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Durante esta pandemia que se abateu sobre a Humanidade, tenho, como toda a gente, feito coisas que nunca pensei fazer na vida: passar o dia inteiro de fato de treino e com a barba cada vez mais comprida (num look a que chamo Fidel-Castro-chic), beber o meu peso em vinho ao pequeno-almoço, ver vídeos na internet onde ensinam a fazer cabrito à padeiro e coelho à caçador usando apenas latas de atum, ter aulas de japonês, ou ver o Big Brother.
“Ah! Este agora vai dizer que nunca tinha visto o Big Brother!”. De facto, assim é. Nunca tinha visto o Big Brother. Claro que sei o que é, conheço a premissa e chegaram-me ecos das coisas que por lá se passam. Tal qual como a Guerra do Vietname, que também não vi, mas sei o que é, conheço a premissa, e chegaram-me ecos das coisas que por lá se passaram. Quando o Big Brother se estreou em Portugal, há vinte anos, estava entretido com outras coisas, de que não falarei. Ainda que, creio, os crimes já terão prescrito. Antes que digam: “Olha lá, ó holandês, mas este programa foi inventado na Holanda”, respondo já: também a prostituição em montras, e não é por isso que eu vou para a janela dançar can-can. Tal como com outros fenómenos de massas, não entrei na onda primeiro por distração, depois por género e finalmente por birra. Quando me diziam: “Mas tens de ver, aquilo é um estudo de caso sociológico”, sempre respondi, para atalhar a conversa: “Não vejo isso nem que me pagassem”. Afinal, era mentira. Se me pagarem, vejo. E assim, aqui estou, para contar tudo sobre cada um dos concorrentes.
Começo pelo apresentador, que se estreia na condução do programa — ele que se tornou conhecido precisamente numa das edições anteriores.
“O Cláudio Ramos tem o mesmo carisma que a maçaneta de uma porta”, dirão as pessoas maldosas. Exageram. É verdade que estava nervoso e num registo sério, diferente daquele a que já habituou o público, mas conseguiu nunca perder o controlo do programa. E o tom sério não podia ser mais apropriado, não só porque o mundo vive um dos seus momentos mais dramáticos, mas também porque a estas emissões chamam “galas”, e não é suposto estar-se numa gala como se está no sofá de casa.
Num tom confessional, Cláudio contou que esperou vinte anos para realizar este sonho, o de apresentar “o programa da minha vida, o Big Brother”. Isto, só por si, é bonito. Se o programa tivesse tido apenas estes cinco minutos, já teria valido a pena, esta mensagem de esperança para cada um de nós. Com perseverança (e tempo), todos poderemos um dia, quiçá, apresentar o programa da nossa vida. É este o tipo de mensagens que estamos a precisar de ouvir. O sucesso teve, no entanto, um sabor agridoce: não era assim que tinha sonhado este dia, num palco com a plateia vazia. Mas disse, e bem, que o mundo mudou, e o Big Brother mudou também. Sobretudo para calar as vozes críticas que questionam a sensatez de, em tempo de pandemia, juntar dezoito pessoas na mesma casa. Em boa verdade, os concorrentes não seguirão imediatamente para a casa. Primeiro, ficarão numa espécie de quarentena de duas semanas, cada um no seu T0, num hotel, até se ter a certeza de que testaram negativo à Covid-19. Um hotel que, diga-se de passagem, parece ter sido explicado pelo Taveira a um mestre de obras cego. Mas isso já é outra conversa.
Quem sobreviver — no sentido figurado, mas também, infelizmente, literal — até ao fim do jogo leva para casa 50 mil euros. E a chance de quase ter ficado famoso, não fosse o momento histórico que vivemos.
Vamos então conhecer os dezoito participantes, aqui só no sentido figurado, graças a Deus:
Rui Alves
22 anos
É de Vila Real, e tem o ofício de pastor. Durante a primeira gala, Cláudio tinha-se confessado apaixonado por Rui. A sua história é triste, mas contrasta com o tom alegre com que a conta. Abandonado em bebé, foi acolhido por uma família generosa que lhe permitiu ter uma vida confortável como pastor. Dos tempos pré-Covid, Rui sente saudades dos amigos. Aliás, esta é uma questão que foi posta a todos os concorrentes: o que mais falta lhes faz durante a quarentena. A resposta é, invariavelmente, os amigos. É curioso, partilharem esse sentimento com outros sete mil milhões de pessoas. Coincidências.
