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40 anos de Finalmente: viagem ao mundo secreto das plumas e extravagâncias

Famosa pelos espetáculos de travestis, assinala 40 anos esta semana e torna-se uma das mais antigas discotecas de Lisboa. Breve viagem a uma história de plumas e extravagâncias.

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Rezam as crónicas que o Finalmente Club abriu portas a 2 de maio de 1976, no número 38 da Rua da Palmeira, junto à Praça das Flores, o rés-do-chão de um prédio de dois andares que no fim dos anos 60 esteve à beira da demolição. É possível que a data seja aquela, mas não há certezas. Em rigor, sabe-se que o bar aparece meses depois da inauguração da primeira casa de transformismo em Portugal, o Scarllaty Club, na Rua de São Marçal, sítio “indiscutível e apetecível” que “abriu fronteiras na mentalidade das pessoas”, como recorda o fundador, Carlos Ferreira, também conhecido pelo nome artístico Guida Scarllaty.

Naquela época, “não havia cão nem gato que não quisesse fazer travestismo”, observa Carlos Ferreira. “Começou a haver pequenos grupos que iam beber inspiração ao Scarllaty para fazerem, noutros bares, espetáculos e números iguais ou pouco diferentes, e o Finalmente foi um deles.”

O boom do transformismo era consequência óbvia do 25 de abril de 1974. Homens vestidos de mulher, em contexto artístico, já não era coisa apenas para peças de teatro. Passava a estar ao serviço da libertação dos homossexuais, mesmo se a homossexualidade continuou a constar do Código Penal português até 1982.

“Por algum tempo, estes espetáculos serão uma espécie de alavanca colorida, provocante, de um atrevimento inaudito por vezes, de uma certa movida lisboeta”, escreveu a jornalista e escritora Manuela Gonzaga na biografia António Variações: Entre Braga e Nova Iorque (2006). “Lisboa foi inundada pelo travesti”, noticiava a revista Opção em fevereiro de 1977, calculando em meia centena o número de travestis que atuavam em clubes lisboetas.

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Desde então, o travestismo – principal atração do Finalmente – consiste em espetáculos musicais em playback, inspirados nos cabarets franceses e americanos, com uma linguagem kitsch, próxima da revista à portuguesa. Uma veneração do feminino, carregada de trágico e de cómico.

[espetáculo de 2014 no Finalmente]

O Armando das “muitas artes”

Quem o conheceu bem, resume a biografia. Nasceu no Porto em 1935, órfão de pai e mãe, foi criado no Barreiro por uma vendedora de fruta e tornou-se jogador de futebol, não se sabe em que clube de segunda grandeza. Pouco instruído, torna-se homem duro e trabalhador. É Armando Teixeira, falecido em 2006, um dos fundadores do Finalmente e respetivo dono por 30 anos. Atraído pela noite, começa a frequentar o bar Memorial (que em meados de 70 se chamava Gato Verde), local de homens e mulheres homossexuais, no Príncipe Real.

“O Armando era uma pessoa pobre, mas muito dinâmica e queria subir na vida”, descreve Fernando Santos, a transformista Deborah Kristal, nome cimeiro do Finalmente desde há vários anos, conhecida do grande público como protagonista do filme Morrer como um Homem (2009), de João Pedro Rodrigues.

Um dia, um cliente do Memorial, percebendo a empatia de Armando com os clientes, e outras qualidades que só os da noite poderão saber, propõe-lhe um negócio: abrir um bar ali perto, no Príncipe Real, com espetáculos de transformismo. Armando não hesitou. O cliente de que se fala é Eduardo Paradela, empresário que morreu recentemente. Juntava-se-lhes outra sócia, cujo nome está perdido. Desligam-se do Finalmente pouco depois, deixando Armando como único patrão.

“Ele tinha muitas artes e toda a vida recorreu a elas”, afirma Fernando Santos. “Na época ainda havia em Lisboa todo um resto de hábitos e costumes do antes do 25 de Abril: os proxenetas que tinham as meninas nos cabarets e os boxeurs do Parque Mayer que dominavam a cidade”, contextualiza. “Não havia ainda o fenómeno da droga, mas havia a prostituição e à volta disso moviam-se muitos malandros e marialvas.”

Armando enfrentará, durante décadas, os problemas da noite: os roubos, as ameaças, os boémios, os conflitos dentro da discoteca, que tantas vezes acabavam em pancadaria e destruição. “Era esperto, desenrascado e rude”, diz Domingos Machado, a transformista Belle Dominique, famosa nos anos 70 e 80 e uma das artistas que passaram pelo Finalmente.

Em setembro de 2006, Armando vendeu o Finalmente ao arquiteto e empresário galego José António Marquina. Morreu três meses depois, na noite de Natal.

O arranque discreto

Não é de crer que o Finalmente tenha tido êxito nos primeiros tempos. A imprensa dava grande destaque aos shows de travestis, mas o Finalmente nunca aparecia contemplado. Em Fevereiro de 1977, a revista O Século Ilustrado fazia capa com “A moda que deu no goto: homem vira mulher”, uma reportagem do jornalista Luís Machado que apontava apenas três palcos de transformismo: Travelot (futuro Trumps), Porão da Nau (junto à Maternidade Alfredo da Costa) e Scarllatty.

