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Inquieto. A andar de um lado para o outro. A olhar para o telemóvel. Era assim que o advogado Gonzalo Boye ouvia o discurso de Carles Puigdemont, antes de subir ao palco e agarrar no braço do independentista para o retirar do Arco do Triunfo, no dia da sua primeira aparição pública em Barcelona em sete anos. Quem ajudou o ex-presidente do governo catalão a deslocar-se à Catalunha terá sido este advogado, nascido no Chile em 1965, e considerado o grande estratega da primeira fuga de Puigdemont de Espanha — e muito provavelmente da segunda.
Além de ser o responsável por defender Carles Puigdemont, Gonzalo Boye, uma figura controversa do independentismo catalão, também coordena a defesa internacional dos membros do ex-governo do independentista que se encontram exilados, é consultor do Centro Europeu para os Direitos Constitucionais e Humanos e ainda do Centro Palestiniano para os Direitos Humanos em Gaza. Se atualmente é reconhecido como um dos advogados mais prestigiados na área dos direitos humanos, o percurso para aí chegar foi atribulado.
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Começou por Ciências Políticas e Economia na universidade alemã de Heidelberg, mas não concluiu o curso. De acordo com o site Infobae, Gonzalo Boye chegou a Espanha em 1987 e foi neste país, mais especificamente na prisão, que concluiu uma licenciatura, em Direito. O advogado foi detido em 1992 e condenado a 14 anos, sendo que cumpriu somente cerca de metade da pena (7 anos, 11 meses e 23 dias).
La foto. Carles Puigdemont i Gonzalo Boye.
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— Pol Batalla⚡️ (@pol_batalla) August 8, 2024
A condenação deveu-se, segundo a imprensa internacional, ao facto de a justiça ter dado como provado que o grupo Movimento da Esquerda Revolucionária, ao qual o advogado pertencia, tinha trabalhado para a ETA (Euskadi Ta Askatasuna) e colaborado no sequestro, durante 249 dias, do empresário Emiliano Revilla. Foi só depois de ser libertado que se tornou num dos advogados mais mediáticos e reconhecidos de Espanha tendo, por exemplo, representado a viúva de uma das vítimas dos atentados de Madrid de 2004.
Recentemente, Gonzalo Boye voltou a estar na mira da justiça — o Ministério Público espanhol quer que seja condenado a nove anos e nove meses de prisão — por suspeitas de branqueamento de capitais na Operação Mito, que investiga a alegada introdução de quase quatro toneladas de cocaína em Espanha (e a posterior rede que foi criada para a ocultação dos lucros obtidos). Em entrevista ao site Vila Web, a meio de julho, o advogado disse que se ia defender “até ao fim” e reconheceu a possibilidade de passar o “resto da vida” na prisão, se for condenado.
No meio destas polémicas judiciais, o advogado ainda arranja tempo para apoiar Carles Puigdemont e as causas do ex-líder da Catalunha. Neste papel, foi questionado sobre uma possível detenção do independentista em caso de regresso do exílio — e foi vago. “Hoje, enquanto jurista, a única coisa que sei é que há um mandado de detenção contra ele”, respondeu.
Interrogado sobre se recomendava um regresso “discreto” do independentista a Espanha ou acompanhado pelo “povo”, voltou a ser ambíguo ao dizer que o seu dever é “informar” o seu cliente acerca “das consequências do atual mandado”. “A forma de abordar esta ordem [prisão] do ponto de vista jurídico é da minha responsabilidade; o resto não é”, acrescentou o advogado a quem a Telecinco chama a “chave” da fuga de Carles Puigdemont.
Ao final da noite desta quinta, Boye falou. Para informar que Carles Puigdemont “foi para casa, onde tem o seu local de trabalho”, “como fazem todas as pessoas quando terminam o trabalho” e “nunca se entregará”. O advogado disse aliás que não voltou a falar com ele desde que saiu do palco. “Ele disse que viria à investidura e, na minha opinião, participou de forma clara”, limitou-se a sublinhar, criticando o dispositivo de segurança. “Houve nervosismo e foram feitas detenções “a torto e a direito”.
Mossos D’Esquadra e a defesa de Gonzalo Boye
Tido então como uma figura chave na nova fuga de Puigdemont, Gonzalo Boye assumiu também já a defesa de um agente dos Mossos D’Esquadra detido por suspeitas de ter colaborado nesta evasão do idependentista. Seria o proprietário do carro branco, da marca Honda, onde Puigdemont entrou antes de desaparecer sem deixar rasto. O advogado deverá, segundo a Cadena Ser, alegar que a detenção era “ilegal”.
As ligações entre movimentos independentistas e os Mossos D’Esquadra não são propriamente novas. Aliás, o grande mistério desta fuga de Carles Puigdemont continua a ser a forma com a polícia agiu e forneceu algum tipo de ajuda. Declarações como a de Gonzalo Boye dão robustez à tese de que certas fações policiais apoiam o independentismo, algo que já tinha ficado patente na atuação dos Mossos durante o referendo da autodeterminação em outubro de 2017. O que aconteceu esta quinta-feira poderá ser mais um golpe na reputação já danificada da polícia que atua apenas na Catalunha.
