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A batalha de Kissinger contra o PCP em 1975. Excerto do livro "Carlucci vs Kissinger"

Henry Kissinger, que morreu esta quinta-feira, teve um papel central no PREC e uma obsessão permanente com o PCP, como mostra um excerto do livro de Bernardino Gomes e Tiago Moreira de Sá.

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Morreu o diplomata americano que chegou a defender a teoria de que um Portugal empobrecido e controlado pelo PCP a seguir à revolução serviria de vacina para o comunismo não ser seguido por outros países do sul da Europa. No dia da morte de Henry Kissinger, recuperamos um excerto do livro “Carlucci vs. Kissinger. Os Estados Unidos e a Revolução portuguesa”, da autoria de Bernardino Gomes e Tiago Moreira de Sá, editado em 2008 pela D. Quixote.

Provavelmente temos que «atacar» Portugal e expulsá-lo da NATO

Na manhã de 27 de Março, Henry Kissinger reuniu-se com Gerald Ford na Casa Branca e um dos assuntos abordados foi o encontro dos dois dirigentes norte-americanos com Willy Brandt, agendado para esse mesmo dia.

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Segundo as informações recebidas em Washington, o ex-chanceler da RFA pretendia discutir a atitude do Ocidente em relação a Portugal e ia defender que este devia apostar na realização de eleições livres e justas como forma de impedir uma tomada do poder pelos comunistas, sendo que para isso «os portugueses precisavam de algum dinheiro». Comentando esta posição do político alemão, o Secretário de Estado defendeu junto do seu Presidente que os Estados Unidos deviam estar disponíveis para conceder financiamento às forças portuguesas moderadas, podendo disponibilizar imediatamente «100 mil dólares através da Ava Foundation». Contudo, acrescentou que se podia ter «as duas coisas»: eleições e impedir a tomada do poder pelos comunistas; «perder à mesma o país», pois o PCP ia «governar através do MFA». Para ele a questão fundamental era outra e consistia em definir o que os EUA deviam fazer «se um governo desse tipo quisesse ficar na NATO» com inevitáveis «consequências em Itália e na França»; e a sua resposta foi clara: «Provavelmente temos que “atacar” Portugal e expulsá-lo da NATO.»

A última afirmação de Kissinger traduzia bem a crescente dureza da sua posição em relação a Portugal, passando esta cada vez mais pela defesa da exclusão do País da Aliança Atlântica. E para isso muito contribuíram os desenvolvimentos do processo político português neste período, relatados ao Departamento de Estado por diversas vias.

A 21 de Março, Helmut Schmidt telefonou a Gerald Ford para lhe transmitir que «estava extremamente preocupado com o curso dos acontecimentos em Portugal», acrescentado que «tinha ouvido que estava iminente uma remodelação governamental e iam ser dados postos-chave a vários comunistas, incluindo o ministério do interior.

Um dia depois foi a vez de Frank Carlucci escrever para o Departamento de Estado, destacando o processo de constituição de um novo Governo Provisório. Acerca deste disse que ele teria «quase de certeza uma maioria de esquerda» que ia «apoiar o primeiro-ministro Vasco Gonçalves», cuja «posição política» era «substancialmente à esquerda dos seus colegas e com tendência para estar próxima da linha do MDP». Além disso, havia informações de que vários anteriores ministros «do campo moderado» iam ser excluídos, «tais como, Costa Brás (Administração Interna), Vítor Alves (ministro sem pasta), Maria de Lurdes Pintasilgo (Assuntos Sociais), Silva Lopes (Finanças) e Rui Vilar (Economia)». Sobre a possível nomeação de um comunista para o importante Ministério da Administração Interna, e logo em vésperas das eleições para a Assembleia Constituinte, o embaixador, embora confirmando a saída de Costa Brás, acrescentou que «não tinha qual- quer notícia de que ele fosse substituído por um membro do PCP ou do MDP», havendo mesmo indícios de que o novo titular da pasta fosse «um militar».

