aqui a desconstruir a sua imagem de comediante febril e obcecado com a fazer rir de forma compulsiva – a autofagia de Williams dá lugar a uma tristeza no rosto que parece ocupar o ecrã sem fazer qualquer tipo de esforço. Tudo isto é ainda mais pungente trinta anos depois perante o suicídio de Wiiliams.
Não foi só a carreira “séria” de Robin Williams a ser espoletada por “Clube dos Poetas Mortos”: Ethan Hawke tem aqui o seu primeiro grande papel, enquanto Todd, um aluno particularmente tímido; Robert Sean Leonard, que veio mais tarde a ser conhecido como o melhor amigo de Dr. House na série com o mesmo nome desempenha aqui o papel de Neil, o miúdo que descobre o teatro.
A ação de “Clube dos Poetas Mortos” – e podia muito bem estar ali “inação” em vez de ação – passa-se em 1959, quando John Keating, a personagem desempenhada por Williams, é indigitado professor de inglês na Welton Academy, uma escola só de rapazes. A expressão “escola só de rapazes” só por si já denota o tipo de mundo em que estes miúdos viviam – ou o tipo de mundo em que o mundo vivia em 1959: fechado, elitista, emocionalmente gélido, cheio de regras e regrinhas, com papéis definidos e em que a possibilidade de alguém exprimir a sua individualidade ou viver fora da conformidade social ou de alguém resolver um problema emocional é nula.
Keating não se limita a ensinar literatura aos alunos – o que ele pretende é que eles se borrifem para as normas que a sociedade lhes impinge e que pensem pelas suas cabeças. Em suma, que sejam indivíduos. Numa das cenas iniciais ele manda os alunos arrancarem as páginas introdutórias do livro de poesia, em que se explicava como classificar a qualidade da poesia de acordo com uma fórmula matemática.
Isto pode parecer-vos incompreensível e à luz do tempo é-o – mas houve de facto uma época em que um poema tinha de ter X sílabas e rimar de determinada forma; e em que essa visão do mundo alastrava pelo resto da existência: havia uma maneira certa de vestir, de pensar ou sentir; a lista do que era socialmente inaceitável não parecia ter fim; questionar a autoridade era um pecado mortal.
É mais ou menos isso que Gale Nolan, o reitor da escola, diz a Keating, a dada altura: que ele deve impedir que os seus alunos questionem a autoridade. Por esta altura já Nolan deu umas valentes reguadas no rabo de Charlie Dalton, um dos alunos de Keating, depois de este publicar um artigo no jornal da escola a defender a inclusão de raparigas. A liberdade, seja em 1959 ou 2019, tem um preço.
O nome “Clube dos Poetas Mortos” refere-se a um clube de apreciação de poesia a que Keating pertencia quando era estudante naquela mesma escola; quando os seus alunos descobrem este “segredo”, imbuídos do espírito libertário (por assim dizer) de Keating resolvem ressuscitar o clube. Começam por ler mas a dada altura também desatam a criar poesia ou a lutar pelo amor de raparigas que até então lhes estavam vedadas ou a fazerem teatro contra a vontade dos pais.
Isto é um pormenor mas serve para dar contexto: a personagem de Keating foi baseada em Samuel F. Pickering Jr., professor de inglês na Universidade do Connecticut – e professor do argumentista Schulman. O impacto de Pickering foi grande – e isto é uma forma de dizer que apesar de “Clube dos Poetas Mortos” romantizar a poesia, romantizar a subversão, ser até pedagógico em relação à ideia de liberdade, o que o filme propõe (a libertação de códigos sociais antiquados através da exploração artística, que mais não seja enquanto leitor) é bem real: ler muda-nos, não nos torna obrigatoriamente melhores (é ingénua a ideia de que um homem muito lido é obrigatoriamente melhor pessoa que um pouco lido), mas pode mudar-nos de forma acentuada.