Mas Rui não vê apenas o copo meio vazio. A Covid fez com que pudesse passar mais tempo com a família e com as suas ovelhas. Sonha também em encontrar um amor, uma mulher que goste de si. Isto é corroborado pela mãe de Rui. “Para ela, desde que não seja com uma ovelha, já não deve ser nada mau”, pensei. Mas repreendi-me logo, por estar a perpetuar este tipo de estereótipos sobre a vida no campo. No seu apartamento, tudo lhe agradou: o poster gigante com ovelhas, a cozinha, o seu acordeão, a sua gaita. A Cláudio, Rui tinha revelado os seus sonhos: ter 400 ovelhas, viver no campo e ser o melhor pastor de Vila Real. “Então porque é que veio para o Big Brother?”, perguntara-lhe, com alguma razão, Cláudio Ramos. E Rui explicou que, para além de ser pastor, sonha também em ser um músico famoso, acompanhado ao acordeão pelas suas ovelhas. Deus quer, o Homem sonha, a obra nasce.
Imagino todo Portugal a apaixonar-se também por Rui. Bem-disposto e divertido, é versão de 2020 daquele anúncio da Telecel. Sabem? Tô Xim? A minha Avó, se estivesse viva e a ver o Big Brother (ou seja, se não fosse a minha Avó), chamar-lhe-ia “um pateta alegre”. E toda a gente gosta de um pateta alegre.
Iury
27 anos
É de Oliveira do Bairro. E, não desfazendo, nota-se imenso. Desde pequena que a jovem ganha tudo quanto é concurso de beleza, aquilo a que se chama as misses. A própria mãe, de resto, organizava o concurso de Miss USA. Não é que eu conheça a senhora, não faço ideia quem seja, nem faço tenções, já tenho problemas que cheguem. Foi a própria concorrente — chamemos-lhe Miss Iury — quem deu esta nota biográfica sobre a mãe. Para além de ser miss, o que já é uma ocupação a tempo inteiro, suponho, a nossa miss trabalhava num ginásio. Entretanto, apanhada como todos pela pandemia, estava agora fechada em casa, impossibilitada de ir ao dito ginásio. Resta-lhe continuar a ser miss, que é uma coisa que nunca se deixa de ser. É um estado de espírito.
Por falar em estados de espírito, aquilo que Iury mais teme encontrar dentro da casa do Big Brother são pessoas de ego enorme. Por causa da concorrência, arrisco dizer. Mas a jovem de Oliveira do Bairro avisa já que está muito calhada com os bastidores dos concursos de misses, em que acaba sempre tudo à chapada. E uma verdadeira misse, como uma verdadeira senhora, nunca vira as costas a uma boa peixeirada.
Quando Cláudio lhe perguntou o que a levou a concorrer, Iury revelou a sua missão: dignificar os concursos de misses, num país que só liga a coisas da alta cultura, como o futebol e Cristiano Ronaldo. Quer mostrar que as misses também são uma forma de cultura. Subscrevo. É urgente apoiar este tipo de concursos que promovem a objetificação das mulheres, numa altura em que ela está tão ameaçada pela emancipação feminina das últimas décadas. Hoje em dia, os concursos de misses são um dos últimos redutos onde se pode admirar as pernas e os decotes de uma mulher, agora que a maior parte delas quer é ser cientistas e astronautas e essas coisas em que a roupa acaba por lhes desfigurar as formas do corpo. Ou, pior ainda, meterem-se na política, que é tudo mais à base das saias abaixo de joelho, das meias opacas, e dos casacos com corte de homem. Há certas deputadas e ministras que nem uma racha numa saia são capazes de usar. Mas, enquanto houver uma miss há esperança.
Num dos momentos mais insólitos da noite de estreia, Iury — que se apresentou de coroa na cabeça e faixa ao peito — lembrou-se de repente, a meio da conversa com Ramos, que tinha prometido ao dono do ginásio onde trabalha “gravar uma aula de localizada”. Pede desculpa ao senhor e promete gravar logo a seguir. Mas a seguir vai estar fechada dentro do seu apartamento, lembrou o apresentador. Ah, pois é, apercebeu-se a jovem. É por estas e por outras que existe o mito injusto de que as misses são todas um bocado mentecaptas. Se calhar, é só esta.
Diogo
34 anos
É um rapaz de óculos, e não tem mau ar. Fora deste contexto, não se diria fazer parte deste contexto. Está lá pela experiência, como explicou. E depois, ajudou-nos a classificá-lo. “Sou um beto chunga”. E elabora um pouco o conceito. Diz que estudou sempre em colégios particulares, e que todos os amigos são betos, mas ele, que gosta de viver de “maneira diferente”, é um chunga no meio dos amigos. Não percebi bem, mas deve ter razão. Quando Ramos lhe perguntou o que mais gostaria de fazer dentro da casa, respondeu “abraçar os outros concorrentes”. Boa ideia, Diogo. Disse ainda que precisa de sol. Também penso que não lhe faria mal nenhum.
