Índice
Índice
“Com tantas coisas a explodir no meu colo, o meu desejo sexual entrou em quarentena.” A Sara*, de 36 anos, nunca faltou libido, mas a chegada da pandemia — e consequente quarentena — contagiou a esfera íntima da relação de três anos. A ansiedade é real e com tantas preocupações em mente, que incluem família e trabalho, a última coisa em que pensa é em ter sexo.
O mais provável é que Sara não esteja sozinha, uma vez que, por norma, cenários de incerteza e de instabilidade traduzem-se nas relações de intimidade, atesta Vânia Beliz. Ao Observador, a sexóloga confirma que tem uma opinião mais pessimista do que a de alguns colegas e admite que as preocupações associadas à Covid-19 podem repercutir-se na sexualidade dos portugueses — não excluindo, naturalmente, a diversidade de circunstâncias e o peso da personalidade. De um momento para o outro, casais que passavam pouco tempo juntos viram-se confinados a um mesmo espaço 24 horas sobre 24 horas. Ainda que isso possa ser visto como uma oportunidade para reatar a relação e a respetiva proximidade, há fatores de stress associados à quarentena, mais não seja pelo teletrabalho, os afazeres em casa e, caso existam, os filhos. Para as relações que antes da pandemia já atravessavam momentos de alguma dificuldade, sair de casa significava também um afastamento dos problemas.
“A ansiedade e o stress podem impactar a relação, tudo acontece no cérebro. Estamos perante uma situação de alarme e insegurança, são coisas que vão condicionar uma resposta sexual”, continua Vânia Beliz, que refere ainda que o desejo consegue ser algo “muito difícil” e que uma autoestima frágil pode dificultá-lo ainda mais, sobretudo numa altura em que ir ao cabeleireiro ou sair para arranjar as unhas são atividades temporariamente interditadas. A isso acrescem as eventuais alterações na alimentação e a falta de exercício. Em resumo, as mudanças de rotina que podem deixar uma pessoa mais em baixo. “Todo este interromper das nossas vidas traz consequências, a sexualidade não existe desprendida do resto, não somos máquinas.”
“Os vibradores têm tido boa saída”
Vânia Beliz admite que no exercício da profissão — ainda que virtualmente — tem encontrado pessoas interessadas em adquirir brinquedos sexuais de maneira a quebrar a rotina. Esse é um fenómeno já identificado por Mikaela Silva, da portuguesa Playbox, que ao Observador confirma um aumento significativo na venda de brinquedos ao nível individual — o negócio habitual consiste na entrega ao domicílio de uma caixa com quatro brinquedos sexuais. Em termos comparativos, considerando os números de fevereiro, as “vendas aumentaram 50%”, diz, enquanto as subscrições aumentaram 10%. O brinquedo com mais saída consiste num vibrador para casal, sendo que a maior parte das encomendas refere-se a artigos para serem usados a dois.
Ovos, “plugs” e vibradores. Playbox, uma caixa para brincar como gente grande
Elsa Viegas regista um cenário semelhante. A fundadora da marca Bijoux Indiscrets, com sede em Barcelona mas com representação em 45 países, explica que é graças às lojas online que o negócio está a sobreviver. “Notou-se um aumento de procura”, diz referindo-se ao mercado europeu, Portugal incluído, apesar de este ser um fenómeno que ainda estão a tentar compreender. “Temos mais vendas, mas as compras têm um valor inferior. Mas temos mais visitas no site e mais compras recorrentes”, esclarece Elsa, surpreendida com a situação.
Os números simpáticos registados desde o início de março podem estar relacionados com o facto de os portes de envio estarem temporariamente isentos de taxas, quando antes eram exigidas compras acima dos 60 euros. “Pode ser que isso justifique o maior número de vendas. Ainda assim, elas tendem a estar acima dos 40 euros”, continua. “Se calhar temos um aumento de compras na ordem dos 15% desde o início de março, sendo que em Portugal as vendas aumentaram consideravelmente. Antes eram residuais.” Elsa Viegas explica ainda que os produtos mais vendidos dizem respeito a cosmética erótica, como intensificadores de orgasmo e gel de prazer, mas também os vibradores têm tido boa saída, dos que podem ser usados “a solo ou em casal”.
