A notícia supreendeu positivamente Wall Street. A Kraft Heinz ia finalmente mudar de presidente-executivo, naquela que é a maior dança das cadeiras no topo da empresa desde que a gigante do consumo alimentar se formou em 2015. A companhia, fundada por Warren Buffett e pelo fundo brasileiro 3G Capital, fundiu numa só dois colossos da indústria alimentar norte-americana — o famoso ketchup e o queijo Philadephia, por exemplo, são duas das marcas mais reconhecidas —, mas os últimos tempos não têm sido nada fáceis. Desde a tentativa falhada de compra de outro gigante, a Unilever, à descida do preço das ações, aos cortes nos dividendos, passando pela dificuldade em impulsionar as vendas sobretudo dos produtos considerados desadequados ao gosto atual do consumidor, as más notícias têm-se sucedido. A substituição do atual CEO, o brasileiro Bernardo Hees, pelo português Miguel Patrício foi por isso bem recebida. A tarefa que tem pela frente a partir de 1 de julho não há de ser fácil, mas Patrício está otimista. Ao telefone com o Observador, a partir de Nova Iorque onde vive, explica os passos que pretende dar assim que tomar as rédeas da empresa, preferindo sempre puxar pelos louros da Kraft Heinz em vez de se focar nos problemas: “O grande desafio que temos pela frente é crescer o top line, fazer crescer a faturação e o lucro também”, explica num português com sotaque brasileiro. E garante ter experiência suficiente para dar conta do recado. Passou mais de 20 anos ao serviço da multinacional de cervejas AB InBEv, que é dona das marcas BudWeiser, Stella Artois ou Corona. Isto depois de já ter feito parte de empresas como a Philip Morris, a Coca Cola e a Johnson & Johnson.
Miguel Patrício fez toda uma carreira de sucesso lá fora, mas raramente é visto com um fato vestido, a não ser que esteja num casamento. Nascido em Lisboa, passou a infância em Mação onde se tornou grande amigo do Carlitos (como lhe chama), mais conhecido por Carlos Alexandre, o juiz da Operação Marquês e vários outros processos que envolvem suspeitas de corrupção. Garante ser um apaixonado por Portugal, gosta de Mariza, passa horas no Spotify a ouvir fado, e não perde os jogos do Benfica. Enfim, quando pode. Esta segunda-feira, por exemplo, não conseguiu ver um minuto que fosse do Benfica-Marítimo. Passou o dia agarrado ao telefone desde que foi anunciado que é ele o homem que vai liderar uma das maiores empresas a nível mundial.
A primeira pergunta é mais ou menos óbvia, como é que foi parar a presidente-executivo de um gigante global como a Kraft Heinz?
Eu passei 20 anos na Anheuser–Busch InBev. Comecei na empresa quando éramos uma empresa brasileira muito pequena brasileira, a Brahma, que depois se tornou a maior companhia de cervejas do mundo. Hoje vendemos 25% de toda a cerveja do mundo e temos aproximadamente 50% de todas as cervejas do mundo. Enquanto lá estive, fizémos crescer em 100 vezes o lucro da companhia, uma loucura. Sempre reportei ao CEO da companhia, fosse ela pequena ou grande. No início como diretor de marketing, depois como Presidente para a América do Norte, depois Presidente para a Ásia, e mais tarde como administrador com o pelouro do marketing, já com a empresa muito maior e mais estabelecida. 20 anos depois era hora de sair, terminar o meu ciclo na empresa e procurar responsabilidades maiores.
E toma essa decisão quando o Chairman da Kraft Heinz, Alexandre Behring, o aborda para ocupar o cargo de presidente-executivo. Foi uma supresa o convite?
Foi há uns meses. E aconteceu um pouco como consequência natural, não foi exatamente uma surpresa, foi uma consequência.
Estamos a falar de uma empresa com 39 mil trabalhadores no mundo inteiro. É uma dimensão impressionante à escala portuguesa, mas presumo que esteja habituado a desafios desta natureza.
Na verdade a companhia onde eu trabalhava era maior que a Kraft Heinz. E a dimensão global também não me assusta. Já trabalhei no Brasil, no Canadá, nos EUA, na Bélgica, trabalhei e vivi na China por 5 anos. Sou um cidadão do mundo. Sou casado com uma panamiana, tenho três filhas, duas nasceram no Brasil, outra nasceu no Canadá. É uma família realmente global. Portanto, todas essas dimensões da empresa são interessantes, mas não me assustam.
Vai entrar na Kraft Heinz num momento em que há vários problemas por resolver, incluindo aumentar as vendas numa indústria onde o crescimento tem sido lento e onde o próprio modelo de negócio seguido até aqui, muito focado no corte de custos, tem sido questionado. Qual é o seu principal desafio?
É uma empresa que, no ano passado, faturou 26 biliões de dólares e teve 6 biliões de lucro. A empresa surgiu de uma série de aquisições. A primeira foi a Heinz, e depois a Kraft. Quem estava à frente da empresa fez um excelente trabalho na integração destas companhias, em trazer a redução de custos e tudo o mais. Agora o grande desafio que temos pela frente é crescer o top line, fazer crescer a faturação e o lucro também. Tenho uma experiência muito grande nisso, quer a experiência que tive na Ásia, quer a que tenho em criar marcas e fazê-las crescer. Sinto-me muito confiante que possa fazê-lo novamente agora na Kraft Heinz.
Porque é que a experiência na Ásia foi importante?