Abro aqui um breve parêntesis para falar da casa onde os concorrentes viverão depois da quarentena. É grande, de facto, a atirar ao moderno, tudo em vidro. Sustentável, explicou-nos o apresentador na primeira gala, penso que por ter um vaso com uma planta no meio da mesa. Fiquei também a saber que é a maior casa de sempre na história do Big Brother. A revelação foi bombástica, mas não me senti a estremecer. O jardim é bonito, bastante verde e vê-se ao longe o mar. Mal empregada.
Dentro da casa, Cláudio tinha-nos mostrado a cozinha, o coração da casa, “como diz a minha mãe… bom, e toda a gente”, acrescentou ele. Para mim, confesso, foi uma epifania. E dei comigo a pensar: gasta uma pessoa uma pilha de massa para ter um Picasso na sala, quando, afinal, bastava ter comprado um frigorífico melhor. Ora bolas.
Voltemos aos concorrentes.
Sónia
27 anos
É de Vila Nova de Gaia e é feirante, uma tradição familiar. Neste momento, trabalha com o turismo. Ou seja, vende coisas a turistas. Azulejos, creio ter percebido. A Covid deu-lhe cabo do negócio, mas Sónia é uma eterna otimista. Acredita que a pandemia aconteceu para que as pessoas passem a dar mais valor ao amor e menos valor ao dinheiro. Penso que Sónia, que depende do comércio e do turismo, terá uma surpresa à sua espera no fim desta fase das nossas vidas. Mas, pronto, pelo menos, cheia de amor. Não é que não esteja preocupada com a quarentena. Está e bastante. Até entrar para este programa, Sónia dividia os dias com o namorado Vítor e as duas filhas, de quem sentirá muita falta. Mas conta que até foi a filha mais velha que a incentivou a concorrer. Também Vítor acha Sónia “espetacular”. Só lhe fica é bem. Mas não se pense que tem um feitio fácil, se é que alguém estava a pensar semelhante coisa. Pispineta, já tinha avisado que, sendo simpática, não deixa de não ter mau génio.
E, por falar em génio: na primeira gala, Cláudio Ramos tinha uma pequena surpresa para Sónia. Dentro de um saco, saiu uma imagem do Big Ben. “Sabe o que é?”, pergunta Cláudio. “Sei”, responde a despachada Sónia. “É a torre de Paris”. Génio. “Olhe que não! É o Big Ben, o relógio de Londres”, corrige ele. “Ah, pois é. O Big Bang. Eu em Londres nunca estive. Só estive em Paris”. Que faria se não tivesse estado. Cláudio tentou então uma coisa mais perto de casa, as alheiras. “Ah, do Alentejo”, diz Sónia. “Não”, ajuda Cláudio. “De Mirande-“. Sónia, provando que não é completamente destituída, consegue completar com a última sílaba.
Mas Sónia tem cuidados maiores do que esses detalhes de nomes de monumentos e de enchidos. Sónia já tinha partilhado com o país inteiro a sua maior preocupação: como irá tratar da depilação. Da “pintelheira”, para citá-la. Gostei. Nem toda a gente tem de ser a Grace Kelly. Aliás, se não houvesse pessoas ordinárias, dificilmente as atrizes do Hitchcock, por exemplo, nos pareceriam chiques. Seriam apenas pessoas. O Universo é de um equilíbrio espantoso. Era precisamente isto que eu esperava do Big Brother e tenho pena de não haver mais. Mas creio que a casa, apesar do tamanho, é pequena demais para duas Sónias.
Edmar
27 anos
É de Londres, mas vive em Mirandela, de onde os pais são naturais. É natural. Apanhado nas teias da pandemia, Edmar ficou preso em Mirandela, sem poder voltar para Londres. Antes isso que partir uma perna, pensei eu. Mas depois, cheguei à conclusão que talvez preferisse estar em Londres com as duas pernas e os dois braços partidos do que andar aos saltos por Mirandela. Talvez esteja a ser injusto, que a verdade é que nunca fui a Mirandela. Vou espreitar ao Google. Que engraçado! Até faz lembrar Londres, de certa maneira, com imensa água no meio e várias pontes. Mas reitero o que disse sobre as pernas e os braços partidos em Londres.
