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A 26 de Abril deste ano decorrem 83 anos sobre o bombardeamento pelas tropas de Franco da vila de Gernika, o dito solar histórico dos forais e liberdades do que muitas vezes se designa por Euskal Herría, a região onde se vivem as tradições bascas e se fala o vasconço [euskera]. Aquele facto histórico deu origem a um dos maiores mitos da última Guerra Civil de Espanha (doravante GCE). Ao longo dos anos, mercê de uma contínua e vincada campanha propagandística levada a cabo pelos simpatizantes dos sectores políticos afectos ao governo de Madrid, formado pela Frente Popular, foi-se sedimentando nos registos da memória colectiva uma narrativa deturpada do que efectivamente aconteceu naquele dia. E nenhum upload mediático contribuiu tanto para conformar o nosso imaginário sobre o tema como a célebre tela de Picasso, intitulada precisamente Guernica.
Mas terá sido o painel pensado de raiz como uma manifestação de desagravo contra o ataque aéreo àquela urbe basca, como afirma o coro de historiadores e jornalistas apologéticos da Frente Popular, ou terá sido oportunisticamente adaptado ao aparelhismo mediático contra os sublevados? Como aconteceu, por exemplo, com o retrato tirado pelo fotógrafo catalão Antoni Campanyà em Barcelona e que o artista alemão John Heartfield, ao serviço da KomIntern [Internacional Comunista], adulterou por fotomontagem para Gernika. A “foto”, com a recriação cénica, foi publicada no Die Volks Illustrierte [Ilustração Popular] nº 22, de 2 de Junho de 1937 e “destapada” desastradamente pelo jornalista basco Javier Ortiz Echagüe para ilustrar a destruição de Gernika pelos rebeldes. Heartfield desenvolvera com os seus camaradas George Grosz e Otto Dix técnicas de fotomontagem ao serviço do aparelho propagandístico comunista criado por Willi Münzenberg. A última Guerra Civil espanhola é terreno minado pela propaganda, e pela manipulação histórica, que importa palmilhar com extremo cuidado. Mas rebusquemos o sótão dos arquivos e registos históricos.
A construção de um mito
Em Agosto de 1936, Pablo Picasso fora nomeado director do Museu do Prado, mas nunca tomara posse. Picasso, que até então não era conhecido por produzir conteúdo artístico de natureza política (só irá aderir ao Partido Comunista Francês em 1944), talvez achasse que, naqueles tempos, os ambientes franceses eram mais propícios à sua criatividade. Em Janeiro de 1937, Max Aub, adido cultural da embaixada espanhola (frente-populista) em Paris, contrata Picasso para a realização de um mural ou painel para ilustrar o Pavilhão de Madrid na EXPO (universal) a realizar na capital francesa. Por essa altura o pintor malaguenho inicia a execução de duas pranchas-estudo, com nove vinhetas cada, onde são já visíveis alguns dos motivos centrais do futuro Guernica; o díptico será então etiquetado como Sueño y mentira de Franco. O valor acordado com Aub cifrou-se em 150.000 francos franceses. Esta maquia foi-lhe paga em 28 de Maio de 1937 (e o recibo assinado a 31), a título de “gastos” e classificado na rubrica contabilística “Propaganda”, de acordo com o documento que foi encontrado nos arquivos pessoais do embaixador de Madrid em França. Na altura, o cargo era desempenhado pelo prócere socialista Luís Araquistáin, e o documento seria posteriormente disponibilizado por seu filho Ramón (Finki).
No exacto dia em que recebeu o dinheiro, Picasso efectua uma declaração “contra a posição fascista dos rebeldes franquistas” e afirma que “chamará Gernika ao mural em que está a trabalhar”. Esta declaração, apenas publicada em Julho nos EUA, será feita por exigência de Luis Araquistáin, para combater o boato que corria em alguns meios intelectuais e na imprensa da altura que dava Picasso como simpatizante dos sublevados, à semelhança de Dali. Com efeito, desde sempre que o pintor manifestara alguma desilusão, se não mesmo despeito, pela forma como os dirigentes burgueses da II República encaravam o seu valor artístico. A ilustrar esse facto, quando José António Primo de Rivera lhe fora apresentado por Ernesto Giménez Caballero, no Club Náutico de San Sebastián, em fins de 1935, Picasso afirmara que o pai, o general Primo de Rivera, havia sido, até então, o único político espanhol que falara dele em termos elogiosos, mencionando-o mesmo como uma das glórias nacionais, num artigo publicado nos Estados Unidos. E queixava-se amargamente do esquecimento a que estava votado pelo poder republicano de então. José António, simpaticamente, retorquira-lhe: “Deixe lá. Ainda um dia uma guarda de honra da Falange o há-de receber, na inauguração de uma exposição sua em Madrid”.
Não é verosímil que, face à responsabilidade da encomenda (e do seu valor, que correspondeu a mais de 10% do custo total do Pavilhão espanhol), o pintor só o começasse a executar a 1 de Maio como reza o mito, quando a EXPO de Paris deveria abrir a 25 desse mês. Foram razões imprevisíveis, relacionadas com um surto grevista em França, que protelaram a abertura de vários pavilhões. A não ser que Picasso tivesse tido a premonição do adiamento do certame, seguramente não era em menos de um mês que conseguiria pintar um painel com 3,5 m por 7,77 m e 300 kg de peso. Resta, serena e logicamente, concluir que o mesmo foi iniciado muito antes de 1 de Maio. Ora o ataque aéreo a Gernika aconteceu a 26 de Abril.
O quadro, que, segundo o seu autor, demorou a fazer sessenta dias, foi dado por concluído entre 6 e 8 de Junho pela sua amante da altura, a fotógrafa e pintora Dora Maar [n. Henriette Theodora Marković, de origem croata], que terminou o painel nos detalhes que Picasso considerava mais cansativos e monótonos. A versão final foi entregue formalmente em fins de Junho e colocada no seu lugar, no pavilhão espanhol, a 11 de Julho. Vários testemunhos de amigos e conhecidos do pintor apontam para que a designação original da tela fosse España.
Fosse como fosse, é indiscutível que o painel de Picasso contribuiu de forma indelével para consolidar a lenda, dando-lhe visibilidade plástica logotípica. Mas se é certo que “uma imagem vale por mil palavras” de onde surgiram as “mil palavras” que denunciaram ao mundo o bombardeamento? Vieram de um jornalista sul-africano chamado George Lowther Steer que, no Verão de 1935, fora contratado por The Times. O jornal londrino, que há muito marcava a agenda conservadora britânica, escolhera-o para cobrir, como enviado especial, a guerra ítalo-abissínia. A sua vivência etiópica, num cenário de guerra assimétrico, fê-lo tomar parte activa pelas forças do Negus Hailé Selassié, de quem se tornaria íntimo. O casamento com a jornalista “progressista” Margarita de Herrero y Hassett, filha de pai espanhol e mãe inglesa, ainda mais contribuiu para que Steer se assumisse como um repórter engagé, pouco se preocupando com a objectividade dos relatos, roçando mesmo a manipulação propagandística.
Quando The Times o enviou para cobrir a guerra civil que entretanto rebentara em Espanha no Verão de 1936, pareceu-lhe normal, como acontecia, aliás, com bastantes jornalistas da altura, eivados de sentimentos anti-castrenses e anti-clericais, alinhar com o governo revolucionário da Frente Popular. E quando, perante o impasse na conquista de Madrid, as forças nortenhas dos rebeldes, já senhoras da Guipúscoa, resolvem continuar a ofensiva sobre a Biscaia, Lowther Steer desloca-se para Bilbau. Convém assinalar que, tal como acontecera historicamente com Portugal, também o País Basco era considerado uma espécie de protectorado comercial britânico. As primeiras crónicas de Steer descrevem a forma como os barcos comerciais britânicos, sob o resguardo da Union Jack, iam furando o bloqueio naval das forças insurrectas, levando mercadorias e trazendo refugiados.
