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A "balada épica" de Alana S. Portero é mais do que um livro: "Custa muito conquistar direitos e custa muito pouco perdê-los"

Da gentrificação à ilusão de classe, o romance de estreia da ativista, dramaturga e poeta espanhola, "Maus Hábitos", é o retrato íntimo de uma mulher trans, entre a ficção, Almodóvar e a realidade.

Era uma menina como todas as outras, precisava do colo do pai e da mãe, vivia os medos do bairro, encontrava no conforto do lar o centro do seu mundo. Tornou-se numa adolescente como todas as outras, os mesmos anseios, as mesmas paixões, as mesmas descobertas. E ficou adulta, como todas as outras mulheres, os problemas da subsistência, da independência financeira, da incapacidade de pagar casa e ter de regressar à casa dos pais. Só que não era bem como as outras meninas, como as outras adolescentes, como as outras mulheres.

É preciso ler este romance de estreia de Alana S. Portero para perceber a dor que é nascer e viver num corpo que não corresponde à nossa mente, sermos femininas mas termos um corpo masculino (ou vice-versa). Em Maus Hábitos, é feito o retrato íntimo de uma mulher trans, desde a infância à idade adulta, num trajeto que se assemelha ao da epopeia. Entrevistámos a autora.

O antigo bairro da personagem principal deste livro e a sua idade são os mesmos que os da Alana. Ambas nasceram em 1978 e ambas cresceram em San Blas. Podemos chamar a este romance uma autoficção?
Não sei se esta história reúne todas as características para ser uma autoficção. O bairro é uma, a idade da personagem é outra e, ainda, o facto de ela ser uma mulher trans. Precisei desses três itens para construir uma boa história, uma boa ficção. Mas acho que chamar-lhe autoficção é muito. Sei que essa personagem, que essa história se parece muito com a minha própria história, com a minha própria vida, mas esteticamente. Há mais ficção do que realidade. Estes dois ou três pontos são a base sobre a qual pude construir uma ficção rigorosa. Não sou uma escritora muito engenhosa. Não tenho uma imaginação muito boa. Acho que sou muito limitada. E, para o meu primeiro romance, precisava de pisar num bom chão, numa boa base.

Muitos escritores dizem que, quando estão a escrever, estão de certa forma a aprender algo sobre si próprios. Escrever este romance ajudou-a a aprender um pouco mais sobre si própria?
Sim, acho que é inevitável. Em todos os romances, em todas as coisas que uma pessoa escreve com o coração aberto, com a mente aberta e com um pouco de risco. Com este livro, essa aprendizagem sobre mim própria aconteceu meses depois de ter terminado de escrevê-lo. Foi com o passar do tempo que me apercebi das mudanças que produziu em mim, das coisas que aprendi sobre mim. Mas foi necessário passar tempo.

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Que mudanças?
Dei-me conta de que estou muito mais em paz com a minha própria vida do que pensava estar. E que as minhas feridas sararam bem melhor do que acreditava terem sarado. Estou em paz com o meu passado. Senão, não teria conseguido construir uma ficção tendo-me como base.

É também uma ativista, escreve para teatro, é poeta. De que forma é a prosa, o romance, diferente em termos de autoconhecimento?
Esta pergunta é-me muito difícil de responder. Em Maus Hábitos acho que arrisco mais. Quando escrevo drama, teatro, quando escrevo poesia ou artigos, acho que tenho uma posição de maior controlo sobre o que escrevo e domino melhor o código que estou a escrever, por pura prática, porque o faço com muita frequência. O romance implicou um risco, implicou atrevimento. E isso, sim, deixa-nos sempre numa posição vulnerável. Outra coisa que aprendi ao escrever este romance é que a minha vulnerabilidade é uma coisa muito boa, é muito útil para um artista, para um escritor. Perder o meu próprio controlo foi a melhor coisa que eu podia ter dado ao meu texto, ao meu romance.

A capa da edição portuguesa de "Maus Hábitos", de Alana S. Portero (Alfaguara)

Quão difícil foi perder o controlo?
Para mim, muito. Considero-me uma control freak.

No romance há esta personagem trans do bairro, mais velha, a Margarita. Acha que ela é para a protagonista o que o ato de escrita é para si enquanto escritora?
Que visão bonita, é uma bela ideia. Nunca tinha pensado nesses termos, mas acho que é lindo. Se calhar é. A personagem da Margarita nasceu como uma homenagem a uma geração de mulheres transgénero em Espanha. Foram tão mal-tratadas pela nossa sociedade. Conheci muitas destas mulheres na minha vida. Foram as minhas segundas mães, as minhas mestras, as minhas amigas, as minhas irmãs mais velhas. E a Margarita é uma destilação de todas elas. É uma homenagem a todas essas mulheres, mas é muito bonita essa sugestão que fez. Olhe… é mais uma coisa que aprendi. Pode ter sido uma forma de explorar algo em mim no texto e que o próprio texto faça o papel de Margarita na minha própria vida. Uma maneira de enfrentar questões complicadas.