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Num texto obviamente datado, a revista apresentava uma visão clara sobre o papel do travestismo no Portugal dos anos 70 e os motivos por que a vida gay se passava quase sempre em ambiente noturno:

“Combatido desde há muito, quer pelo Governo quer pela própria igreja, o homossexualismo tem sido sempre mal encarado pela nossa sociedade. Convenhamos até que não será tarefa fácil alterar de um momento para o outro a ótica de uma sociedade conservadora, que não abdica do seu conceito tradicional de família. Perante certa agressividade dessa mesma sociedade, o homossexual tinha (e às vezes ainda tem) a absoluta necessidade de fazer a sua vida muito discretamente e às escondidas. A ansiedade e o sofrimento destes seres era originado muitas vezes pela marginalização que lhes era imposta. Locais noturnos onde pudessem estar tranquilos, sem o risco de serem ridicularizados ou agredidos, eram raros e representavam um verdadeiro paraíso.”

Ao princípio, o Finalmente “foi mais um bar gay que abriu, tinha a sua clientela, mas os espetáculos eram muito amadores”, observa Carlos Ferreira. Só depois do encerramento temporário do Scarllaty, por volta de 1978, é que o Finalmente desponta.

O cantor António Variações chega a ser cliente, por volta de 1979. Nesse ano, o jornal Sete inclui o Finalmente numa lista de “bares e boîtes” de Lisboa. Funcionava, então, todos os dias, das 22h00 às 02h00 (hoje é da meia-noite às seis da manhã). Às quintas e domingos tinha o espetáculo Até que Enfim, Xô, com a famosa Lydia Barloff (José Manuel Rosado), Doll Phoenix (Sérgio Alves), Ruth Bryden (Joaquim Centúrio de Almeida) e Diva Corelli. Os bailarinos eram Jaime Rosa, João Paulo, Paulo Maya e Armando Domingues. Havia dois DJs de serviço: Armando Laje e Carlos Jorge.

“A Doll Phoenix era considerada a melhor artista, porque fazia os bonecos e ficava igual às personagens, como a Barbra Streisand”, recorda Fernando Santos. “O Rosado, que era ator no Teatro da Graça, foi o travesti mais famoso da década, parece que fazia ópera chinesa, carregava a maquilhagem, só fazia números cómicos, quem via nunca mais esquecia.”

Quanto a Ruth Bryden, que morreu em 1999 e serviu de mote ao romance Que Farei Quando Tudo Arde? (2001), de António Lobo Antunes, era vista como “símbolo de perfeição, tal o cuidado que tinha com o guarda-roupa e os acessórios”, resume Fernando Santos.

Um espaço mínimo e tudo acontece

Se muitos artistas na época sentiam obrigação de apresentar espetáculos “não alienatórios” ao serviço da Revolução, como então se dizia, os travestis de Lisboa baralhavam e davam de novo. Ruth Bryden, que tinha começado como empregado no Scarlatty e depois passou a artista, estreia-se como cabeça-de-cartaz do Finalmente em 1982.

O show intitula-se Caramella C’est Moi. Não há revolução, nem educação das classes operárias, apenas burlesco e fantasia. O êxito é tal que as apresentações, inicialmente em três noites semanais, logo passam a diárias, menos à segunda-feira. É aí também a estreia, como bailarina, de Cindy Scrash, que virá a ser diva do realizador João Pedro Rodrigues nos filmes “Morrer como um Homem” e “A Última Vez que vi Macau” (2012).

“Na época ainda havia em Lisboa todo um resto de hábitos e costumes do antes do 25 de Abril: os proxenetas que tinham as meninas nos cabarets e os boxeurs do Parque Mayer que dominavam a cidade. Não havia ainda o fenómeno da droga, mas havia a prostituição e à volta disso moviam-se muitos malandros e marialvas.”
Fernando "Deborah Krystall" Santos

Tal como hoje, o Finalmente era um espaço muito pequeno. O palco, que hoje ocupa um lugar de destaque, não existia. “Era um pequeno estrado improvisado que se punha e tirava, ao lado do balcão”, precisa Fernando Santos, que trabalhou no Finalmente em 1984 pela primeira vez. “Nessa fase havia animação desde as 11 da noite até às seis da manhã, vinham muitos artistas fazer números de variedades e até se dizia poesia”, recorda Deborah Kristal. “Agora, imagine-se o que era o público já bem bebido a ouvir dizer Fernando Pessoa às quatro da manhã.”

Donna Summer, Boney M e outros nomes do disco sound faziam furor. Os clientes, recorda Domingos Machado, eram “pessoas com bom aspeto, homens e mulheres, não necessariamente lésbicas”. Muito mais tarde, “começou a aparecer alguma prostituição”, nota.