À medida que o conflito progredia, passou a cobrir com detalhe os episódios que entendia mais significativos. E, apesar de não ter sido testemunha directa do ataque a Gernika, é dele que parte a crónica do dia 28 de Abril, publicada pelo seu jornal e de que o New York Times e L’Humanité se fizeram eco. Numa activa vigilância permanente sobre as aventuras militares alemãs, Steer acusa os germânicos da “atrocidade”. Para ilustrar a acusação, descreve alguns invólucros de bombas com marcas alemãs, tendo aproveitado, no estilo peculiar dos jornalistas engagés, para efabular sobre o tema, causando um grande impacto internacional.
Mas as consequências do relato de Steer ultrapassarão mesmo a dimensão circunstancial do ataque aéreo a Gernika. É a sua “denúncia” que irá estar na origem do aparecimento na História de um dos mais célebres espiões: Philby, membro do chamado “grupo dos cinco de Cambridge”. Kim Philby [n. Harold Adrian Russell Philby] aproximara-se do aparelho da KomIntern pela mão de um monitor de Economia de Cambridge, Maurice Dobb. Este introduzira-o numa das organizações de fachada da teia montada por Willi Münzenberg, principal agente da Internacional Comunista para a propaganda exterior. Foi ao gravitar nessa órbita que viria a conhecer Litzi Friedman [n. Alice Kohlmann], uma militante comunista austríaca de origem judaica. Seria ela, com quem viveu um par de anos, que o recrutaria para a espionagem soviética, no Verão de 1934. Em 1936, por instrução do seu controleiro, ingressou na Associação de Amizade Anglo-Germânica. E no fim do Inverno de 37, Philby estará em Sevilha, como correspondente de guerra freelancer, tendo criado alguma intimidade com figuras importantes do aparelho de Informação e Propaganda dos insurrectos nacionales. Propõe-se então trabalhar para o The Times, mas o periódico rejeita-o.
Em Inglaterra, a facção defensora da estratégia de “apaziguamento” com a Alemanha de Hitler conseguira o triunfo nas eleições e, finalmente, um Chamberlain – Neville – é primeiro-ministro. Ora, Geoffrey Dawson, o veterano director do The Times não só partilha daquela orientação como é mesmo membro da tal Associação de Amizade Anglo-Germânica, a que Philby igualmente pertence. Dawson, como a maioria dos conservadores britânicos, torce pela vitória dos sublevados em Espanha. E é com algum embaraço, e irritação, que lê no seu jornal as crónicas empolgadas e comprometidas de Steer. Dawson percebe que a linha “apaziguadora” do jornal é posta drasticamente em causa com as acusações à Alemanha. E sente que tem de compensar o idealismo de Steer com um correspondente credível do outro lado. Já por lá tinham passado uns quantos mas sem grande contributo nem notoriedade. Lembra-se então daquele jovem jornalista de “boas famílias” que, aparentemente até já tinha bons contactos do lado “nacionalista”. E resolve mandar contratá-lo.
Chamado a Londres, Philby assina contrato com The Times, a 24 de Maio de 1937, regressando de imediato a Espanha com a dupla missão de informar sobre os sucessos das tropas de Burgos e, mais discretamente, sobre o envolvimento militar estrangeiro, sobretudo no que dizia respeito ao arsenal tecnológico alemão, francês e russo. Dos seus verdadeiros “patrões” – os soviéticos – recebe a incumbência de se aproximar pessoalmente do generalíssimo Franco e relatar com detalhe o seu esquema de protecção pessoal. E quando, pelas imponderáveis vicissitudes do destino, durante os combates em redor de Teruel, uma granada da artilharia governamental quase o mata, Philby é condecorado pelo próprio Franco com a medalha de Mérito Militar (cruz vermelha). Tal facto, atestando, por inferência, a sua credibilidade conservadora, irá tornar-se, inadvertidamente, na gazua de entrada no MI5 (o serviço britânico de informações de segurança interna e de contra-espionagem), onde iniciará uma lendária carreira de agente duplo até desertar para a URSS, em 1963.
Olhando para o quotidiano da guerra civil, cabe perguntar porquê Gernika e não, por exemplo, Durango, bombardeada pouco antes e onde o número de baixas fora maior? Hugh Thomas (baseado em Steer) atribui o ataque aéreo a Durango aos italianos. Será que, conhecida a responsabilidade germânica na intervenção sobre Gernika, os sectores que em Londres mantinham uma tensa vigilância à política expansionista alemã, também não descuraram a oportunidade de pôr os alemães em cheque? Lowther Steer, que simpatizava com essas correntes de opinião, vendo a oportunidade, rapidamente preparou um livro – The Tree of Guernika: A field study of modern war (1938) – em que a verdade dos factos surge algo distorcida, empolando o número de vítimas da acção da Legião Condor. Mas a publicação, como seria de esperar, calou fundo em muitos sectores conservadores britânicos, até aí mais inclinados para a causa rebelde.
As notícias de Steer tiveram igualmente eco local. Rafael Casas de la Vega, por exemplo, no seu livro Errores Militares de la Guerra Civil, dá nota de uma conversa que teve em Saint Jean de Luz (Donibane Lohizune, em euskera), em França, com o cónego Alberto de Onaindía Zuloaga que, ao ir buscar sua mãe à sua terra de origem, na zona de Marquina, fora testemunha involuntária do bombardeamento. O sacerdote, apesar do azedume que manifestava para com os sublevados, lamentando amargamente a execução, em fins de Outubro de 36, do seu irmão Celestino (também ele sacerdote) com a complacência de Mola, relatou-lhe com seriedade o que viu. Autor de um livro de memórias intitulado Hombre de paz en la guerra, o cónego biscainho contou-lhe como no regresso da viagem se havia encontrado com o lehendakari [chefe do Executivo basco] Aguirre, seu amigo. Este, ao aperceber-se do alcance político que a publicidade internacional sobre o caso, dada por George Lowther Steer, estava a trazer à causa basca, pediu-lhe que, uma vez em França, tentasse divulgar ainda mais a catástrofe provocada pelo bombardeamento de Gernika. O que o padre Onaindía conseguiu com sucesso, não só junto dos “católicos progressistas” franceses mas também aos microfones da BBC.
Todas essas campanhas internacionais, dirigidas com grande dinamismo, contaram ainda com o paradoxal apoio do Comando dos insurrectos e dos meios informativos ao seu serviço. Estes empenharam-se em negar o bombardeamento, atribuindo a destruição e o incêndio da vila às tropas governamentais em retirada, à semelhança do que estas haviam feito em Irún e em Eibar, aplicando a táctica da terra queimada. Uma “Missão do Curso do Estado Maior [do Exército Português] à Espanha Nacionalista” visitou Gernika a 22 de Maio de 1937, ou seja poucos dias depois do bombardeamento. Apesar do tom algo distante e neutro que se depreende do relatório elaborado (Capítulo XXII), os oficiais portugueses entenderam que não havia evidências claras de que a destruição da vila se tivesse ficado a dever ao bombardeamento aéreo, tal como sustentava a contra-informação rebelde. Tinham conhecimento de que os frente-populistas “empregavam em larga escala as destruições” tácticas do tipo terra-queimada, como puderam comprovar em Eibar, e entenderam que não “é fácil, com bombas de avião, conseguir uma destruição tão uniforme e completa” como a que puderam observar em Gernika.
É difícil perceber em que medida foram influenciados pela contra-informação dos sublevados. Mas, em abono da verdade, diga-se que os oficiais portugueses não estavam sós na sua análise. Sir Archibald James, um oficial aviador britânico, visitou Gernika poucos dias depois da sua tomada (a 29 de Abril de 1937) e observou que a urbe tinha sido incendiada e arrasada sistematicamente, com excepção do quarteirão que continha a Casa de Juntas e o carvalho que lhe está anexo; segundo o relato, encontrou apenas meia dúzia de pequenas crateras dentro de cem metros do perímetro. Também o historiador inglês Brian Crozier visitou Gernika e pareceu-lhe difícil justificar o grau de destruição apenas a partir do ar. E em 1973 o académico americano Jeffrey Hart publicou um estudo que intitulou The Great Guernica Fraud em que defende a mesma tese.