Parece-me haver uma contradição em “Clube dos Poetas Mortos”: defende a subversão sem que deixe de ser um filme “certinho”, polido, correto, bem comportado. A poesia é vista como um bem em si (como se não houvesse quilómetros de péssima poesia no mundo – e como se alguma dela não estivesse a ser elogiada no próprio filme); a ideia de libertação parece passar por obrigar um miúdo tímido a dizer poesia de forma altamente emocional em frente aos colegas (por exemplo: alguém que me obrigasse a isto levava uma cabeçada – e a cabeçada também é uma forma de não conformidade); os alunos (aqueles, pelo menos) são retratados como miúdos bons que são oprimidos pelos códigos vigentes, apenas à espera de um professor que, por vezes, parece ter-se esquecido que está a lidar com crianças e que tal injeção de subversão pode ter um preço.
Acaba por ter, aliás: Neil começa a fazer teatro; o pai descobre, opõe-se a tal atividade, Neil pede conselho a Keating, que lhe diz que não deve ceder; o pai de Neil informa-o que vai transferi-lo para uma academia militar; Neil suicida-se.
Quando era mais miúdo o suicídio de Neil parecia-me uma inequívoca demonstração da injustiça do mundo, a prova de que os miúdos estavam mesmo sozinhos e eram mesmo incompreendidos – e não me parece que esteja a puxar a brasa à minha sardinha se presumir que muitos outros garotos tenham sentido o mesmo.
Hoje acho esse momento do filme até certo ponto realista (que mais não seja porque três anos depois de ter visto o filme conheci o primeiro de vários Neils) mas, acima de tudo, uma forma de a narrativa mostrar a distância entre a beleza da ilusão e a mesquinhez da realidade. O que se segue é, aliás, um tratado de realismo, pelo menos até à cena final: a maior parte dos alunos assina uma carta a culpar Keating pelo suicídio de Neil; o aluno que não a assina acaba por ser expulso da escola.
Na cena final Keating vai buscar os seus pertences, interrompendo a aula de inglês (que agora é dada pelo mesmo reitor que o despediu); um dos alunos confessa que foram obrigados a assinar aquela carta e alguns dos alunos sobem às carteiras e citam o “O Captain! My Captain!”, de Walt Whitman.
Já gostei mesmo muito de “Clube dos Poetas Mortos”, já o achei tremendamente aborrecido ou delicodoce ou pedagógico; hoje gosto um bocadinho mais, embora ainda menos do que quando era adolescente. É normal: agora sou um adulto que é pai de uma criança de nove anos; é inevitável que tenha um certo cinismo ou, se quiserem, que a minha visão do mundo tenda para o realismo.
Esse realismo leva-me a achar que a cena final trai o impacto do suicídio de Neil. É como se o argumentista se arrependesse de ter abandonado o romantismo que marca o filme e quisesse redimir-se; como se (e agora vou ser mauzinho) quisesse agradar ao público-alvo de adolescentes leitores e sensíveis. Como se lhes dissesse: “Oiçam, apesar de tudo os maus não ganham sempre”. Caso achem que estou a ser cínico: John Schulman, o argumentista de “Clube dos Poetas Mortos” escreveu outro filme no mesmo ano: “Querida, Encolhi os Miúdos”. Ele sabe como agradar às massas.
Mas os maus ganham mesmo muitas vezes – e era outro texto estabelecer o sentido de “mau”, de como é que um “mau” se torna “mau”, porque, como dizia Larkin, referindo-se a todos os pais do mundo, “they were fucked up in their turn/ By fools in old-style hats and coats”.
[umas das cenas clássicas do filme:]
https://www.youtube.com/watch?v=j64SctPKmqk
Situações como a descrita no filme aconteceram muita vezes – mas no fim os garotos não se punham em cima das mesas a recitar poesia, em frente ao reitor. Baixavam a cabeça, tentavam atirar a sua culpa para debaixo do tapete, interiorizavam que por via das dúvidas era melhor não pôr nada em causa e um dia, já bem traumatizados, começavam a beber às escondidas ou a arrear nos filhos.
O final poupa-nos a isso e se calhar foi melhor assim – porque pelo menos enquanto adolescentes acreditámos que havia redenção pela beleza. Aliás, eu ainda acredito nisso – mas com um twist: acredito que aqueles que sobreviveram a educações sufocantes podem um dia, com muito esforço, muita humildade e muito amor pelos filhos escolher não lhes fazer mal, antes dar-lhes a liberdade de experimentar e bater com a cabeça nas paredes – e quando eles falharem, estar ali para os amparar.
E não me digam que não há poesia nisso.