Quando a Edmar, prefiro exaltar a sua personalidade exuberante. Direi mesmo espampanante. Outra coisa não seria de esperar de um entertainer, um homem do espetáculo, que é o que Edmar faz em Londres. Desassombradamente, Edmar conta que é gay. Mas acrescenta logo que não adora as pessoas que são muito gay. E também não adora que gostem dele só porque é gay. O que lhe deve acontecer imenso em Mirandela. Mas talvez seja um problema de comunicação. É que o português de Edmar, não sendo péssimo também não é ótimo. E mesmo o próprio português que se fala em Mirandela não é propriamente um Rolls Royce linguístico. Enfim, Edmar adorou o seu apartamento, e só está um pouco preocupado com a irmã e os amigos em Londres. Fica aqui uma mensagem para a irmã e os amigos: não se preocupem com Edmar. Ele de cabeça está ótimo.
Daniel Guerreiro
28 anos
Vai logo direto ao assunto: é um manipulador, gosta de manipular. Porém, se no passado foi um grandessíssimo filho da mãe, agora dá em usar essa sua característica mais para o bem do que para o mal. Para transformar as pessoas que consegue manipular. Fica no ar se dominará algum destes conceitos. Mas Daniel não é apenas um manipulador. Não. isso é para meninos. Confessa-se também um homem ambicioso. E explica que definha quando não sai da sua zona de conforto. E foi por isso que se meteu no Big Brother. Este homem, que aparentemente só tem defeitos, assume também ter mau feito. Assim, só se estraga uma casa. Para além de hipnotizar e de trabalhar no desenvolvimento pessoal dos outros, também gosta de viajar e de cantar.
Numa pergunta pertinente, Cláudio tinha querido saber como vai ele passar o tempo, agora que não consegue controlar e manipular as pessoas fora da casa. Numa resposta óbvia, Daniel disse que irá manipular os outros concorrentes. Evidentemente. Se ficou toda a gente com a mesma vontade de lhe dar dois tabefes como eu fiquei, para a semana já voltou para casa.
Ana Catharina
27 anos
Assim, com tê agá, cresceu no Rio de Janeiro. Ainda que a família da mãe seja de Mirandela — parece haver uma fixação qualquer com Mirandela — já morou na Tailândia, na Índia, e assim. Talvez por isso, que eles lá nesses sítios são muito ligados nessas coisas, é instrutora de yoga. Também é vegan. É incapaz de fazer o que quer que seja com animais. Onde Ana se veio meter…
Pareceu-me ser a pessoa mais boa onda e mais alto astral do grupo, pelo que lhe prevejo uma carreira curta. Cheia de boas intenções neste Inferno que é a vida, com a fama e o dinheiro do prémio quer criar um santuário para animais. Os outros animais não sei, mas os meus três cães reviraram os olhos. Concedo que os meus cães são particularmente cínicos. Além disso, odeiam tudo o que venha do Oriente. Odeiam incenso, sushi, budismo zen e até já me comeram um jogo de Mahjong. Que depois vomitaram na casa de jantar num dia em que tinha cá em casa visitas importantes. É por estas coisas que odeio animais. Brinco, não odeio nada. Nem sequer.
Onde é que eu ia? Ah, em Ana Catharina. Adoro escrever Catharina. Transporta-me para outros tempos, quando que se escrevia photographia, pharmácia, phoda-se, e assim. Uma bomba: a professora de yoga foi namorada daquele Jesus que namorou com a Madonna! Esta frase escrita parece mais emocionante do que ouvida.
Ana Catharina, para além da yoga matinal, também medita todos os dias. Como é que vai conseguir meditar com tanta gente à volta, tinha perguntado Cláudio. “Eles depois habituam-se”, respondeu Ana. Creio que não percebeu a pergunta.
Sandrina
21 anos
É de Moura. Não, não é Sandrina de Moura. É Sandrina. De Moura, no distrito de Beja. O apelido não apanhei, mas seguramente liga bem com Sandrina. Poucos serão os apelidos que não vão bem com Sandrina. O pai é cigano e a mãe nem por isso. A verdade é que Sandrina tem bastantes problemas com a família. Aos 12 anos, quiseram casá-la. Mas ela, usando da prerrogativa das mulheres ciganas, disse que não. Percebe-se logo de que fibra é feita.
O pai não achou grande graça, e ainda menos graça achou quando a filha quis mudar-se para Lisboa para fazer um curso de cabeleireira, ele que preferia ver a filha casada e com um rancho de filhos. Mas, mais uma vez, Sandrina seguiu a sua vontade. Fez a mala e lá foi ela rumo à capital. Em Lisboa, com 17 anos, apaixona-se e vai viver com o namorado. Tudo corria bem, até que a mãe do rapaz descobre as raízes ciganas de Sandrina e lhe põe as malas à porta. Se, por algum golpe de sorte, se der o caso de tal senhora vir a ler estas linhas, fique sabendo que é uma grande besta quadrada. Havia de tropeçar na rua por causa das lentes bifocais e partir pelo menos metade dos dentes. Como provavelmente já só tinha metade, fica sem nenhum. Outra coisa não merece.