Em Setembro de 1937, numa iniciativa burocrática do governo de Burgos, uma comissão técnica do seu Ministério de Obras Públicas, chefiada pelo engenheiro Estanislao Herrán, depois de ouvir múltiplas testemunhas e investigar os destroços, elaborou um minucioso e detalhado relatório que provava sem sombra de dúvida a existência de um bombardeio, incluindo dados técnicos, como a localização dos impactos das bombas e as linhas de progressão dos focos de incêndio. Mas os peritos de propaganda e comunicação dos sublevados haviam decidido negar tudo e o Relatório Herrán, como viria a ficar conhecido, seria convenientemente arquivado até o historiador Ricardo de la Cierva o ter trazido de novo à ribalta muitos anos depois. Ao que tudo indica, Franco e Mola desconheciam a iniciativa alemã e haviam ficado profundamente irritados com a acção indisciplinada. Cometeram, no entanto, o erro de se deixar influenciar por Luis Bolín que os convenceu a negarem o bombardeamento, como forma de damage control. Mas, como rapidamente se comprovaria, a negação grosseira de Burgos só viria amplificar ainda mais o mito de Gernika.
Criou-se assim mais uma lenda negra que procura fazer acreditar que o ataque tinha como objectivo estratégico deliberado a destruição da vila e, concomitantemente, dos símbolos da identidade e liberdade bascas, a Casa de Juntas da Biscaia com a sua Arbola, o carvalho perante o qual, tradicionalmente, prestava juramento o presidente do Bizkai Buru Batzar (a Assembleia da Biscaia) e, posteriormente, por extensão, o lehendakari, o chefe do Executivo basco. A tese arrebatada de que a Legião Condor pretendia destruir esse conjunto emblemático é desmentida pelo próprio facto de aquelas edificações, bem visíveis numa colina sobranceira ao centro urbano, terem ficado indemnes. Contudo, a lenda instalou-se e os simpatizantes da Frente Popular encarregam-se de a alimentar emocionalmente, por ignorância ou má-fé, como faz, por exemplo, Joaquim Namorado, em A Guerra Civil de Espanha na poesia portuguesa — uma Antologia.
Posteriormente, em 1976, a descoberta dos registos das ordens de combate do destacamento aéreo italiano (ordem de operação nº 48 do Comando do Grupo sediado na base de Sória), encontradas por Massimo Olmi e publicadas pelo historiador Jesús Salas Larrazábal, desmentiria, de forma irrefutável, aquele libelo acusatório contra os rebeldes. Nos documentos encontrados, para além de se confirmar a efectiva participação dos italianos na operação (sempre desmentida ou ignorada), afirma-se que o objectivo era o bombardeamento da ponte sobre o rio Oca, no bairro de Rentería, e que a povoação, por “evidentes razões políticas”, não deveria ser bombardeada. As “evidentes razões políticas” referem-se à natureza simbólica da urbe e não, como alguns historiadores querem fazer crer, às tentativas que os nacionalistas bascos do PNV estavam a fazer para conseguir negociar uma rendição separada com os italianos do CTV [Corpo di Truppe Volontarie], naquilo que viria a ficar conhecido como o Pacto de Santoña. Este só seria negociado posteriormente e assinado em 24 de Agosto de 1937, embora fosse de imediato desconsiderado por Mola. Com efeito, Juan de Ajuriaguerra, o então presidente do Bizkai Buru Batzar, iniciara os contactos com os italianos, com a mediação da Santa Sé, apenas perante a queda iminente de Bilbau e não antes.
A sub-guerra civil basca
Entre 17 e 21 de Julho de 1936, um núcleo duro de militares que se opunham à deriva revolucionária do governo de Madrid, e aos crescentes atropelos à ordem e à justiça, revoltaram-se por toda a Espanha. Face à situação extraordinária criada no seio da tropa, a atitude de muitos oficiais e membros das forças da ordem pública não comprometidos com a sublevação foi ditada tanto pelo acaso geográfico como pelas circunstâncias pessoais de amizade, parentesco ou camaradagem castrense, a par do posicionamento ideológico.
Algo semelhante aconteceu com a população em geral e o País Basco não foi excepção. Os que se filiavam nos partidos da esquerda sem-fronteiras, na sua generalidade castelhanófonos, alinhavam obviamente com o Executivo da Frente Popular. Os euskaldunak zahar [falantes de vasconço como primeira língua] da dita Euskal Herría basco-navarra dividiram-se essencialmente entre duas posições. De um lado, os que propugnavam a criação a todo o custo de uma única “entidade nacional” que juntasse todas as zonas onde o euskera era usado, de imediato em Espanha (Euskadi, com as suas três províncias – Gipuzcoa, Bizkaia e Araba – e o norte e noroeste de Navarra), e, posteriormente, em França (Lapurdi, Nafarroa Beherea [Baixa Navarra] e Zuberoa). Do outro, estavam os que defendiam a descentralização foral das províncias bascas, com as suas liberdades individuais e comunitárias, sob a égide do rei de Espanha, amparada pelos monárquicos neo-carlistas da Comunidade Tradicionalista.
Estes últimos tinham até olhado para o advento da República como um desafio e uma oportunidade para restaurar a que consideravam ser a verdadeira expressão monárquica: a legitimista. A realidade, porém, era que, depois das sucessivas derrotas nas guerras civis do século XIX, o carlismo se arrastava dolentemente, curtindo nostalgicamente memórias épicas, aparentemente remetido à evocação de glórias e rebeldias passadas. Sobrevivia enquistado nas montanhas e vales do País Basco, da Alta Navarra, do Aragão profundo e da Catalunha, onde o municipalismo e o seu catolicismo arreigado lhe dava influência, prestígio e dimensão social. Os desmandos revolucionários que haviam surgido com a proclamação da II República, com as sangrentas perseguições aos católicos, fez perceber aos carlistas que tinham de abandonar o seu ensimesmamento.
Inicialmente, acordaram uma aliança com os seus “primos” do Partido Nacionalista Basco (PNV), assinando em Julho de 1931 o Pacto de Estella [Lizarra] e redigindo em conjunto o rascunho do Estatuto Autonómico das províncias bascas, com o incentivo catalisador da Associação Católica de Propagandistas. Na praça de touros de Estella, além de centenas de autarcas, juntaram-se o tradicionalista Marcelino Oreja Elósegui e José António Aguirre, presidente da Câmara de Guetxo e a figura mais carismática dos nacionalistas bascos; ambos eram altos dirigentes da tal Associação Católica de Propagandistas. Aliás, Aguirre seria mesmo eleito para as Cortes de Madrid por Navarra, com o apoio determinante do voto tradicionalista.
Mas no decorrer da insurreição revolucionária de Outubro de 1934, quando as duas facções mais extremistas do Partido Socialista Operário Espanhol procuraram reconquistar pela violência das armas o poder que haviam perdido nas urnas nas eleições de Novembro do ano anterior, o namoro entre nacionalistas bascos e tradicionalistas acabou. Estes entendiam que aqueles tinham sido cúmplices passivos da revolução vermelha e não perdoaram a Aguirre o seu silêncio perante as cruéis execuções de centenas de pessoas nas Astúrias, e muito especialmente a do seu velho amigo Marcelino Oreja, barbaramente assassinado em Mondragón [Arrasate, em euskera], no próprio País Basco. E assim, depois de Outubro de 1934, os neo-carlistas arreganharam os dentes, limparam as clavinas e os bacamartes e prepararam-se para a defesa proactiva, reavivando a sua velha milícia – o Requeté.
Quando o brigadeiro Emilio Mola, o Director da conspiração militar que desde Maio de 36 procurava arregimentar os oficiais incomodados e alarmados com os desmandos da agitação revolucionária esquerdista que grassava em Espanha, procura o apoio dos carlistas, pede-lhes três mil homens armados. Ciosa dos seus arreigados princípios, a Comunidade Tradicionalista vende cara a sua participação na emergente sublevação, colocando a Mola exigência sobre exigência. Ao brigadeiro, filho e neto de militares que haviam feito a sua carreira a lutar contra os carlistas só lhe apetece mandar passá-los pelas armas. Mas concluída a negociação, selada com o aperto de mão da praxe, no dia aprazado, na Plaza del Castillo de Pamplona, não estavam três mil mas quase dez mil requetés armados. E das montanhas e vales da Hego Euskal Herría [país basco do sul, ou espanhol], sobretudo de Navarra e de Guipúscoa, continuaram a vir filas intermináveis de homens, por vezes três gerações de rurais, os baserritarrak, avô, pai e neto. As execrações contra a Igreja, o ódio aos crentes e a intolerância jacobina haviam acordado da letargia os outrora resignados txapelgorriak, os “boinas encarnadas”, que engrossavam agora aos milhares a força nortenha de Mola. E como dizia o prócere falangista Agustín de Foxá, não havia no mundo animal mais perigoso que um requeté recém-comungado.