A Loja do Sexo, cujo espaço físico encontra-se encerrado ao público, também vende artigos online. Apesar de confirmar ao Observador que têm tido uma “procura maior do que o habitual” nos produtos “de utilização a sós”, ao invés daqueles destinados aos casais, Marco Gonçalves esclarece que em tempos de pandemia estão a registar uma quebra nas vendas “na ordem dos 50%”, ainda que estejam a fazer um esforço considerável nas entregas ao domicílio, bem como promoções diárias. Também contactada pelo Observador, a gerência da Fun Sex Shop limita-se a acrescentar que o negócio “parou um pouco”.
João Neves, da Sweet Love Lingerie, explica que o site existe desde que a empresa abriu portas, em 2004, e não sabe precisar se o “ligeiro aumento” das vendas online diz respeito a novos interessados ou aos compradores habituais que já antes frequentavam o espaço físico. “Notamos que estamos a enviar coisas para perto de nós”, diz, afirmando acreditar que, se não fosse a pandemia, essas compras seriam feitas na loja. “As vendas estão distribuídas da mesma forma que antes”. Os brinquedos sexuais e a lingerie representam, mais coisa menos coisa, “a percentagem do costume”.
A sex shop Ohlala também admite o “aumento na procura na ordem dos 30%”, que vem acompanhado de um aumento no atraso das encomendas e do número de mensagens “devido às limitações dos serviços de transporte”. “Podemos dizer que aumentou tudo”, esclarece via SMS.
No seu serviço de aconselhamento, Vânia Beliz registou mais perguntas sobre os brinquedos sexuais: “As pessoas estão em casa e querem brinquedos, lubrificantes e vibradores…”. Já Joana Almeida, também ela sexóloga, diz ao Observador que estes produtos podem ser uma “solução” para solteiros, uma vez que já não há “bares, cafés e jardins disponíveis” para encontros.
Apesar de não ser fácil de definir o maior interesse dos portugueses em brinquedos sexuais em tempos de confinamento, o fenómeno é certamente mais evidente lá fora: as vendas de brinquedos sexuais triplicaram na Nova Zelândia depois de a primeira-ministra, Jacinda Ardern, ter anunciado o lockdown com a duração de um mês, tal como escreve o The Guardian. As vendas de preservativos, lubrificantes e copos menstruais também aumentaram depois de a quarentena ter sido decretada no país.
Já a publicação The Wire faz referência à Lelo, uma marca sueca de brinquedos sexuais, que afirma que as vendas cresceram em 40% em tempos de pandemia, enquanto a UK Meds, uma farmácia online baseada em Nottingham, no Reino Unido, registou um pico na procura de Viagra e um aumento de 23% em encomendas relativas à pílula do dia seguinte.
Solteiro? Pornografia e apps
Se há coisa sobre a qual Ana Alexandra Carvalheira, investigadora na área da sexualidade no ISPA – Instituto Universitário, não tem dúvidas é que, de certa forma, o isolamento social pode ser uma oportunidade para as pessoas, sobretudo as que estão solteiras, explorarem a sua sexualidade, seja através de brinquedos sexuais ou de conteúdos eróticos e/ou pornográficos. “A pornografia online é uma ferramenta extraordinariamente rápida, fácil e gratuita para aliviar tensões… serve muito bem”, diz ao Observador.
Nem de propósito, dados divulgados pelo Pornhub, e citados pelo Público, mostram que no dia em que o respetivo serviço premium ficou gratuito a nível global, o número de visitas em Portugal aumentou 36,5% (no mundo subiu 18,5%). Antes, a 18 de março, dia em que foi decretado o estado emergência no país, as visitas tinham aumentado 26,6%.
https://twitter.com/Pornhub/status/1242264770071465984
Mas há outras formas de satisfação pessoal, como a masturbação que, nas palavras da sexóloga Vânia Beliz, “é sempre uma prática segura”. A ideia de sexo seguro está igualmente na ordem do dia, com as autoridades de saúde da Irlanda, por exemplo, a recomendarem a prática de “sexting”, a utilização de chats e a masturbação, a qual “não propaga o novo coronavírus”.
É também o caso das aplicações e dos sites para conhecer pessoas. O Felizes.pt, página portuguesa criada em 2015 e direcionada para solteiros, teve um aumento de novos registos no site desde o dia 1 de março (15%), mas também uma subida percentual de acessos ao site (16%). E se a 1 de fevereiro a palavra “Covid-19” tinha sido mencionada dez vezes, a 8 de abril o número total era de 8.019. Nesta página, com mais de 150 mil inscritos, a média de idades dos utilizadores é de 40 anos, sendo o género maioritariamente feminino.