Rejeitada de um lado e de outro, Sandrina chega a maldizer a sua identidade. As crueldades que os seres humanos fazem uns aos outros não têm limites.
De volta a Moura, abre um salão de cabeleireiro com uma amiga, e a coisa corre bem. Pelo menos até à chegada da Covid. Bom, mas agora vai para a casa do Big Brother, amanhã logo se verá, que Sandrina não é mulher de se dar por vencida.
Só para irritar a sogra, era bem feita que ganhasse.
Soraia
27 anos
É do Seixal, é professora de crianças com necessidades especiais. A história começa com o seu próprio irmão autista, que, conta, sofreu imenso bullying. Vai daí, Soraia, que já foi hospedeira na Noruega e estudou jornalismo em Londres, resolve dedicar-se profissionalmente às crianças especiais. Tanto eufemismo, credo. Soraia é apresentada como a estampa do programa. Mas não na linha misse, mais na linha gira e moderna. Apareceu de cabeleira na primeira gala, o que é sempre engraçado. Confessa que tem desde miúda o sonho de participar no Big Brother. Não deixa de ser também bastante especial, ter este tipo de sonhos em criança.
Se dúvidas houvesse de que Soraia é uma pessoa sensível, partilha connosco o quando a perturbam as mortes que, um pouco por todo o mundo, a Covid-19 anda a causar. Isto só mesmo de uma pessoa muito sensível. Por outro lado, aproveitou a quarentena para passar um pouco mais de tempo com a família. Num rasgo de originalidade, confessa estar bastante preocupada com o futuro. Alguém tinha de se preocupar, não é?
Daniel Monteiro
27 anos
É de Valongo e é bombeiro. Penso não existir aqui qualquer nexo de causalidade, porque já conheci pessoas de Valongo que não eram bombeiros. Ora, isto de ser bombeiro reduz-me um pouco a margem de manobra para falar mal de Daniel. Ou melhor, terei de falar mal de Daniel com pinças, que se há coisa pouco aceite socialmente é falar-se com um tom trocista de um bombeiro. Podem enxovalhar-se apresentadores de televisão, médicos, banqueiros e até pastores. Mas nos bombeiros ninguém toca. Para piorar o cenário, Daniel foi ainda militar (paraquedista) no Kosovo e na República Centro Africana. Ou seja, um bombeiro veterano de guerra, por assim dizer. Estou de mãos e pés atados.
Ao contrário do que eu esperava, apenas um concorrente disse que “detesta pessoas falsas”, e foi Daniel. É o tipo de banalidade que costumo associar a pessoas a quem passa pela cabeça participar num programa de televisão que pressupõe estar fechado numa casa a ser filmado 24 horas por dia. É o mesmo que dizer “odeio estar constipado”, ou “odeio ser atropelado por um comboio” ou “odeio estar a andar de patins, cair e partir os dentes todos”. O que é que se espera quando se diz “detesto pessoas falsas”? Que o nosso interlocutor responda “Ai, eu adoro!”. Na porta da casa de banho do meu liceu estava escrito “detesto pessoas cínicas e mentirosas”. E foi exatamente isso que escrevi um dia por baixo, com um marcador preto: “Ai, eu adoro”. Ainda lá deve estar.
Quanto a previsões para o programa, a mãe de Daniel tinha avisado que ele é um bocadinho nervoso. E ficámos a saber que Daniel não é ninguém sem a mãe e que a mãe não é ninguém sem Daniel. Havia uma história grega que também começava assim. E acabava pessimamente.
Hélder
39 anos
É de Santa Maria da Feira, trabalha com eletricidade e é, sem desprimor para os outros, talvez o grande cavernícola desta edição. É daquelas pessoas que diz de si mesmo, com orgulho, que é picuinhas, que gosta da roupa organizada por cores, estações, tamanhos, padrões e mais o diabo a sete. Só concebe meias esticadas e bem dobradas e odeia meias arrumadas em bola. Tenho para mim que são estas pessoas que um dia entram com uma granada no escritório e, arrancando a cavilha com os dentes, gritam: “Tomem lá, para não me estragarem o feng shui”. Enfim.