Em Navarra, nas eleições de Fevereiro de 1936, as forças políticas anti-revolucionárias tinham elegido todos os deputados e em Álava tinham obtido a maioria. Os voluntários oriundos dessas regiões, ao contrário do que acontecia na Biscaia e na Guipúscoa, submeteram-se disciplinadamente às estruturas militares profissionais. E o triunfo fácil do Alzamiento em Navarra, retirara à Frente Popular a colaboração eficaz das bolsas esquerdistas de Alsasua e de várias povoações da ribeira navarra. Quando da sublevação, o PNV da Guipúscoa (San Sebastián) e da Biscaia (Bilbau) alinharam politicamente com o governo de Madrid enquanto o de Navarra se somava ao Alzamiento e o de Álava (Vitoria) se manteve, inicialmente, na expectativa.
Na outra Euskadi, nas províncias em que o PNV mantivera o seu pacto com Madrid (Guipúscoa e Biscaia) em nome dos objectivos últimos separatistas, a reacção à tentativa de golpe militar não se fizera esperar com o aparecimento nas ruas das milícias socialistas, comunistas e anarquistas e da anticlerical Eusko Abertzale Ekintza [Acção Nacionalista Basca]. O PNV [Euzko Alderdi Jeltzalea], maioritariamente apoiado por conservadores católicos, enrodilhados desconfortavelmente no processo revolucionário que desde Março de 36 grassava em Espanha, manifestou alguma inércia e demorou a reagir. Mas Aguirre, entre a revolução social e o expectável imperialismo centrípeto dos sublevados, optou por manter o pactuado com o Executivo da Frente Popular, emprestando a Madrid um protagonismo importante na sua estratégia propagandística.
Esse papel seria consubstanciado com requintes mais elaborados, levando inclusivamente a que os nacionalistas bascos integrassem o governo de Largo Caballero em 4 de Setembro de 1936. Como contraponto ao seu reconhecido papel cénico, exigiram um novo Estatuto autonómico e governo próprio, o que se iria concretizar a 1 e 7 de Outubro, respectivamente. Segundo o próprio Aguirre, “Euskadi serviu […] de único argumento no exterior, invocado tantas vezes na Sociedade das Nações e por inúmeros políticos (incluindo comunistas, como a senhora Ibárruri) nos seus comícios de propaganda no exterior, tanto em Paris, como em Londres, como em diversas publicações da América”. Referia-se à exploração propagandística, sobretudo no exterior, do facto insólito da existência de um grupo político de ideologia conservadora, católica e liberal dentro da Espanha revolucionária. Ou seja, branqueando a selvática perseguição a católicos e conservadores por toda a Espanha, a desconforme posição do governo de Euskadi era recorrentemente apresentada perante o mundo como exemplo da “tolerância democrática e religiosa” dentro do “Estado Republicano”.
Preparando-se para a Guerra, nomeadamente para a defesa da sua Euskadi, o lehendakari Aguirre iniciou o levantamento de forças armadas bascas. E em muitas localidades do território que permaneceu ligado ao governo de Madrid formaram-se Comités de Defesa, responsáveis pelo recrutamento de voluntários para as milícias e por garantir o abastecimento de víveres e de material de guerra. Tinham também a incumbência da detenção e sancionamento (muitas vezes a execução) de cidadãos tidos por serem afectos às ideias reaccionárias dos sublevados.
Com os requetés em Alegia, às portas de Tolosa, a menos de 25 quilómetros dali, em Loyola, a 8 de Agosto de 1936 nasciam os gudaris [literalmente os “guerreiros”], a milícia armada basca que iria ser transformada rapidamente no Eusko Gudarostea – o Exército Basco. Na sua base estavam associações de estudantes e trabalhadores, essencialmente formadas por bascos mendigoizales, grupos de jovens que viam na prática do atletismo e do montanhismo [daí o nome, já que mendi em euskera significa montanha] a prossecução do espírito nacionalista exacerbado de Sabino Arana, o fundador do PNV. Presente estava seguramente a inspiração do movimento pan-eslavista Sokol [Falcão] surgido no final da segunda metade do século XIX pela mão dos nacionalistas checos. Até ao fim de Agosto de 1936 iriam conseguir apenas cerca de 1.300 voluntários gudaris mas em Novembro, com o recrutamento obrigatório, chegariam aos 25 mil.
As armas vinham das várias indústrias de material de guerra do País Basco e mesmo da Catalunha de onde a Generalitat havia enviado algumas centenas de espingardas e meia-dúzia de canhões que, circulando livremente por França, entraram pela raia molhada donostiarra de Irún-Viriato, no Bidassoa. Mas como afirmaria o insuspeito major Antonio Sanjuán Cañete, ex-comandante militar de San Sebastián e que autorizara a execução em massa dos sublevados detidos, “a demagogia e a iniciativa individual era o que imperava em todo o lado. As autoridades [referir-se-ia a ele mesmo?], os dirigentes da Frente Popular e os chamados “responsáveis” não conseguiam manter o controlo das massas. Os comunistas e os anarquistas eram os elementos mais divergentes; os “republicanos” não mandavam nada, e os nacionalistas bascos faziam vida à parte”.
Na capital da Guipúscoa, San Sebastián, por hesitação dos chefes militares locais envolvidos na conjura, a sublevação apenas se manifestara, e timidamente, no dia 21 de Julho. Uma forte coluna de milicianos frente-populistas que se havia constituído rapidamente nos primeiros dias da insurreição militar refluiu sobre a cidade e afogou em sangue a tíbia revolta. San Sebastián foi um dos inesperados falhanços do Levantamento militar anti Frente Popular a Norte, tendo outro sido Santander. Por isso desde que a fracassada insurreição degenerara em guerra civil que o comandante do exército rebelde do Norte, o general Emilio Mola, tinha assumido como objectivo estratégico crucial a conquista de Irún e de todo o vale do Bidassoa, para interromper a ligação directa da zona asturio-cantábrica com França. Para isso contou com a preciosa ajuda da Marinha de Guerra dos sublevados que desde meados de Agosto de 36 começara a bombardear os principais portos guipuscoanos.
Durante o mês de Setembro, as forças de Mola, maioritariamente compostas por milicianos requetés e comandadas pelo coronel Alfonso Beorlegui y Canet, depois de conquistar Irún, a 3, e San Sebastián (cuja evacuação foi permitida para evitar a destruição da urbe), a 13, dominam praticamente toda a Guipúscoa. Mas a progressão é travada na raia com a Biscaia, onde a orografia e o encarniçamento dos governamentais tornam o avanço extremamente penoso e pesado em baixas. Perante a queda da zona leste e norte da Guipúscoa, por sugestão do tenente-coronel engenheiro Alberto de Montaud, o governo autonómico basco tinha tomado a decisão de construir uma rede de modernas fortificações perimétricas ao redor de Bilbau – a linha da Cintura de Ferro [el Cinturón de Hierro] – em cuja implementação e projecto se destacará o capitão Alejandro Goicoechea.
O exército governamental do Norte estava desde 4 de Novembro de 1936 sob o comando formal do general Francisco Llano de la Encomienda, nomeado por Largo Caballero. O 1º Corpo de Exército, o de Euzkadi, era composto por 4 divisões e 16 brigadas mistas; o 2º Corpo de Exército, o santanderino, tinha 3 divisões e 12 brigadas; o Asturiano era constituído por 7 divisões e 17 brigadas. Mas Llano de la Encomienda não conseguia exercer a sua autoridade sobre a tropa basca já que José Antonio Aguirre, uma vez eleito lehendakari, a 26 de Outubro de 36 decidira regionalizar todas as “unidades, Armas e Corpos de Exército” que operavam no País Basco, colocando-as sob a sua autoridade. E sobre elas impôs a sua tutela política e operacional, ao assumir na prática, o cargo de comandante-em-chefe das forças armadas bascas, com o tenente-coronel Alberto de Montaud y Noguerol como chefe do Estado-Maior enquanto o major de Infantaria Modesto Arambarri se mantinha como Chefe de Operações, dependente de Llano.