Já relativamente à tentativa em curso para excluir Salgado Zenha do executivo e retirar a Mário Soares a pasta dos Negó- cios Estrangeiros, o diplomata relatou que o primeiro ia «permanecer no governo porque o PS ameaçou sair em grupo caso Zenha fosse excluído» e o segundo ia «muito provavelmente» ser substituído por Melo Antunes; e Carlucci adicionou um comentário muito interessante acerca do militar responsável pelo Programa do MFA: «anteriormente considerado um “esquerdista radical” era agora uma espécie de mode- rado». A concluir, o representante diplomático americano escreveu que, apesar da mais do que provável viragem à esquerda do executivo português, este ia «adiar mais medidas radicais de forma a consolidar e digerir o controlo efectivo da economia representado pela nacionalização dos bancos»

Década e meia depois de Kissinger ter manifestado o receio de que Soares fosse o novo Kerensky, o então Presidente da República recebeu-o em Portugal

MANUEL MOURA/LUSA

Na mesma ocasião, a CIA elaborou um memorando para o Presidente Ford, transmitindo-lhe também os desenvolvimentos ao nível do novo gabinete português. O primeiro ponto destacado pela Agência foi a garantia dada por Vasco Gonçalves de que o MDP, descrito como «uma frente comunista», ia ser incluído no governo. Depois, havia «rumores em Lisboa» que apontavam que o PPD, considerado um «partido do centro-esquerda», podia «ser excluído». Finalmente, Soares seria «transferido para ministro sem pasta». Mas, apesar destes sinais preocupantes, a Central Intelligence Agency registava a reacção dos socialistas e populares democráticos: «Os dois partidos moderados do presente governo estão a começar a demonstrar alguma determinação para segurar a sua posição. Mário Soares, questionou publicamente a intenção de Gonçalves de trazer para o executivo o Movimento Democrático Portuguêse disse que as mudanças no conselho de ministros nas vésperas das eleições eram inoportunas.»

“Vamos ter que negar-lhes acesso a documentos secretos”

Tal como Helmut Schmidt, Carlucci e a CIA previram o IV Governo Provisório português, que tomou posse a 26 de Março de 1975, traduziu uma vez mais a ascensão de Vasco Gonçalves e da esquerda revolucionária no processo político português. De facto, a característica mais saliente do novo gabinete foi o maior controlo exercido pelos «gonçalvistas», que não só garantiram a maioria dos ministros militares como reforçaram o número de elementos civis próximos do primeiro-ministro.

Também o PCP saiu vitorioso ao ampliar a sua representação directa para duas pastas e ao ver o seu «satélite» MDP/CDE reentrar para o executivo. O PS foi o grande derrotado, ao ficar reduzido a dois ministérios, ao ver várias perso- nalidades independentes mas próximas da sua área política afastadas, como por exemplo Rui Vilar e Maria de Lurdes Pintasilgo, sendo ainda Mário Soares afastado dos Negócios Estrangeiros. Finalmente o MFA «moderado» também perdeu com as saídas de Vítor Alves e Costa Brás.

Sintomaticamente, no próprio dia da tomada de posse do IV Governo Provisório, Henry Kissinger aproveitou uma conferência de imprensa para proferir uma das suas primeiras declarações públicas acerca dos acontecimentos em Portugal. Afirmou ele: «O que parece estar a passar-se em Portugal neste momento é que o Movimento das Forças Armadas, que é substancialmente dominado por oficiais de esquerda, nomeou um novo governo no seio do qual os comunistas e seus aliados dominam muitos dos principais ministérios. Esta é uma evolução que suscita questões nos Estados Unidos quanto à sua orientação para a NATO e para Portugal.»

Nesse mesmo dia, o Secretário de Estado enviou uma carta pessoal a Costa Gomes dizendo-lhe que «os Estados Unidos estavam em contacto com os seus aliados da NATO para uma análise conjunta da situação portuguesa», o que em linguagem diplomática significava que a posição do país no seio da Aliança Atlântica podia ser revista.

"A remodelação no governo de 25 de Março mostra o movimento contínuo para a esquerda e a remoção de Mário Soares, o líder socialista, dos Negócios Estrangeiros ilustra essa tendência"
Memorando de Henry Kissinger para o Presidente Gerald Ford, em 1975

A 27 de Março foi a vez do The New York Times revelar que, «segundo três altos funcionários norte-americanos», a «administração Ford e vários outros aliados da NATO estavam a considerar impor uma espécie de quarentena a Portugal no âmbito da Aliança»; concretizando, o artigo, da autoria de David Binder, citava uma das fontes: «vamos ter que negar-lhes o acesso a documentos secretos e excluí-los das reuniões da NATO». Ainda neste número, o jornal noticiava que o secretário da Defesa, James Schlesinger, referindo-se aos portugueses tinha defendido a necessidade de «tomar algumas medidas simbólicas de forma a marginalizá-los na NATO sem os expulsar».