Como descreveria as diferentes gerações de pessoas trans em Espanha?
Acho que estou numa geração intermédia, entre mundos. Estas mulheres mais velhas tiveram vidas muito difíceis, muito complicadas. Eu também tive. A minha geração tem sido uma geração mal tratada, mas não nesses termos. Vivemos, sobretudo na nossa idade adulta, a partir dos 20, 25 anos, uma mudança de paradigma social e político muito importante em Espanha. Tem havido muita ação política no que diz respeito aos nossos direitos. Acho que tivemos uma adolescência mais parecida com a geração anterior e uma idade adulta mais parecida com a geração seguinte. Creio que, inevitavelmente, as nossas vidas melhoraram. As vidas das mulheres trans mais jovens são melhores do que as nossas em termos sociais, políticos, de visibilidade e de conhecimento da nossa realidade. Mas a nossa posição é muito frágil: custa muito conquistar direitos e custa muito pouco perdê-los. Acho que todas as mulheres trans têm isso em comum.

"É impossível viver nas nossas grandes cidades. A mudança mental de classe trabalhadora para classe média — ou seja, classe trabalhadora com Netflix — é o grande engodo do nosso tempo. Esta ideia tirou-nos a força de grupo, da colaboração, a ideia de que, colaborando, somos mais fortes. Isto encheu as nossas vidas de aspirações que não vamos poder alcançar nunca."

Quão perto está a extrema-direita em Espanha de poder retirar-vos direitos?
Está muito perto do poder. Em muitas comunidades autónomas, ela está no governo. Vivo isso com raiva, com resistência e com ânimo de luta. Não tenho medo, tenho preocupação. Vimos de uma genealogia de luta, é a única que conhecemos. Toda a nossa história se desenvolveu em parâmetros de luta. É o nosso terreno, não o deles. Se quiserem essa luta, dar-lha-emos, sem fissuras. Vivo-o com preocupação e, também, com cansaço. Estou tão cansada. Estamos todos muito cansados. Mas não tenho medo, estamos aqui. Se quiserem uma guerra, terão uma guerra.

Que função tem a mitologia clássica neste romance?
A minha mente trabalha com estas imagens, com estes símbolos. As minhas primeiras leituras, quando era criança, eram mitologias adaptadas às crianças. Isso formou a minha forma de pensar, definiu a forma que tenho de ver o mundo e de processar as narrativas. Somos todos narrativas. As nossas narrativas colidem em dois ou três pontos, mas somos todos e cada um uma narrativa. Mais ou menos transcendentes, somos todos mitos. Era inevitável que todos esses anos de leitura e de formação clássica me moldassem o pensamento de tal maneira que acabei a estudar História Medieval – com uma abordagem muito literária, ainda por cima. É inevitável que escreva com isso sempre presente, porque é como vejo o mundo. Vejo-o assim, em cada personagem vejo o seu próprio mito.

Os mitos ajudam a personagem principal a perceber o que se passa à sua volta.
A estrutura do romance é como a de uma balada grega épica. A minha personagem viaja para longe de casa, é como o herói em viagem. E depois ela regressa a Ítaca, como em Odisseia.

Estruturou o romance assim desde o princípio?
Esta estrutura era anterior à história. Sabia que queria colocar [a personagem] nessa base, de que falava há bocado.

À medida que a personagem vai ficando mais velha, vemos igualmente um país em mudança, como é o caso da gentrificação. Neste romance, vemos a classe operária a ser afastada do seu bairro, que é transformado numa zona residencial para a classe alta. Em que pé está a gentrificação em Espanha?
É impossível viver nas nossas grandes cidades. A mudança mental de classe trabalhadora para classe média – ou seja, classe trabalhadora com Netflix – é o grande engodo do nosso tempo. Esta ideia tirou-nos a força de grupo, da colaboração, a ideia de que, colaborando, somos mais fortes. Isto encheu as nossas vidas de aspirações que não vamos poder alcançar nunca. É impossível. E expulsam-nos das nossas próprias cidades. Tentamos viver a um ritmo que não é para nós e alguém ocupa o nosso lugar. Está a acontecer de forma muito intensa em Espanha, sobretudo nas grandes cidades. Canalizou-se muito bem através do alojamento turístico. Toda a gente pensa que pode ser proprietária de uma casa e isso traduz-se apenas em estarmos perdidos.