Quando em fins de Novembro de 36, sob instruções de Madrid, Llano de la Encomienda, prepara uma ofensiva para romper para sul a frente de combate, Aguirre decide tomar-lhe a dianteira. Com um manifesto excesso de confiança, queria conquistar toda a província basca de Araba, começando pela sua capital Vitoria [Gasteiz]. Para o conseguir havia que ultrapassar o ponto nevrálgico da fronteira provincial – Villarreal de Álava, defendida por cerca de 780 homens, na sua maioria milicianos falangistas e requetés. Sobre eles lançou mais de 10.000 combatentes, organizados em três colunas de penetração e com total supremacia aérea e artilheira. Mas passado o sobressalto inicial, os defensores aguentaram-se, permitindo que uma expedição das forças navarras do general Solchaga, comandada pelo tenente-coronel Camilo Alonso Vega, chegasse a tempo de evitar a queda da posição, pondo a enorme mole dos atacantes em fuga, com numerosas baixas. O fracasso militar valeria a Aguirre o apodo sarcástico de Napoleontxu,
No bando frente-populista, o estrondoso desastre militar de Villarreal propiciou e incentivou inúmeras deserções, nomeadamente de montanheses cantábricos. Também muitos bascos, desconfortáveis com a situação política que se vivia na sua retaguarda procuravam passar-se para o bando rebelde. Alguns eram apanhados e imediatamente fuzilados enquanto outros o conseguiam fazer com sucesso. Digna de nota foi a deserção do capitão Alejandro Goicoechea, o principal arquitecto do Cinturón de Hierro de Bilbau, cujos planos entregou a Mola. A 27 de Fevereiro de 1937, ainda em choque com a execução poucas semanas antes do seu colaborador, o capitão Pablo Murga, num sector da frente, perto do porto de montanha de Arlabán, conseguiu passar-se para os rebeldes. Mas, no geral, até à Primavera de 37 a frente Norte ficará estável.
A guerra no Norte
A 1 de Outubro de 1936 acontecera um facto de extrema relevância e que iria mudar radicalmente o curso do conflito. Uma vez falhado o Alzamiento, a Junta Militar que encabeçava o esforço de guerra em que a sublevação militar se transformara, decidira nomear o comandante do Exército de África, o general Francisco Franco Bahamonde, Generalísimo de todas forças rebeldes e, ao mesmo tempo, Chefe de Estado, como ele exigira como condição para aceitar o mando militar supremo. Animicamente alavancado pelo êxito da sua decisão estratégica de libertar o Alcácer de Toledo, em alternativa à aventura de sucesso incerto de conquistar a capital, e revalorizado em alta pela conquista naval das águas do Estreito de Gibraltar, ambas ocorridas a 27 de Setembro, Franco, o insondável galego, afirmava-se agora como o líder supremo dos insurrectos. E nunca mais largaria a batuta com que orquestraria a condução da Guerra.
No Centro, a 6 de Novembro de 1936, perante a proximidade das forças sublevadas que haviam já posto o pé no limite urbano de Madrid (na Cidade Universitária), o Governo da Frente Popular retirara-se para Valencia, deixando o general José Miaja Menant como presidente de uma Junta de Defesa de Madrid, tendo como chefe do Estado-Maior o tenente-coronel Vicente Rojo Lluch. As tropas de Franco apertavam Madrid por três frentes mas a capital espanhola parecia aguentar-se bem, sob a batuta de Miaja e o engenho de Rojo. Pressionado pelos seus principais conselheiros para a conquista de Madrid como determinante para uma vitória rápida, o generalíssimo lá ia dispondo os seus recursos, embora pouco convicto do sucesso e da sensatez do objectivo. Como de certa maneira provara com o desvio por Toledo em fins de Setembro de 1936, Franco pressentia que, mesmo que fosse exequível conquistar a capital, perante a sua manifesta inferioridade numérica, dificilmente a conseguiria aguentar. Nos combates pela conquista de uma grande metrópole, a eficácia da manobra das tropas de choque do Exército de África seria completamente anulada pelo peso do número de defensores e da melhor qualidade do seu material de guerra.
Essa convicção de Franco transparece na Nota da sua mensagem telegráfica para Mola, publicada pelo historiador militar Martínez Bande no livro La marcha sobre Madrid: “evitando ataques casco población, que caso contrario defensa destrozaría tropas” Na comunicação, datada de 11 de Agosto de 1936, o general Francisco Franco, então ainda apenas comandante do Exército de África, dirigira-se ao seu camarada Mola, comandante do Exército do Norte e “maestro” da sublevação, dizendo-lhe que concorda que o “problema principal” seja a “ocupação de Madrid” mas entende que “a acção sobre Madrid […] deve consistir em apertar-lhe o cerco e privá-la de água e aeródromos, cortando-lhe as comunicações”. De acordo com Franco, depois do cerco da capital, deveriam descer para Levante, sem perder de vista que o objectivo último era o corte total da fronteira com França e a conquista da Catalunha.
Mas em Madrid, a Junta de Defesa, com a ajuda de conselheiros e material de guerra soviéticos conseguiu erguer um exército mesclado em que os milicianos eram enquadrados por militares profissionais. As Escolas de Formação Militar criadas de urgência, bem como a superioridade do material de guerra soviético, nomeadamente os aviões Polikarpov I-16 (os primeiros caças de asa baixa monoplanos do mundo apelidados ratas ou moscas) e os blindados T-26 (“inspirados” nos planos do britânico Vickers 6-Ton), começavam a dar os seu frutos. Acresce o facto de que em Novembro de 36 tinham começado a chegar a Madrid as forças levantadas pela KomIntern, as Brigadas Internacionais, que foram determinantes em fixar o inimigo na linha do Manzanares, evitando a sua penetração na capital. E Franco sabia que não conseguiria contar com o concurso da Guardia Civil, pois fora exactamente a lealdade da Benemérita para com o Executivo da Frente Popular que permitira a este dominar a sublevação na cidade, tal como acontecera em Barcelona. No princípio do ano de 37, com as únicas forças de vulto que tinha disponíveis – os italianos – Franco predispôs-se a mais uma tentativa, procurando atingir as margens do rio Jarama e cortar ao inimigo o acesso directo a Valencia. Mas a ofensiva iria falhar mais uma vez.
Após a rápida conquista de Málaga, em Fevereiro de 1937, as forças italianas já estavam em Almería. Franco decidiu-se a usá-las na ofensiva que Mola preparava de Norte para Sul, tentando conquistar Guadalajara e estabelecer ligação com as tropas estacionadas na frente do Jarama. Para isso até estava disposto a permitir aos italianos, entretanto já agrupados no CTV, total autonomia operacional e o apoio de uma Brigada da Divisão de Sória. E entre 2 e 22 de Março desenrolou-se a atabalhoada ofensiva de Brihueja-Guadalajara que, no fim, se cifrou por uma significativa derrota dos transalpinos, a qual encerrou definitivamente qualquer pretensão de conquista manu militari de Madrid. Contudo, embora uma expressiva mácula nos pergaminhos marciais italianos e no prestígio de Mussolini, o fracasso da campanha, ao não ser explorado militarmente pelas forças da Frente Popular, não alterou significativamente o decurso da Guerra. E, de certo modo, a excessiva exaltação com que o aparelho propagandístico de apoio ao governo de Madrid celebrou o triunfo até lhe trouxe consequências negativas em termos internacionais: ao dar ideia de se ter alcançado um equilíbrio militar, induziu alguns países mais proclives a apoiar o governo da Frente Popular a retrair-se.
Perante o impasse na frente madrilena, Franco é obrigado a repensar os objectivos estratégicos. Após ponderada reflexão, decidiu aceitar as sugestões do comandante da sua Aviação, o general Alfredo Kindelán y Duany, e do coronel Juan Vigón Suero-Díaz, chefe do Estado-Maior das Brigadas navarras do general José Solchaga Zala, e transferir o centro de gravidade da guerra para o Norte. Na Biscaia, na Cantábria e nas Astúrias, ainda na posse dos governamentais, encontrava-se quase toda a indústria de armamento e explosivos do país bem como as mais importantes minas de ferro, carvão e zinco. E essa decisão de Franco iria acordar o adormecido teatro de operações basco, praticamente inactivo desde o outono do ano anterior, como vimos.