Numa altura em que ter um caso de uma noite (“one-night stand” em inglês) é literalmente ilegal, uma vez que tenderá a violar as regras do confinamento, até as aplicações de encontros se estão a adaptar às circunstâncias. O Tinder, por exemplo, anunciou no dia 2 de abril a possibilidade de fazer match com qualquer pessoa no mundo, uma opção que agora é gratuita. A taxa de utilização deste recurso aumentou 15% no Brasil na última semana de março, mas cresceu mais em países como Alemanha (19%), França (205%) e Índia (25%) — no meio disto há quem procure apenas companhia ao invés de sexo, tal como escreveu a Sábado. E já antes o Tinder partilhava um aviso especial com os utilizadores norte-americanos, pedindo para se protegerem contra o novo coronavírus, uma atuação também ela escolhida pela OKCupid.
No caso de quem está solteiro, algumas das consequências sociais da pandemia podem traduzir-se num “boost no desejo sexual” por dois motivos, acrescenta Ana Alexandra Carvalheira:
- pelo desejo da falta — “de querermos aquilo que não podemos ter”;
- e também pela “possibilidade de transgredir”, o que torna as coisas mais interessantes. “Um cliente disse-me há uns tempos que foi para o Tinder e que uma rapariga que vive perto dele convidou-o para ir beber um café a casa dela. Ele disse-me que não foi, mas acredito que isso não dure muito tempo.”
“É um desafio acrescido para os casais que não vivem juntos, que estão longe. Algumas pessoas acabam por se colocar em risco ao ir à procura de uma companheiro/a. São precisos cuidados redobrados. O risco é ainda maior para pessoas que estão sozinhas e que tinham sexo ocasional”, lembra Beliz.
“Apesar da nossa relação ser à distância, em condições normais já nos teríamos visto mais vezes durante o último mês seguramente. Psicologicamente também é desgastante porque quando estás com uma pessoa, por norma, podes só estar. Os silêncios não são todos desconfortáveis. Como estamos isso é uma impossibilidade porque estar agarrado a um telefone sem tema é estranho”, conta ao Observador Jorge*, de 31 anos, que namora há quase dois. Ele está em Lisboa, ela em Madrid. Ambos os países enfrentam a pandemia. A proximidade possível é mantida através das videochamadas que duram, em média, uma hora, e pelas mensagens que vão trocando ao longo do dia. E a intimidade? “É muito complicado. Para mim o sexting não é uma cena.”
Os conselhos em tempos de “trauma coletivo”
“Neste momento estou sobretudo a trabalhar com indivíduos de modo a ajudá-los a regular o seu sistema nervoso, pois muitos vivem tempos de choque e angústia. Estes são tempos de trauma coletivo global, pela primeira vez na história. O meu palpite é que isso possa ter um efeito negativo na vida sexual das pessoas, pois o stress reduz o desejo”, diz Mike Lousada, sexólogo e coautor do livro “Sexo Real”, ao Observador.
“O sexo está mais disponível, é mais aceite, mas há muito menos prazer”
É mais ou menos o caso de Inês* que está em casa em teletrabalho com o marido e os dois filhos, de 16 meses e oito anos. A intensa logística do quotidiano em plena pandemia faz com que o casal que vive junto há 13 anos não tenha tempo, nem vontade ou paciência para a intimidade. Sobra irritabilidade. “Os miúdos vão para a cama às 22h30. O meu marido ainda vai trabalhar à noite…” A culpa é a falta de tempo e o stress acrescido de não poderem sair de casa e gastar energia como dantes. “Estamos muito mais esgotados… Antes organizava refeições para a semana e nem pensávamos nos almoços porque comíamos fora. Agora é almoço e jantar, almoço e jantar, sete dias por semana… São 14 refeições. Temos crianças, os horários são rígidos”, continua. A isso soma-se o futuro incerto e também a culpabilização. “Parece que temos menos tempo quando antes voltámos mais tarde a casa. Não é só o horário, é tudo o que estamos a passar. Espero que não tenhamos tempo para nos acomodarmos.”