A posição traduzida nas declarações públicas de Kissinger e nas informações transmitidas para a imprensa norte-americana, ambas no sentido de preparar «o terreno» para o isolamento de Portugal na Aliança Atlântica, foi igualmente defendida durante o já referido encontro de 27 de Março entre os dirigentes dos Estados Unidos e Willy Brandt.

Num memorando elaborado por Kissinger para Gerald Ford, destinado a prepará-lo justamente para a conversa com o ex-chanceler da RFA, podia ler-se na parte consagrada aos assuntos a abordar:

«1. Estamos muito preocupados com a viragem para a extrema-esquerda da política portuguesa;

2. a futura participação de Portugal na NATO é uma matéria de séria preocupação; não podemos aceitar a participação de um governo controlado pelos comunistas nas deliberações estratégicas e políticas da Aliança;

3. é igualmente difícil pôr muita esperança nas eleições de 25 de Abril, tendo em consideração que o Partido Democrata Cristão foi banido, as restantes forças estão a ser intimidadas e os militares deixaram claro que o verdadeiro poder reside no Movimento das Forças Armadas e no Conselho da Revolução;

4. a remodelação no governo de 25 de Março mostra o movimento contínuo para a esquerda e a remoção de Mário Soares, o líder socialista, dos Negócios Estrangeiros ilustra essa tendência.»

Ainda importante neste documento era a parte relativa aos objectivos norte-americanos no âmbito da reunião com Brandt e que, segundo o que escreveu o Secretário de Estado, consistiam em «afirmar a necessidade de uma abordagem concertada entre os principais aliados relativamente a Portugal»; e, neste campo, o responsável pela política externa dos EUA considerava que «a voz da Europa Ocidental tinha de ser ouvida muito mais alto e claro se se pretendia que os portugueses percebessem o perigoso curso que estavam a seguir.

"Os comunistas podem não tomar completamente o poder e mesmo assim o impacto em tudo o que nós fizemos na Europa nos últimos 30 anos pode sofrer um cataclismo. Se eles forem espertos podem obter mais do que a tomada do poder. O que é que nós, interessados na Aliança Atlântica, fazemos depois das eleições? Se tivermos um governo não comunista actuando moderadamente, devemos forçar uma expulsão da NATO? Ou que outra coisa podemos fazer?»
Henry Kissinger em 1975 numa conversa com outros responsáveis políticos norte-americanos

A questão da participação portuguesa na NATO acabou mesmo por dominar o encontro entre Gerald Ford, Henry Kissinger e Willy Brandt. De acordo com o memorando da conversa, o Presidente norte-americano questionou se «os militares não estavam sob o controlo dos comunistas», pois tinha informações de que «Cunhal era muito hábil» e frisou que toda a realidade portuguesa «ia complicar a situação dos aliados na NATO». Na mesma linha, o Secretário de Estado disse que era «impensável os representantes portugueses terem acesso à informação secreta relativa às negociações MBFR entre os EUA e a URSS».

Já o político alemão procurou transmitir uma imagem mais optimista da realidade em Lisboa e, sublinhando que o essencial era não desistir, revelou que o seu país e a Suécia estavam a apoiar o PS; afirmou Brandt:
«– A última informação que tenho é que o novo governo foi formado mas eles não foram tão longe quanto que se podia esperar. Soares, com quem nós socialistas estamos associados, continua no executivo, como ministro sem pasta, pelo que pode estar em campanha eleitoral. Igualmente, o ministro da Administração Interna continua no seu posto, o que é importante para as eleições. Não devemos desistir. A questão é: que tipo de apoio moral e material conseguimos dar. Nós fizemos alguma coisa. Os alemães fizeram-no, assim como os suecos.»

Este encontro serviu ainda para Willy Brandt entregar a Gerald Ford uma mensagem pessoal de Mário Soares, apelando ao apoio dos EUA ao PS; dizia ela: «A situação em Portugal é séria e a democracia está em risco; os socialistas portugueses estão a chegar a um ponto de desespero e contam com a assistência dos Estados Unidos; o golpe de 11 de Março foi encenado para servir os interesses dos comunistas; o Movimento das Forças Armadas está sob a influência dos comunistas; as eleições de 25 de Abril vão ser realizadas numa maneira que vai servir para intimidar as forças políticas moderadas.»