O fiasco da ofensiva do Executivo basco sobre Villareal de Álava pusera em evidência o facto de a Biscaia ser provavelmente a região governamental mais vulnerável da Frente Norte, ao mesmo tempo que era a mais rica do ponto de vista industrial, nomeadamente no que dizia respeito à produção de armamento. E, com as nuvens negras que já ameaçavam abater-se sobre a Europa, os chefes dos sublevados queriam rapidamente mitigar a vulnerabilidade crítica que constituía a excessiva dependência de terceiros no que dizia respeito a armas e munições.
Mas a manobra era arriscada, já que ao diminuir a pressão sobre a Capital, permitiria ao Governo recuperar a iniciativa, dispondo de um exército forte, muito bem equipado e organizado, e moralmente reforçado por ter sido capaz de travar a última ofensiva de Franco. Por outro lado, o objectivo não era simples. A orografia favorecia a defesa e não o ataque, as forças oponentes estavam bem equipadas e eram numerosas embora o seu moral não fosse o mais elevado. O exército do Norte do general Llano de la Encomienda dispunha nominalmente de cerca de 120.000 homens, 250 canhões e perto de 50 aviões de combate. Mas também era verdade que a convivência entre forças ideológicas tão díspares como o PNV de José António Aguirre e os seus aliados frente-populistas nunca fora simples, e a criação de um governo autónomo basco (apesar de ter na sua composição ministros socialistas e comunistas) não viera facilitar as coisas.
Enrodilhado nas suas ambições e condicionamentos de ordem política e logística, Aguirre acabará por ter de ceder na reorganização militar do exército de Euskadi. A partir do dia 25 de Abril de 1937, as forças de Euskadi iriam ser estruturadas em Divisões e Brigadas, sendo colocadas fora da lei todas as hostes milicianas que combatessem sob insígnias não integradas no Decreto do Conselho Executivo Basco. E anunciou-se a nomeação para breve de um novo comandante-chefe para as forças, assim como a imediata mobilização e militarização de todas as indústrias de guerra e afins. Por exemplo, para Gernika, ponto crucial do perímetro de defesa de Bilbau pelo nordeste, foi organizada de imediato uma Divisão sob o comando do coronel Arturo Llarch Castresana.
Do outro lado, tudo ponderado, Franco, a 22 de Março de 1937, ordena a Mola que prepare o início da campanha da Biscaia, com o objectivo primeiro da conquista de Bilbau e, ulterior, da ocupação de toda a faixa cantábrica incluindo as Astúrias. A ofensiva poderia ter começado por qualquer das três regiões. A partir de Oviedo, directamente sobre Santander ou sobre a Biscaia. Mola preferiu esta última porque tinha a leste (na ocupada Guipúscoa) e a sueste importantes concentrações de forças basco-navarras, entretanto já organizadas em brigadas e divisões, à semelhança do que fizera Madrid com as suas tropas. O facto de haver vários caminhos alternativos para a penetração também deve ter contado para a decisão. Eram 39 batalhões (cerca de 28 mil espanhóis e 8 mil italianos) ao ataque contra 52 à defesa (cerca de 44 mil homens), mas uma clara supremacia aérea dos sublevados com a entrada em jogo da Legião Condor e da Aviazione Legionaria. Quando o avanço começou, quer a tentativa feita pelo sul quer, depois, a do Leste, pelo eixo Durango-Gernika, demonstraram aos rebeldes a necessidade de suprir a insuficiência artilheira pela arma aérea.
Como os oficiais alunos do tal Curso de Estado-Maior do Exército Português perceberam e relataram, com o início da ofensiva sobre a Biscaia havia terminado a fase do conflito em que os rebeldes recorriam a manobras limitadas, envolvendo poucos efectivos (as columnas) com que aspiravam a obter resultados decisivos. Franco tinha compreendido que a guerra estava para durar e tratou de montar uma moderna máquina de guerra que servisse os seus objectivos políticos, logísticos e estratégicos. E a ofensiva na Frente Norte tem início no último dia de Março de 1937, com o avanço do 1º Grupo (chefiado por Solchaga), pertencente à VI Divisão (comandada por José López-Pinto), a procurar penetrar as linhas de defesa da Biscaia. A par da ocupação do vale de Leniz, os rebeldes lançam-se sobre Otxandio e bombardeiam Durango, onde causaram mais de 200 mortos numa população totalmente desprevenida.
A tarefa era complicada já que Mola não dispunha de tropas suficientes para lançar um ataque como mandavam os livros. Dispunha de alguma artilharia mas, como se comprovou logos nos primeiros dias, a infantaria era manifestamente insuficiente para o tipo de combate com que iriam ter de se confrontar. Os sucessivos passos e portos de montanha tiveram de ser ocupados a muito custo e com pesadas perdas humanas. Perante uma orografia acidentada, apenas o apoio complementar da aviação os poderia levar ao objectivo. Só a 25 de Abril conseguirão os rebeldes a aproximação dos eixos de penetração das frentes de Álava e de Guipúscoa, pressionando as linhas de defesa basca nos sectores Durango e, mais a norte, nos de Markina e Lekeitio.
O bombardeamento
É nesse contexto que o coronel Juan Vigón, ao não conseguir transportar a artilharia de que necessitava (retida mormente na serrania do Intxorta) para envolver a área a Norte de Durango, anuiu na colaboração da Legião Condor, para furar a frente guipuscoana pelo lado do mar. A ideia alternativa fora sugerida pelo então tenente-coronel Wolfram Freiherr [Barão] von Richthofen, chefe-do-Estado-Maior daquela unidade e um apolítico militar profissional. O Barão era um adepto das teses de Giulio Douhet, o general italiano que em 1920 teorizara sobre o uso estratégico dos ataques aéreos à retaguarda inimiga, sem discriminação de combatentes e civis. Igualmente um entusiasta pelas acções de apoio aéreo de proximidade, Wolfram inovara nalgumas tácticas de intervenção, nomeadamente nas comunicações terra-ar e no bombardeamento em voo picado. Ás da Grande Guerra, onde combatera ao lado do seu famoso primo Manfred, o “Barão Vermelho”, era considerado um oficial competente mas empedernido. Em Espanha, as suas atitudes e opiniões denunciavam algum menosprezo pelos oficiais superiores espanhóis que recriminava por não serem lestos e incisivos na exploração operacional dos eventuais êxitos iniciais.
É de salientar que no citado relatório da Missão do Curso de Estado Maior do Exército Português que visitou a Biscaia na segunda metade do mês de Maio de 1937 (ou seja, menos de um mês após a acção de Gernika), os oficiais alunos mencionam o facto de, ao longo do seu itinerário de estudo, terem visto pouca actividade aérea. Mas reconhecem que sabem que, “em compensação, são bastante frequentes os bombardeamentos das grandes cidades, que causam muitas vezes numerosas vítimas, o que parece provar que a aviação existente não está directamente subordinada ao exército de terra e actua com bastante independência.” E atribuem tais factos à “influência da doutrina de Douhet, de que aliás só provam a pouca consistência, e de os tripulantes não serem normalmente de nacionalidade espanhola, não se importando portanto com os prejuízos ou mortes causadas pelos bombardeamentos.”
A acção requerida, de natureza táctica, tinha por objectivo, por um lado, fustigar o inimigo que recuava da sector de Markina, permitindo assim acelerar o avanço da Infantaria pela costa e, por outro, bloquear-lhe os caminhos de fuga para Bilbau. O objectivo principal definido por Vigón a von Richthofen era a ponte sobre o estuário do rio Oka (muitas vezes identificado no local já como parte da ria de Mundaka), na periferia nordeste de Gernika, na zona do bairro de Rentería, e a única passagem rodoviária em muitos quilómetros. Gernika, que é atravessada de sul para norte pelo Oka, fica na intersecção da estrada que vai da costa, de Bermeo, para Durango com a que vai de Bilbau para Lekeitio, o que lhe dá uma importância estratégica ímpar.