Para compor o ramalhete, confessa-se viciado em solário e em ginásio. Fiquei logo com vontade de voltar ao crack. Diz Hélder que só tolera pessoas organizadas como ele, e que não se adapta bem às outras. A própria mãe, que também falou, acha-o um palhacinho. Ai, os portugueses e os diminutivos, já se queixava Alexandre O’Neill.
Mas o melhor, guardou Hélder para o fim das apresentações: o seu talento especial é, segundo o próprio, “imitar vozes”. Consiste tal arte em falar num tom esganiçado e com os olhos muito abertos. Foi com isso que nos brindou, dizendo: “Olá, eu sou o menino que está dentro do Hélder”. Gelei.
Também ele se mostrou preocupado com o Futuro, imaginem. A mim, preocupa-me mais o presente. Dos outros concorrentes. A sério. Tenham este tipo debaixo de olho.
Fábio
25 anos
Chega-nos no Algarve, mais precisamente de Boliqueime. Terra que já nos deu um Presidente da República, uma Primeira-dama e a escritora Lídia Jorge, pelo que não auguro nada de bom em relação a Fábio. Estou a brincar, adoro a Lídia Jorge. Quer dizer, adorar é um bocado exagero, mas não odeio. Estou um pouco como naquela piada: “Gostei imenso do seu livro! Um dia destes tenciono lê-lo”. Mas hoje, como diria o chefe da aldeia do Asterix, não é a véspera desse dia.
Voltemos a Fábio. Nas suas próprias palavras, “gosta de mulheres, de apostas e de futebol”. Um ministro das Finanças holandês não o descreveria melhor. E, misturando as duas últimas paixões, é isso que faz na vida: apostas desportivas. É uma profissão como outra qualquer. Com a vantagem de, suponho, não cansar muito a cabeça. Muito vaidoso, admite que está constantemente a olhar-se ao espelho e que se considera “o rapaz mais bonito do mundo”.
Conta que vai ao barbeiro todos os fins-de-semana. Pelo cabelo, percebe-se que o barbeiro já não pode vê-lo à frente. Há barbeiros com muito mau feitio, credo. Mas não é o caso de Fábio, que tem um ar simpático, o que não é muito comum em personalidades narcísicas e com uma visão completamente distorcida da sua própria realidade. Brinco. Fábio, não sendo propriamente o rapaz mais bonito do mundo, é um género. O género de quem se costuma dizer “parece saído do Big Brother”. Que é, provavelmente, o que lhe vai acontecer dentro de uma ou duas semanas. Estou a usar imensos advérbios. Ainda por cima todos absolutamente redundantes. É também um género.
Por causa da pandemia e da quarentena forçada, Fábio ficou sem vida social. Se calhar, digo eu, foi a melhor coisa que aconteceu à sua vida social. Conta ainda que adormece sempre ao som dos mesmos episódios da série de televisão Inspetor Max, e que sabe as falas todas de cor. Isto, para mim, sem querer parecer muito severo, é a própria definição de não ter vida, nem social nem da outra.
Noélia
33 anos
É de Tavira, e tem dois supermercados. Isto parece a descrição de uma personagem de uma série cómica, mas Noélia é bem real. É a própria quem cultiva as hortaliças que depois vende nas suas superfícies comerciais. Pronto, vi cerca de duas horas do Big Brother e já digo “superfícies comerciais”. Isto está bonito…
Bonito também é o espírito empresarial de Noélia. Esta mulher acorda às 4 da manhã para ir para o mercado abastecedor. É que, parecendo que não, dois supermercados ainda levam imensa coisa, e os produtos não vão lá ter sozinhos. Quer dizer, nos supermercados normais, até vão. Chama-se distribuição. Mas isso seria demasiado fácil para uma pessoa tão empreendedora quanto Noélia. Uma verdadeira empresária não só acorda às 4 da manhã para ir buscar os produtos que não se conseguem cultivar numa horta, como depois ainda trabalha o dia todo, até à noite. Chega a dormir apenas quatro horas por dia. Ficamos assim a saber que Noélia se deita, portanto, à meia-noite.
Noélia sendo Noélia, diz ufana que nunca tirou férias. Eu, que nunca trabalhei um dia na vida, fiquei cheio de inveja. As férias são, de facto, uma chatice. É a areia que se enfia nos fatos de banho, são os escaldões, são os livros chatíssimos que se tem tempo para ler. Enfim, uma canseira. Antes ter dois supermercados. Um dia, quando morrermos os dois, encontrar-me-ei com Noélia no Inferno. Do alto do seu império de supermercados, Noélia rirá da minha existência vazia e inútil.