Como escreve a agência EFE, após a detenção de dois agentes suspeitos de participar na fuga de Carles Puigdemont, o cenário é “incerto” para os Mossos D’Esquadra, ainda para mais com a chegada do socialista Salvador Illa ao poder. A polícia já garantiu que está a realizar uma investigação para perceber o que correu mal e prevê mais detenções nos próximos tempos, incluindo de agentes.
Tendo em conta esta investigação, os Mossos D’Esquadra parecem estar empenhados em manter a independência face ao poder político. Ainda assim, novas detenções de agentes podem comprometer esse esforço. E a polícia catalã ainda terá de responder a uma questão: como é que um agente era proprietário do carro em que Carles Puigdemont terá fugido.
Inicialmente foi noticiado que os Mossos D’Esquadra tinham feito um “acordo prévio” com os advogados de Carles Puigdemont. O independentista entregar-se-ia e seria detido apenas após discursar junto ao Arco do Triunfo para evitar desacatos entre os seus apoiantes e quem o contestava. Mas a polícia catalã negou depois que “tenha havido qualquer acordo ou conversa prévia” com a equipa legal de Carles Puigdemont. Contudo, o dispositivo desenhado pelos Mossos D’Esquadra previa que a detenção ocorresse no “momento mais adequado para não gerar desordem pública”. Ou seja, havia mesmo algo combinado.
Se a isso somarmos que em 2017 Puigdemont também fugiu com ajuda dos Mossos D’Esquadra (primeiro no carro de um e depois num segundo carro, com ajuda de mais dois), tudo parece demonstrar ligações antigas e próximas entre esta força e a equipa do líder independentista.
Pressão a Sánchez e detenção: o futuro de Puigdemont após a fuga
Para além da detenção do agente dos Mossos D’Esquadra proprietário do Honda branco em que Carles Puigdemont terá fugido, outro membro da polícia catalã foi detido, a momentos antes de o socialista Salvador Illa ter sido eleito presidente do governo da Catalunha. Este facto, apesar de ser expectável, acaba por contrariar a vontade do líder do Junts Per Cataluyna, que nunca escondeu que se opunha à aliança entre a Esquerda Republicana Catalã e o Partido Socialista da Catalunha.
Em abril, Carles Puigdemont anunciou que abandonaria a “política ativa” se perdesse as eleições regionais catalãs. Isso acabou por acontecer, mas o independentista refugiou-se no argumento de que as forças independentistas (a ERC e o Junts) tinham maioria no Parlamento e que, portanto, ele teria legitimidade para tornar-se o próximo presidente do governo da Catalunha. Mas os republicanos viraram-lhe costas ao aliaram-se aos socialistas.
Carles Puigdemont ameaçou mesmo, há quatro meses, que deixaria cair o governo em Madrid — em que ERC e Junts fazem parte da mesma coligação —, caso houvesse essa aliança entre republicanos e socialistas na Catalunha. No entanto, no discurso desta quinta-feira, não houve qualquer indicação que aponte nesse sentido, ainda que tenha reforçado o sentimento da autodeterminação da região.
Se se vier a confirmar que o líder do Junts já está no estrangeiro e que conseguiu fugir com sucesso às autoridades espanholas, Carles Puigdemont não vai deixar de pressionar Pedro Sánchez, sendo bastante provável que continue com as ameaças ao chefe do governo espanhol.
Ainda é incerto o que Carles Puigdemont vá fazer e se conseguiu fugir com sucesso. Mas certamente vai continuar a demonstrar que existe uma “repressão” do Estado espanhol ao independentismo. Mònica Sales, porta-voz do grupo parlamentar na Generalitat do Junts per Catalunya, já seguiu esse guião, criticando que as autoridades perseguiram o responsável político como um “terrorista”.
Em contrapartida, no caso de ser detido, a situação muda. Ainda que a pressão política do Junts aos governos (da Catalunha e o federal) continuasse, os primeiros tempos seriam difíceis para Carles Puigdemont. Tendo em consideração o mandado de detenção, o independentista ficaria muito provavelmente em prisão preventiva, ainda que pudesse recorrer da decisão, escreve o El Confidencial. E a hipótese mais plausível é que seja, nesse cenário, transferido da Catalunha para Madrid.
Nos próximos tempos, a política espanhola vai sentir as réplicas desta fuga (seja ela bem-sucedida ou não). O independentista mostrou que, entre a espada e a parede, ainda consegue resistir, surpreendendo os adversários. Com o apoio de aliados como Gonzalo Boye e alguma proximidade aos Mossos D’Esquadra, o ex-líder da Catalunha vai sobrevivendo politicamente. Resta saber se, desta vez, ganha outra vida, ou se acaba atrás das grades.