“As estruturas do poder são essencialmente controladas pelos comunistas”

Todavia, uma das intervenções mais dramáticas de Henry Kissinger nesta fase de revolução portuguesa ocorreu a 31 de Março, durante uma conversa privada que manteve com vários altos dirigentes norte-americanos, tais como Dean Rusk, Cyrus Vance, George Shultz, Averell Harriman, Robert McNamara, David Rockefeller, Geoge Ball, David Bruce, Larry Eagleburger e Josep Sisco.

O Secretário de Estado mostrou-se «profundamente preocupado com a paralisia que os EUA estavam a infligir a si mesmos a uma escala global», e para exemplificar a sua apreensão escolheu justamente o caso português. A este respeito, começou logo por afirmar:

«– Sobre Portugal, nós temos um grupo de oficiais com ideias impossíveis de distinguir das dos comunistas, embora não sejam tecnicamente comunistas, que estão a dominar a cena política. As estruturas do poder são essencialmente controladas pelos comunistas e eles estão a desenvolver um “colete de forças” sobre o país. (…) A NATO diz que as eleições têm que ser realizadas e que os comunistas não devem tomar o governo. Por vezes pode-se estabelecer um conjunto de objectivos que, mesmo se realizados, são essencialmente ineficazes. Penso que as eleições vão ser realizadas, mas temos presentemente três partidos banidos e dois intimidados e, em qualquer caso, a Constituição está tão condicionada que o Movimento das Forças Armadas controla tudo.» E, embora concedendo que os acontecimentos em Lisboa não estavam «ainda terminados», acrescentou: «– Os comunistas podem não tomar completamente o poder e mesmo assim o impacto em tudo o que nós fizemos na Europa nos últimos 30 anos pode sofrer um cataclismo. Se eles forem espertos podem obter mais do que a tomada do poder. O que é que nós, interessados na Aliança Atlântica, fazemos depois das eleições? Se tivermos um governo não comunista actuando moderadamente, devemos forçar uma expulsão da NATO? Ou que outra coisa podemos fazer?»

Henry Kissinger com o presidente Richard Nixon

Bettmann Archive

Ou seja, para Kissinger a revolução portuguesa podia destruir todo o sistema de defesa ocidental construído após a Segunda Guerra Mundial, e isto mesmo que o PCP não tomasse o poder pois este, «se fosse esperto», ia governar através dos militares, adoptando uma política externa aparentemente moderada de molde a dividir os aliados acerca do problema da continuação do país na NATO. E, na sua opinião, os EUA tinham responsabilidades nesta evolução negativa dos acontecimentos, dada a incapacidade demonstrada para actuar em Portugal, facto em larga medida devido à paralisia da CIA e do 40 Committee na sequência do escândalo sobre o seu envolvimento no Chile; queixando-se justamente da inépcia de Washington em Lisboa.

A este respeito, referiu o Secretário de Estado na mesma conversa:

«– Não sei o que podíamos ter feito se ainda tivéssemos uma CIA. Mas tudo o que aconteceu foi-nos revelado antecipadamente por dois Presidentes [Spínola e Costa Gomes] (…). Tinha sido nosso dever colocar este tipo de situação perante o 40 Committee. (…) Após os ataques sobre o episódio do Chile a CIA ficou efectivamente desmantelada. (…) Uma superpotência no mundo actual sem uma máquina de intelligence efectiva está em grandes apuros. Se as investigações no Congresso não chegarem rapidamente ao fim, vão ser desvendadas todas as operações secretas dos últimos vinte anos. Se elas forem tornadas públicas fora do seu contexto, isso vai conduzir à destruição de qualquer capacidade de realizar operações de intelligence.»

E, falando especificamente das acções levadas a cabo pela CIA em Portugal até àquela data, Kissinger concluiu num tom especialmente crítico:

«– O que aconteceu em Portugal podia muito bem ter acontecido mesmo com uma campanha maciça da CIA, mas nós actuámos como crianças. Demos qualquer coisa como 10 mil dólares a um partido alemão que eles canalizaram para os portugueses. Infligimos um sério revés a nós próprios. Não houve quaisquer novas acções do 40 Committee desde a emenda Ryan. (…) Nos últimos três meses não tivemos quaisquer encontros do 40 Committee.»