Noutro clássico de Noélia (não confundir com o livro francês Classiques de Noël), e ao contrário de todos os outros concorrentes e da maior parte da população mundial, Noélia tem ainda mais trabalho desde que começou a pandemia de Covid-19. Os supermercados vão de vento em popa, com os açambarcamentos que conhecemos. É preciso tomar algumas precauções, mas a coisa corre bem. E agora que vai para a casa do Big Brother, vai o negócio todo por água abaixo?, perguntamo-nos em casa. Talvez não. É que o marido, que trabalha com ela, vai tomar as rédeas da cadeia. Da cadeia de supermercados, naturalmente. Estará o marido à altura do desafio? Esperemos que sim.
Foi aqui que a apresentação de Noélia deu uma inesperada volta trágica. O pai morreu há pouco tempo, já durante o estado de emergência, e a família não pode despedir-se da maneira que gostaria. Na conversa com Cláudio Ramos durante a gala, foi uma Noélia mais calma do que a Noélia do vídeo de apresentação que contou, com emoção, que a mãe fazia anos naquele dia e que o pai também faria. A maneira terna e digna com que lhe deu os parabéns fez-me ficar a torcer por Noélia. Não conto ver mais nenhum episódio, mas gostava que Noélia ganhasse.
Jéssica
22 anos
É de Braga, mas mora na Suíça, para onde se mudou aos 19. Teria mais graça se fosse da Suíça, mas morasse em Braga. A vida, porém, não são só coisas engraçadas. É a empresária mais bem-sucedida do grupo. Não, não tem quatro supermercados, é broker de seguros. Conta Jéssica — que, como todos os empreendedores vê nas crises oportunidades — que a Covid, lhe deu de presente muito tempo para pensar, fechada em casa, em Portugal.
Confessa-se também uma mulher muito desconfiada e independente, quer no trabalho quer na vida privada. Como todas as mulheres desconfiadas e independentes, adora sapatos, bolsas e moda em geral. “Bolsas”, fiquei a saber, é como dizem carteiras na Suíça. Pelo menos as pessoas que vão de Braga para lá. Numa nota mais confessional, conta que cresceu com um pai ausente. Quer dizer, sem um pai ausente. Quer dizer, com um pai ausente, mas sem um pai ausente. Ou melhor, com pai, mas sem pai, porque era ausente. O português nem sempre é uma língua fácil.
Tal como os outros concorrentes, também Jéssica vive um período de especial ansiedade por causa da pandemia de Covid. Tem medo que os seus familiares mais velhos morram de Covid. O que, de facto, é uma coisa que acontece muito. E não deixa de se preocupar também com o trabalho, e sabe que, provavelmente, terá de recomeçar da estaca zero. Se ainda souber o lugar das estacas, claro está. Jéssica vive também uma crise identitária: sente-se estrangeira em Portugal e estrangeira na Suíça. Quanto a sentir-se estrangeira em Portugal, compreendo. Já na Suíça, creio que toda a gente (exceto os queijos, os relógios e as barras de ouro nazi) se sente estrangeiro na Suíça. É questão de não ligar, Jéssica.
E o que leva Jéssica a entrar na casa? O sonho de encontrar o amor. Um amor. Qualquer amor. Nunca clara baixa de fasquia, diz que pode até ser um amor português. Que tempos, estes.
Pedro Alves
25 anos
É de Penafiel, e trabalha na empresa da família. Não sei de que trata a empresa da família, mas deve ser qualquer coisa importante, pois Pedro fala de si mesmo na terceira pessoa. Como os jogadores de futebol, ou as pessoas com empresas de família. Nos seus tempos livres, quando era verdadeiramente livre, Pedro jogava bilhar com os amigos. Mas a vida pregou-nos a todos uma partida, e lá ficou Pedro sem os amigos e com uma nota no bolso para cigarros e bilhar, como cantava o Rui Veloso. Não gosto nada do Rui Veloso. Sei que isto nada tem a ver com o Big Brother, mas, sempre que posso, aproveito para dizer que não gosto nada do Rui Veloso. Resta-lhe agora falar com os amigos por telechamada. Ao Pedro, não ao Rui Veloso. O Rui Veloso, se calhar, nem isso. Consta que tem péssimo feitio, e talvez não tenha muitos amigos. Chama-se a isto violência gratuita, a arte de dizer mal de uma pessoa só pelo prazer de dizer mal.
E, por falar em dizer mal, são os próprios amigos e o irmão de Pedro que o definem, quer como um “demónio”, quer como uma “pessoa espetacular”. Já quanto à maneira como Pedro se vê a si mesmo, ficamos a saber que não gosta de racismo, mas é um bocadinho homofóbico. Quando questionado sobre isto por Cláudio, Pedro respondeu na gala: “c*r*lh*”. Mas o palavrão foi tapado com um bip. Foi aqui que quem ainda não tinha percebido ficou a saber que o programa não estava a ser transmitido em direto. Fora gravado na véspera, por causa dos nervos de Cláudio, disse-me o site de uma revista de tricas da televisão.