A vila de Gernika foi fundada em 1366 pelo conde Tello Alfonso de Castela, Senhor da Biscaia e filho natural do rei Alfonso XI de Castela. (O conde Tello, como capitão-geral da fronteira de Castela com Portugal esteve envolvido na nossa Primeira Guerra Fernandina e viria a morrer em Medellín, perto de Mérida, em 1370). No dia 26 de Abril, o conjunto urbano Gernika-Lumo [Guernica-Luno, em castelhano], tinha perto de 4.600 habitantes de acordo com o último censo de então, a que havia que descontar perto de 350 jovens a cumprir o serviço militar fora dali. Contudo, é de admitir que, sendo segunda-feira e, como tal, dia do mercado semanal, tivesse estado presente um pequeno número flutuante de lavradores inadvertidos, já que o habitual evento, bem como o jogo de pelota que normalmente lhe sucedia, havia sido cancelado face à proximidade da frente, a menos de 15 Km, e à iminente avalanche de tropas bascas em retirada.
Nessa segunda-feira, 26 de Abril de 1937, a urbe foi atacada pela aviação ao serviço dos sublevados, num plano de operações em tudo semelhante ao que tinha sido usado sobre Otxandio e Durango nos primeiros dias da ofensiva. O ataque iniciou-se com a missão exploratória de um bimotor Dornier Do-17 da Legião Condor, seguido pela passagem de três Savoia Marchetti SM-79 da Aviazione Legionaria italiana (saídos do Aeródromo de Sória) que sobrevoaram e bombardearam, com bombas de 50 Kg, a parte oriental do objectivo cerca das 16h20m, sem causar grandes estragos. No seu relatório, o comandante da esquadrilha italiana afirma que “apesar das dificuldades”, o “objectivo foi atingido”, ignorando que a ponte permanecia incólume. Seguiram-se dois bimotores alemães Heinkell He-111.
Duas horas depois o Grupo K/88 da Legião Condor atacou em força a povoação, com três esquadrilhas, em tandem e em cunha, lançando mais de 20 toneladas de bombas, de fragmentação (39 de 250 Kg e 220 de 50 Kg) e muitas incendiárias com retardamento (1 Kg). Esta passagem dos aviões fez-se de Norte para Sul, paralelamente ao eixo do caminho-de-ferro, desde o mar, passando pela tal ponte do bairro de Rentería, o verdadeiro objectivo militar do bombardeamento. A força atacante foi constituída por 18 ou 19 Ju-52, escoltados por 10 caças FIAT CR-32 e 5 Messerschmitt Bf-109. No início e no fim do traçado da segunda passada há registo de danos patrimoniais e várias mortes (16-18) provocadas pelos caças que metralharam edifícios e eixos rodoviários, nomeadamente em Gautegiz de Arteaga e Múgica.
As condições do vento que soprava de nordeste com muita força, associadas à grande quantidade de pó e fumo provocados pela vaga da frente, bem como a desadequação dos Ju-52 para bombardeio e a inexperiência da maior parte dos pilotos propiciaram o erro crasso que esteve na origem da destruição de parte da povoação. Claramente atribuíveis aos Junkers, houve 17 impactos na periferia do núcleo urbano, junto à ponte sobre o Oka, e 13 no interior do perímetro urbano. Cerca de um quinto da área urbana ficou arrasado, por impacto ou explosão, mas os incêndios que se propagaram nas horas imediatas acabariam por afectar praticamente 70% dos edifícios, na sua esmagadora maioria construído por estruturas interiores de madeira.
Os bombeiros de Bilbau (a 30km), chamados pelo responsável ela Protecção Civil de Gernika, o arquitecto Cástor Uriarte chegaram pelas 22 horas. Segundo o testemunho deste, não eram muitos, tiveram dificuldade em encontrar hidrantes intactos e não dispunham de bombas de extracção para aproveitar a água do rio. Uriarte concentrou os esforços de protecção nas partes mais elevadas pelo que o centro urbano, paralelo à margem esquerda do rio foi totalmente pasto das chamas. Pelas 3 da madrugada, Uriarte decidiu desistir do combate ao incêndio que se foi propagando livremente acelerado pela nortada. Quer o relato que dá no seu livro Bombas y mentiras sobre Gernika, quer muitos testemunhos recolhidos no citado relatório do engenheiro Herrán, assinalam que a acção dos bombeiros de Bilbau deixou muito a desejar.
A maioria dos habitantes, alertados cerca do meio-dia para o encerramento do mercado e para um possível ataque das forças rebeldes, debandara para fora da vila. Alguns assistiram mesmo ao bombardeamento a partir das colinas envolventes, onde haviam procurado um refúgio mais eficaz. Uriarte afirma que mais de um quarto dos mortos que pereceu na Vila resultou da derrocada de um refúgio inacabado, junto à Igreja de Santa María, indevidamente utilizado. Segundo indica, também o da Rua do Asilo Calzada (assim chamado em honra do seu benfeitor, o armador Juan Joaquín Calzada, um filho da terra que enriquecera na Califórnia do século XIX) e o princípio da estrada de ligação a Lumo foram os locais com maior densidade de mortos.
Na fabricação do mito iniciado por Steer e amplificado por alguns políticos conservadores ingleses interessados em pôr em cheque os sectores “pacifistas” (quer conservadores quer laboristas) que contemporizavam com o rearmamento alemão, a par da congeminação sobre as intenções que estiveram por detrás do bombardeamento, tem igualmente lugar de destaque o número de vítimas. Steer fala inicialmente em algumas centenas, corrigido posteriormente para mais de um milhar. Pela propaganda, a cifra foi saltando para 1.654, 2.000 por L’Humanité, 3.000 e, cronologicamente mais próximo de nós, mesmo 5.000. Os próprios jornais bascos da altura, cientes do exagero publicado em alguma imprensa internacional, corrigiram esses dados para um “grande número de vítimas”. Cástor Uriarte, uma das melhores testemunhas no terreno, dará uma cifra global inferior a 250 pessoas mortas.
O governo da Frente Popular, em Valencia, pressionado por Álvarez del Vayo e pela Pasionaria, falou em 690 vítimas. O historiador Vicente Talón em Arde Guernica assegura que foram menos de 200, e o historiador militar Jesús Salas Larrazábal, no livro mais bem documentado e detalhado sobre o caso, Guernica: el bombardeo, fala em 120-123 não combatentes, identificando-os. Mais recentemente, gazetas e colectivos locais que há muito vêm investigando no terreno o bombardeamento da vila foral, como Gernika-lumoko Adizkaria e Gernikazaharra Historia Taldea chegaram à conclusão que o número de mortos se cifrou em 153 vítimas mortais.
Claro que teria bastado um único morto não combatente para considerar o acontecimento trágico e lamentável. Mas vivia-se uma guerra civil e a morte de não combatentes era infelizmente inevitável. Mas ninguém, além dos familiares, tem o direito de, de maneira global, reivindicar politicamente a memória dolorosa das vítimas de Gernika. Até porque nas eleições imediatamente anteriores à guerra civil cerca de 40% da população de Gernika votara nos vários partidos da direita espanholista, como documenta o historiador Pablo Sagarra que perdeu a sua bisavó, de simpatias carlistas, no bombardeamento.
Com intuito mistificador, Gernika é sempre apresentada com a imagem de uma idílica localidade, uma área aberta, sem o menor interesse militar. Mas, ao contrário do que normalmente se afirma, a importância de Gernika era bem significativa já que na localidade existiam importantes indústrias bélicas. Entre outras, havia a fábrica de pistolas e metralhadoras Astra Unceta y Cia. e os Talleres [Oficinas] de Gernika, SA onde se produziam diversos tipos de engenhos explosivos para a Força Aérea e a Marinha, entre as quais bombas de 90 kg para os Túpolev ANT-40 russos, conhecidos como Katiuskas. Aparentemente, o objectivo da aviação militar rebelde não era essas instalações logísticas mas sim, como já se disse, tentar cortar a retirada ao Corpo de Exército basco, impedindo-o de atravessar a ria de Mundaka e refugiar-se na linha protectora Bermeo-Gernika, cintura fortificada avançada de Bilbau. Contudo, a decisão do general Mola em manter o eixo de marcha da 1ª Brigada Navarra sobre Durango acabou por retirar qualquer consequência militar à alternativa que levara ao bombardeamento táctico de Gernika.