Neste momento não é possível prever o que vai acontecer às relações, diz Joana Almeida, terapeuta sexual e membro da direção da Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica (SPSC). A também psicóloga clínica diz acreditar no potencial humano para a adaptação e argumenta dois cenários possíveis: união ou distanciamento. “Há pessoas já descontentes com a relação e que, de repente, tomam consciência disso. Às vezes temos decisões importantes a tomar que evitamos. Andamos em piloto automático.” Considerando o impacto da ansiedade na intimidade, a sexóloga refere ainda que há quem consiga usar o sexo para relaxar e quem precise de estar relaxado para ter sexo. “Tem muito que ver connosco e não com a Covid-19. O desejo é uma coisa muito complexa. Haverá pessoas que sentem medo de serem infetados, até pelas pessoas mais próximas. Há muitas distrações que pode interferir na entrega ao prazer.”
A investigadora Ana Alexandra Carvalheira tem uma opinião semelhante e explica que há casas em que o sexo pode funcionar como um escape e trazer alívio da tensão, uma realidade que acredita ser uma minoria, com e sem pandemia à mistura. “Há 23 anos de prática clínica que observo muita dificuldade nas mulheres em usar o sexo como possibilidade para aliviar tensões, para relaxarem. Tem muito que ver com o erotismo masculino e feminino — o feminino sofre muito com o sexo em contexto doméstico, rotineiro, familiar, em que tudo é conhecido, em que não há surpresa ou mistério… O sexo em contexto doméstico não é favorável para as mulheres, cujo erotismo é alimentado por fatores opostos à rotina”, explica, para depois afirmar que o sexo costuma correr melhor quando as pessoas vão de férias e não quando estão fechadas em casa.
Soraia* e o namorado, ambos de 31 anos, não precisam necessariamente de férias. Não saem de casa há mais de um mês e têm noção de que estão mais próximos um do outro. Ao Observador, ela conta que fazem mais coisas em casal e que se sentem ambos menos cansados do que se tivessem de perder duas horas em transportes públicos. “A maior diferença é que não tenho pressão de qualquer espécie para estar em algum lugar fora da hora de trabalho, então, eu própria acabo por me sentir mais relaxada e apreciar melhor as coisas.”
O mesmo acontece com Laura*, cujo confinamento aproximou-a do namorado. Se antes chegavam a casa tarde e não tinham disponibilidade emocional ou física para a intimidade, agora a realidade é outra. Fazem pausas de café em conjunto, cozinham juntos e partilham mais coisas. “O sexo também melhorou e o stress do trabalho ficou mais controlado. E não há trânsito!”
O medo do contágio pode, de certa forma, interferir no interesse e na frequência sexual, mas o primeiro fator é o stress e o cansaço. “Coexistem muitas realidades, há uma diversidade imensa de vivências, que são diferentes entre quem está solteiro e quem está em coabitação”, continua Ana Alexandra Carvalheira, que explica ainda que o bem-estar sexual está muito associado ao bem-estar relacional.
Caso surjam dificuldades na intimidade em contexto de confinamento, Vânia Beliz afiança que o “sexo não deve existir só porque sim” e que estes são tempos para “ouvirmos mais e partilharmos emoções”. Os conselhos passam, então, por mudar um pouco a rotina imposta — optar, por exemplo, por assistir a um filme pornográfico, por massagens ou explorar o corpo com recurso a brinquedos sexuais. “Existem muitas formas de fazermos amor, mas tudo depende da vontade e disposição do casal”.
“O sexo não é só a cama, não é só estarmos nus uns em cima dos outros. O sexo é mais do que isso. Neste momento se calhar o que interessa é tudo o que nos possa aproximar. Sentir que temos alguém a atravessar este momento connosco. Há aqui esta oportunidade de nos reforçarmos enquanto parceiros e parceiras. Isso é importante sobretudo numa relação com algum tempo. Vêm aí tempos que não são fáceis”, acrescenta Carvalheira.
Admitindo que as pessoas vão eventualmente expor-se menos, na sequência da pandemia, a investigadora não consegue precisar o que vai acontecer considerando uma realidade em que existem novas práticas sociais, como o distanciamento físico, o uso de máscaras ou o cuidado com o toque: “A pele, como elemento erótico, vai ganhar uma nova dimensão. Não sei se vamos estar mais predispostos ou se vamos querer mais sexo”. É um cenário em aberto.
*Estas pessoas não quiseram ser identificadas