Pedro explicou vagamente a sua homofobia. Parece que a namorada tinha um amigo gay e que aquilo ao início lhe fazia umas grandes comichões. Mas depois, lá se habituou e começou a aceitar a homossexualidade do amigo da namorada. O que o amigo deve ter agradecido bastante. É sempre boa a validação de um homofóbico. E do particular para o geral, foi um passo. Pedro aceita agora todos os homossexuais, desde que não sejam bichas. No entanto, vi aqui uma oportunidade perdida: “O Cláudio devia ter pegado no “Não gosto de racismos”. O pobre Pedro tinha estado a ensaiar a resposta sobre a homofobia. Se o Cláudio lhe tivesse perguntado: “Mas, se diz que não gosta de racismo, não estará em negação em relação à forma como o racismo estrutural opera de forma automática dentro de nós, por causa da nossa educação, o que seria, já de si, racista?”. Adorava ver Pedro a safar-se DESSA.
Angélica
27 anos
Vem da Venezuela, mas mora em Aveiro. Ela é que sabe…. É licenciada em Jornalismo e em Sociologia e, nos tempos livres dança, corre e lê. Uma espécie de golden retriever. A quarentena, qual epifania, mudou a maneira como vê a vida e passou a dar valor a outras coisas e a cada segundo que vive. E olhem que não são segundos fáceis: Angélica apaixonou-se por um padeiro português na Venezuela que pegou nela e a trouxe para Aveiro. Agora, ao participar no Big Brother, sonha em ser uma estrela da televisão. Provavelmente para poder voltar para a Venezuela.
Pedro Soá
44 anos
É do Seixal. Tinha um videoclube, mas a televisão matou-lhe o negócio. Isto, supostamente, passou-se no século XXI. Ou seja, Pedro abriu um videoclube no século XXI. E depois, para sua grande surpresa, a coisa não correu assim tão bem. Pedro decide então ir fechar-se dentro da casa do Big Brother, quando é evidente que precisa é de sair mais de casa. A quarentena também lhe trocou as voltas, deixando-o preso consigo como única companhia. Mas parece que não estava assim tão mal-acompanhado: são os amigos que o acham a pessoa mais inteligente que conhecem. A piada faz-se sozinha.
Como todas as pessoas muito inteligentes, Pedro discute imenso, zanga-se imenso, grita imenso. E, claro, tem-se em ótima conta. Acha-se um visionário, um verdadeiro empreendedor com ideias muito out-of-the-box. Como abrir um videoclube, por exemplo. Mas pode ser que a coisa corra bem a este homem cujo dom é “magnetizar as pessoas”. O necessário está lá todo: Pedro é tão controlador que nem gosta de andar de avião, porque não é ele que vai a guiar. Para além de tudo isto, Pedro tem péssimo ar. E olhem que dizer isto de um concorrente do Big Brother…
Slávia
32 anos
É o melhor nome desta edição. Mora em Cascais, mas nasceu em Angola. Formou-se em Direito, trabalhou como figurinista na televisão angolana, e foi na moda que encontrou a sua paixão, nomeadamente na moda desportiva. Isto é um fabuloso nicho de mercado nos nossos dias, em que estamos todos de fato de treino no sofá. Uma coisa é estar de fato de ginástica, outra é estar abandalhado. Mais uma angolana com imenso olho para o negócio. “Mulher guerreira”, sonha com a sua própria marca. E marca é o que Slávia quer deixar no Big Brother, através da representatividade.
Representatividade é o que não falta nesta edição, em boa verdade. Temos Slávia, temos meia-cigana, temos um gay, temos um homofóbico não-racista, temos masculinidade tóxica, temos misses, temos sul-americanos de ditaduras várias, temos narcísicos em diversos graus. E tudo isto fechado na mesma casa, vigiados por 56 câmaras ligadas 24 horas por dia. No fundo, o Big Brother é uma espécie de ceia de Natal nas nossas casas. Com a vantagem de podermos mudar de canal.
E deixo-vos com o pensamento com que Cláudio Ramos fechou a noite da primeira gala: “Desejo a todos saúde e paz. O resto, o Universo traz”.
A frase é péssima. Ou seja, ótima. E resume bem o Big Brother. Um programa, uma casa, dezoito pessoas. O resto, o Universo traz. Provavelmente, um castigo enorme.
Oh wait!