Para os que conhecem bem a noite gay, os nomes dos travestis que passaram pelo Finalmente são parte integrante da história. Além dos já referidos, não podem faltar Zizi Mayer e Fanny Star, ou ainda Cláudia Ness, Betty Brown e Patrícia Russel, entre tantas outras. O mesmo se diga dos bailarinos: o venezuelano Jorge Marín, o chileno Roberto Gutiérrez, o brasileiro Glover Barreto (que mais tarde abrirá o bar Max), e ainda os portugueses Dani Daniel e Vítor Hugo Sousa.

Deborah Kristal (Fernando Santos) entrou em 1984 e saiu pouco depois. Voltaria em 1994, até 1996, ano em que Lydia Barloff regressou como nome cimeiro, enquanto Ruth Bryden dava que falar no Trumps. No ano 2000, Fernando Santos estabelece-se definitivamente na Rua da Palmeira, onde permanece até agora como diva principal.

Se o espetáculo “Dança das Bruxas”, criado por Lydia Barloff, foi um dos maiores êxitos do início da década de 80, já nos anos 90, com Deborah Kristal, ganhou projeção “A Origem do Cor-de-Rosa”, uma paródia à história dos homossexuais, de Adão e Eva, passando pela Grécia Antiga, até aos nossos dias, com narração de Cândido Mota. “Foi o melhor que alguma vez fiz”, garante Deborah Kristal.

“Lugar às Novas”

No “Finas”, como também é conhecida a discoteca, as segundas-feiras são hoje dedicadas a travestis e performers amadores. A noite tornou-se conhecida como “Lugar às Novas”, embora o nome original seja “Lugar aos Novos” – a versão feminina é uma auto-ironia, como tantas vezes acontece em ambientes gay.

A ideia partiu de Armando Teixeira, no fim dos anos 80, mas a intenção, ao que explica Fernando Santos, nunca foi apenas a de descobrir novos talentos, antes criar mais uma noite forte, igual à de sábado. O objetivo concretizou-se e ainda agora se trata de uma das noites mais concorridas, lugar de sonhos amadores que nem sempre se tornam realidade e forma de dar vazão a personagens e fantasias que vivem nos recônditos.

Foi no “Lugar às Novas” que começou Jenny Larrue, hoje transformista do elenco fixo. Em 1992, a revista Sábado publicava uma reportagem em que Jenny aparecia numa daquelas noites. O mesmo artigo descrevia o espaço como a “única catedral do travesti da cidade” e informava que as bebidas custavam 500 escudos (2,50 euros). Mais este pormenor: “Além dos shows, bebe-se e engata-se”.

[Deborah Kristal interpreta a versão de Bésame Mucho de Dalida]

https://www.youtube.com/watch?v=dpgflP6QM00

Agora mesmo

As visitas de figuras públicas sempre resgataram o Finalmente do submundo a que também pertence. Em março de 2011, a visita da cantora Katty Perry, que tinha dado um concerto em Lisboa, foi comentada à exaustão nas redes sociais. Foi no ano em que o espetáculo diário terminava com uma canção criada pelos próprios artistas da casa (pelas próprias, aliás): “Finalmente, fiz da noite o meu dia, hoje é dor que alumia, dá brilho ao meu olhar”, rezava o refrão.

No dizer de Fernando Santos, o espaço sempre atraiu pessoas fora do chamado mundo gay porque “os espetáculos são como uma gota de um frasco de perfume, um cheirinho da fantasia dos cabarets de Paris ou Las Vegas”.

O tempo não se fez inimigo. Deborah Kristal, Samantha Rox, Jenny Larrue e Nyma Charles continuam a apresentar-se em palco todas as noites. “Depois de todos estes anos, e quatro décadas, num bar, é muito tempo e muito trabalho, o Finalmente é inequivocamente um baluarte do espetáculo de travestis em Lisboa”, resume Carlos Ferreira.

O bar-discoteca do Príncipe Real – que ao lado das discotecas Trumps e Construction forma um triângulo essencial da noite gay de Lisboa – é hoje o último reduto dos espetáculos de travestismo de qualidade, a que assistem pessoas de qualquer proveniência.

Por estes dias, assinala 40 anos de histórias e perdições, tornando-se uma das discotecas mais antigas de Lisboa ainda em funcionamento, tal como A Lontra, na zona de São Bento.

Para celebrar o aniversário, o Finalmente apresenta um modesto programa de festas. A casa nunca precisou de se promover muito e parece que quanto menos se promove mais se torna notada.

No domingo, dia 1, a partir das 22h30, estreia-se um novo espetáculo, Finalmente Forever. Até à meia-noite, a entrada é só para convidados, mas depois as portas abrem-se a todos, há fogo-de-artifício e, pelas três da madrugada, o novo show apresenta-se em segunda sessão.

A madrugada de segunda para terça-feira será preenchida com a atuação de convidados, cujos nomes só serão conhecidos no próprio dia.

Como foi que um espaço minúsculo e associado ao submundo conseguiu sobreviver por quatro décadas, eis o eterno mistério – tão grande que mal permite reconstituir o passado. Os fundadores morreram, faltam fotografias de época e sobra a falta de memórias precisas por parte dos que lá estiveram em 1976.

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