No pequeno capítulo dedicado ao onírico, conseguiu algo de muito difícil: descrever o nada. Que papel desempenha este capítulo? Integrar a carga poética na prosa?
Sim. Esse capítulo está escrito num código poético muito parecido com o que escrevi anteriormente em poesia, prosa poética. Dei rédea solta à poeta e à minha vontade de escrever de outra maneira, sem estrutura, abraçada a uma sensação de vazio, de escuridão, de perda. Não podia contá-la de uma forma racional, porque aí escreve-se com o coração partido, com a esperança perdida, escreve-se a partir da derrota absoluta. Isso não sei escrever de forma estruturada e acho que funciona melhor assim, dentro do texto – como uma rutura absoluta. Ali, a única coisa que há é uma pulsão de solidão, de perda e de dor, que fica muito melhor à luz da poesia.

"Os filmes do Pedro [Almodóvar] estão muito presentes na minha vida, sou construída com esses tijolos. É parte de mim. Têm de estar no romance. Implicaram uma mudança absoluta na forma de ver o mundo, de entender a raridade e abraçá-la, abraçar o escandaloso."

Uma coisa de que nos apercebemos em relação ao trajeto de vida desta personagem, de criança a adulta, é que ela nunca perde a doçura, apesar de ter passado por tanto. Ela nunca perde a bondade. É isso o sinónimo de esperança?
Sim, absolutamente. Foi um recurso muito pensado, muito deliberado. Não queria escrever um romance cínico, uma história sem esperança. Não me apetecia. Não quero contribuir para a cultura atual com o papel que me corresponde. Não quero contribuir para a cultura atual com mais cinismo. Respeito o cinismo de quem saiba usá-lo. Mas eu não sei usá-lo. Nunca soube. Não queria que o meu romance fosse um túnel de escuridão que não tem saída. A escuridão é inevitável. A procura da luz, a vontade de viver melhor, de ser feliz, também é inevitável e conta-se menos. Por mais coisas obscuras que lhe aconteçam, a personagem principal deste livro nunca perde isso, porque é a única coisa que tem, na verdade: a procura de si própria e a esperança de encontrar-se. É a única coisa que a move. O que existe é um grande amor-próprio.

No romance, compara Deus à obscuridade em busca da luz. Acredita em Deus?
Sou uma pessoa crente. Mas considero que pratico um certo sincretismo religioso que não me é fácil de definir. Mas respeito muito a fé. E tenho-a. O que acontece é que, no romance, o catolicismo opera de duas maneiras: uma, e a mais importante, é a da iconografia. E aí sou bastante sacrílega, porque a iconografia religiosa supôs para mim o meu despertar sexual. Estava muito exposta a imagens que podem ser interpretadas de forma muito sexual. Isso no romance está bastante explícito: a primeira imagem é a de um anjo caído de que a protagonista, muito pequena, se enamora. E que, de uma maneira infantil, deseja. Mas acho que a fé está muito presente, o tempo todo. É um zumbido que percorre toda a história. É um ruído de fundo que não se expressa com clareza, mas acho que essa viagem imensa que a protagonista faz não pode ser feita sem fé. Há um ato de se sujeitar à transcendência, ao superior, que, sim, está muito presente, como ruído de fundo, como energia que anima esta personagem a seguir em frente.

Há um QR-code no final do livro que nos reporta para uma banda sonora da história. Para quem conhece os filmes de Pedro Almodóvar, não há como não sentir uma certa familiaridade para com aqueles universos.
As rock stars eram como santos, para nós. Eram criaturas sobrehumanas, porque eram sempre lindas, mudavam imenso de um disco para o seguinte – eram uma pessoa num e outra noutro. Eram mitos, eram santos, referências absolutas, referências transcendentais. Os filmes do Pedro estão muito presentes na minha vida, sou construída com esses tijolos. É parte de mim. Têm de estar no romance. Implicaram uma mudança absoluta na forma de ver o mundo, de entender a raridade e abraçá-la, abraçar o escandaloso. Ele tem sido uma das minhas referências absolutas e acho que estará sempre presente no que escrever. Essa sonoridade, essa estética, esse ar. A música faz-nos viajar no tempo mais do que qualquer outra coisa. Há canções que ouvimos e imediatamente nos lembramos das nossas avós, da nossa mãe, do nosso pai, dos nossos irmãos. A música e o cheiro são a forma que temos de viajar no tempo. E este romance é uma grande viagem no tempo. A música é o meu truque para que viajemos juntas e juntos a esse passado.

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