É um mercado muito difícil para as empresas ocidentais serem bem sucedidas. Vivi na China cinco anos e foram os melhores anos da minha vida, tanto na parte pessoal — porque a China é um país à parte onde temos tudo para aprender culturalmente — como na parte profissional. É o período de que me orgulho mais. Eu era responsável pela China, Índia, Vietname e Coreia do Sul. Mas a nossa obsessão e a grande oportunidade que identificámos naquela altura, era a China. E conseguimos fazer crescer o negócio de uma forma incrível ao ponto de se ter tornado o grande motor do crescimento orgânico da nossa empresa.
Qual foi o segredo?
Foi uma questão de entender onde a China iria crescer. Nós percebemos isso melhor do que os nossos concorrentes. A China estava a enriquecer e nós apostámos tudo na Budweiser e essa é hoje uma das marcas de cerveja mais valiosas no país. Apostámos nos jovens e na marca Harbin, uma marca pequena que era também a mais valiosa entre a juventude chinesa. Crescemos muito nesse período. A Budweiser cresceu 22 vezes e tornou-se líder em lucratividade e em faturação na China. Esse foi o meu grande momento. Estou a falar de uma época em que contratávamos quatro mil pessoas ao ano, contruímos fábricas, comprámos outras empresas, foi um período incrível.
E depois como é que se deu o regresso aos EUA?
O CEO da nossa companhia pediu-me para voltar, para ir para Nova Iorque para ajudá-lo a transformar a empresa e dar-lhe um enfoque mais centrado no consumidor, valorizar mais o crescimento orgânico. Fui responsável pelo marketing global da empresa durante seis anos e durante esse tempo houve muitas conquistas. Talvez a mais importante tenha sido a aposta em marcas globais premium, como a Budweiser, a Stella Artois e a Corona, que hoje representam 20% da faturação da companhia e 40% do crescimento. É uma empresa que todos os anos se supera e que está a ir muito bem.
Nos seus anos à frente do marketing da AB InBev ficou famosa a história de um anúncio à Bud Light de que ninguém gostava mas que se tornou um sucesso.
É uma história engraçada. Estávamos a testar várias campanhas para a Bud Light aqui nos Estados Unidos e esse anúncio em particular tinha corrido muito mal nos grupos de teste que usámos. Eu e a minha equipa tentámos perceber o que é que não tinha corrido bem. E concluímos que não estava a resultar por duas razões: a primeira era porque era o tipo de campanha que precisava do efeito repetição. Tipo aquela anedota que se conta à primeira e ninguém percebe, mas quando contamos à terceira já toda a gente está a rir. A segunda razão tinha a ver com a nova temporada do “Game of Thrones” que estava prestes a estrear e toda a campanha se passava nos tempos medievais. Obviamente, o consumidor não podia prever esse momento cultural que estava para acontecer. Ainda assim, e apesar dos testes não terem corrido bem, entendemos que era de seguir em frente, ignorar os resultados dos testes e correr o risco de pôr a campanha assim no ar.
É importante que se corra riscos, de vez em quando?
É, porque às vezes as pesquisas não dizem tudo. Devemos respeitá-las e aprender com elas, mas não levá-las assim tão a sério. Devemos também acreditar no nosso instinto. Foi isso que aconteceu naquele momento, tomámos a decisão certa e a campanha acabou por se tornar um sucesso.
Sendo português, a sua carreira acabou por nunca passar por Portugal.
Nasci em Lisboa, em 1966, os meus pais são da Beira Baixa e, na época do famoso 25 de Abril, foram para o Brasil. Regressaram depois, mas eu já estava na faculdade e acabei por não voltar. Terminei lá a faculdade e comecei uma carreira internacional que passou pela Johnson&Johnson no Brasil, nos EUA, na América central. Depois trabalhei na Coca-Cola em Atlanta, depois na Philip Morris. E finalmente voltei para o Brasil para integrar a então brasileira Brahma. E foi assim.
E isso fez de si um cidadão do mundo, como se identificou já. Mas também se identifica como português?
Eu nasci em Portugal e sou cada vez mais português. A minha irmã mora em Portugal, tal todos os meus tios e os meus primos. Tenho casa em Portugal, na Beira Baixa, estou a construir uma em Caxias. Cada dia sou mais fã de Portugal, eu amo o país, adoro a evolução que tem tido, um país que está na moda. Lisboa cada vez mais bonita. Cada dia sou mais português. Amo a música portuguesa, adoro perceves, acompanho o Benfica todos os dias, sou fã do João Félix que acho que é um jogador incrível, o melhor jogador do mundo.
Viu hoje o jogo (Benfica-Marítimo)?
Não consegui, porque hoje tenho estado sempre agarrado ao telefone. Como é que foi?
Foi goleada por 6-0. Também com brilharete de João Félix.
Que bom! Que bom! É incrível, com aquela carinha de menino de 18 anos anos, incrível.
Mantém amigos em Portugal?
Vou-lhe contar uma história divertida. Os meus pais eram de Mação. Quando eu era miúdo, tinha um clube com alguns amigos de Mação que era o “clube dos sete”. E o meu companheiro-mor chamava-se Carlos Alexandre! O mesmo que é hoje célebre em Portugal. Os dois, meninos em Portugal, a brincar às escondidas e à apanhada, no “clube dos sete”. Eu tratava-o por Carlitos.
Ainda são amigos?
Sim, sempre que vou a Mação encontramo-nos. Ainda há 4 anos, quando a minha mãe morreu ele esteve comigo. Sempre que lá vou procuro estar com ele, acho que ele é uma pessoa interessantíssima. E não deixa de ser engraçado, dois miúdos que cresceram nas ruas de Mação, na Beira Baixa e agora cada um do seu lado, a deixar a sua marca.