Pelas regras internacionais de guerra então em vigor, a urbe era um claro alvo militar legítimo. Além das já mencionadas indústrias de material de guerra, havia em Gernika vários quartéis onde estavam estacionados unidades tácticas básicas como os batalhões Saseta (no convento dos Agostinhos, sob o comando do major Ander Plazaola), Loyola (no convento de Santa Clara, anexo à Casa de Juntas, sob o major Juan de Beiztegui), Itxarkundia (major Felipe Lizaso) e Gernikako Arbola (no Instituto de Segunda Enseñanza, sob o major Gregorio Calabozo). Esta unidade, em fase de reconstrução, era formada por biscainhos da costa, nomeadamente de Bermeo, enquanto as anteriores eram constituídos por guipuscoanos do centro, sobretudo da zona de Azpeitia. Em Gernika tinha igualmente sido sediado dois dias antes o quartel-general de uma Divisão do Exército de Euskadi, sob o comando do coronel Llarch Castresana.
Não é despiciendo considerar que o comando alemão tivesse querido aproveitar a oportunidade para infligir um castigo exemplar ao inimigo em debandada para colher os louros de uma rendição precipitada ou até para vingar o linchamento em Bilbau, a 4 de Janeiro, do alferes piloto Adolf Herrman e a execução à queima-roupa de vários outros tripulantes que tinham tido de saltar em para-quedas, após os seus aviões terem sido abatidos por I-15 ou I-16 soviéticos. Herrman, por ter sido atingido o seu avião, tivera de saltar em paraquedas; depois de agredido por uma multidão em fúria, foi atado a um automóvel e arrastado pelas ruas até morrer. O general Kindelán, em Mis Cuadernos de guerra, relata que nessa ocasião o general Hugo Sperrle, comandante da Legião Condor, solicitara verbalmente a Franco um bombardeio de represália sobre Bilbau mas que o Generalísimo não o autorizara, ordenando que “sem ordem expressa não se bombardeará nenhuma cidade ou centro urbano e que, quando haja necessidade de bombardear objectivos militares em povoações ou próximo delas, dever-se-á ter especial cuidado com a precisão do tiro para que se evitem vítimas na população civil”.
Contrariamente ao que é costume afirmar-se, os rebeldes não tiveram nem o monopólio nem sequer a primazia dos bombardeamentos aéreos indiscriminados sobre populações civis. Os governamentais destacaram-se nesse campo sendo Oviedo, Saragoça, Huesca e Cabra exemplos bem marcantes de cidades massacradas pelo terror aéreo. Mas são os bombardeamentos de Barcelona e especialmente de Gernika que surgem sempre como exemplos da crueldade dos sublevados de Franco. Na capital catalã, uma das bombas atingiu um camião de munições, tendo a explosão, assim amplificada, provocado a morte de cerca de 800 pessoas. Para colocar a questão na sua devida ordem de grandeza, note-se que, no País Basco, só num asalto a uma prisão, detonado por um bombardeamento dos sublevados que provocara a morte a cinco pessoas, foram linchadas 224 pessoas, incluindo sacerdotes e religiosos.
Gernika também passou à História infundadamente como o paradigma dos ensaios de estratégia aérea. Das declarações de Hermann Göring aos investigadores Joseph Maier e Sender Jaari, durante o julgamento de Nuremberga, pretenderam alguns inferir que a Legião Condor havia usado a Guerra Civil de Espanha como banco de ensaio de novas armas e materiais para a Luftwaffe. Se o fez, não foi certamente em Gernika já que o grosso dos aviões utilizados pelos alemães era, já na altura, considerado tecnicamente ultrapassado. A má prestação dos He-111 (e dos Ju-86) na GCE levou ao seu abandono e os Ju-52 eram apenas bombardeiros improvisados, sendo de raiz aviões de transporte. Com efeito, os alemães não possuíam aviões bombardeiros pesados (o que lhes viria a ser fatal na batalha de Inglaterra). A doutrina alemã da guerra aérea considerava a Luftwaffe essencialmente como uma arma táctica de apoio à infantaria. Na II Guerra Mundial, a maior parte dos bombardeamentos da Blitzkrieg foi feita com aviões ligeiros de ataque ao solo, os célebres Stukas (de Sturzkampfflugzeug [bombardeiro de mergulho] que era como os Junkers Ju-87 eram conhecidos). Por outro lado, as bombas utilizadas em Gernika foram as padronizadas para as Forças aéreas alemã e italiana, sem qualquer inovação.
Alguns historiadores propagandistas, ou outros inadvertidamente influenciados por eles, consideraram também Gernika como uma experimentação das teses do general Giulio Douhet, largamente usadas na Etiópia. Mas o emprego da arma aérea dessa forma estava formalmente proibido por Franco e Mola, quanto mais não fosse pela protecção devida às numerosas quintas-colunas. Além de que, face ao que os americanos fariam na II Guerra Mundial sobre Dresden, onde as bombas foram especificamente concebidas para atear incêndios e matar não só pelo impacto deflagrante mas também pelo efeito térmico e asfixiante, para não falar em Hiroshima, remetem Gernika para uma dimensão bem pálida.
Outro dos testemunhos amiúde invocados como justificadores da agressão gratuita, é o do ás da Força Aérea Alemã, Adolf Galland. No seu livro Os primeiros e os últimos, Galland afirma que os pilotos da Luftwaffe que haviam estado na Legião Condor não gostavam de falar sobre Gernika. Alguns historiadores para realçar o embaraço do ás alemão, dão-no mesmo como tendo participado na operação. Ora Galland só desembarcou em O Ferrol, a 7 de Maio de 37; graduado em capitão, iria comandar uma esquadrilha de caças biplanos Heinkel He-51 alcunhada Mickey Mouse e apenas teria o seu baptismo de fogo na batalha de Brunete (Julho de 1937). No princípio dos anos 80, tive oportunidade de conversar com Galland durante um festival aeronáutico em Falcon Field, um aeródromo nos arredores de Phoenix, Arizona, e o velho general confirmou-me que, tanto quanto tinha conseguido saber, o bombardeamento de Gernika, fora mesmo uma operação de iniciativa alemã, sob o pretexto do ataque à ponte sobre o Rio Oka (já a cargo dos italianos), destinado a estudar a sincronização do bombardeamento em passagens agrupadas, com o deficiente equipamento aéreo então disponível.
No entanto, insistiu que, das conversas que tivera com os seus camaradas que haviam participado na operação, colhera a certeza de que o núcleo urbano sempre estivera fora dos objectivos delineados e que só as más condições de vento e de visibilidade, e a inexperiência dos apontadores, possibilitaram o resultado que a História registou. Como muitos outros que não testemunharam presencialmente os factos mas que sabiam não ser (totalmente) verdade a estória divulgada pela propaganda dos sublevados, Galland estava mesmo convencido de que da agressão aérea resultara um elevado número de vítimas. Disse-lhe que isso era materialmente impossível, quer tendo em conta tão-somente a demografia conhecida da zona (no máximo 6-7 mil pessoas, já considerando os militares lá estacionados), quer o bom senso, já que mesmo o menor número de vítimas apresentado pelas díspares versões do mito, é superior ao que Madrid sofreu durante toda a GCE. E quando lhe disse que, filtrado o ruído da propaganda e de acordo com os dados que recolhera dos estudos aportados por Vicente Talón, o número de mortos não deveria ter ultrapassado 250, ficou deveras comovido.
Mas a imagem distorcida e falsa ficou e muito dificilmente se poderá repor a verdade. Em Gernika, o Mito superou provavelmente a História e acabou por ficar imortalizada pelo genial pincel de Picasso que, com o seu famoso quadro, consolidou uma lenda que muito dificilmente alguém corrigirá. Nunca uma acção tão limitada nos seus fins e tão reduzida nos meios que utilizou teve tanta repercussão nem tamanha projecção universal. Afinal o bombardeamento de Gernika não foi mais que um dos muitos episódios da ofensiva das forças rebeldes a Norte, neste caso na campanha para a conquista de Bilbau. E não foi nem o pior nem o mais reprovável acto cometido durante a guerra civil por qualquer um dos dois bandos.
O autor não segue o último Acordo Ortográfico e utiliza preferencialmente as designações locais, nomeadamente em Euskera.