“Vacina” ou “Apoio”

A 10 de Abril de 1975, o The Washington Post publicou uma notícia baseada em fontes do Departamento de Estado revelando que, numa reunião com o seu staff, Kissinger queixou-se que «Carlucci não estava a corresponder à reputação de diplomata agressivo que ia expulsar os comunistas do governo», chegando mesmo ao ponto de questionar os seus colaboradores: «– Quem me vendeu Carlucci como um tipo duro?»

Não obstante o desmentido feito nesse mesmo dia pelo porta-voz do Departamento de Estado, que classificou a notícia como «mal intencionada» e «uma total invenção», acrescentando ainda que o embaixador em Lisboa tinha a «total e incondicional confiança» do Secretário de Estado e do Presidente, a notícia constituiu um golpe na capacidade de actuação de Carlucci, que para efeitos públicos tinha perdido a confiança do seu governo, e denunciou a existência de uma «disputa no seio do governo dos Estados Unidos».

Na realidade, a posição crescentemente dura de Henry Kissinger em relação a Portugal não foi partilhada pelo seu embaixador em Lisboa, acabando por se desenvolver um conflito entre ambos que se estendeu a vários níveis da administração Ford. Como vimos, este foi perceptível logo na correspondência trocada no período imediatamente subse- quente ao 11 de Março; porém, foi sobretudo após as já referidas declarações públicas do Secretário de Estado sobre a revolução portuguesa e as fugas de informação para a imprensa acerca da ostracização do País na NATO que o desentendimento entre Kissinger e Carlucci escalou ao ponto de se transformar numa luta em torno de duas concepções antagónicas sobre a política a seguir para Portugal.

A 1 de Abril, o embaixador reagiu de modo veemente à orientação agora seguida pela sua administração. Num telegrama enviado para Washington dizia concluir pelos relatos da imprensa que a NATO estava a considerar impor uma espécie de quarentena a Portugal, aler- tando que essa estratégia era contraproducente e apenas podia jogar a favor dos comunistas; escreveu ele: «Ostracizar ou colocar Portugal de quarentena na NATO vai ser entendido como um ataque ao novo governo, uma interferência nos assuntos internos, e vai resultar num cerrar de fileiras. Mesmo medidas menores vão ser entendidas à mesma luz. (…) O governo português vai reagir emocionalmente a todos os “socos” que receber da NATO e os comunistas vão estar mesmo ao lado para apresentar as suas condolências». E numa referência à conferência de imprensa dada por Kissinger no dia da tomada de posse do IV Governo Provisório, avisou ainda que «outras formas de pressão, incluindo declarações públicas», podiam «produzir o mesmo efeito indesejável.»

Carlucci prosseguiu este longo telegrama dizendo que por muito que os EUA desejassem, não havia pressão, «a não ser um altamente improvável acto de violência bem sucedido», que levasse o executivo de Vasco Gonçalves a «livrar-se ele próprio de Cunhal e do PCP». Deste modo, em vez de se esforçar por isolar Lisboa da Aliança Atlântica, a administração Ford devia pelo contrário «tentar expandir os contactos militares da NATO com Portugal», pois «mesmo os oficiais portugue- ses mais nacionalistas desejavam alguma forma de ligação à Organização». Além disso, Washington devia apostar nas questões que podiam «produzir uma reacção positiva», sendo a mais importante de todas «as eleições livres e justas»; e, a este respeito, acrescentou: «Enquanto a institucionalização do MFA significa que as eleições serão pouco mais do que a expressão da vontade popular, tal expressão, assumindo que as sondagens são razoavelmente exactas, pode ser uma forma mais eficaz do que a aliança existente entre o MFA e o PCP. Soares compreende isto e é essa a razão pela qual ele está a mobilizar os seus amigos alemães na questão das eleições.»

A resposta do Departamento de Estado a este telegrama tornou evidente a existência de profundas divisões no seio do governo dos EUA acerca da política a seguir em relação a Lisboa. Num documento elabo- rado por Helmut Sonnenfeldt e Arthur Hartman afirmava-se que «os assuntos relacionados com a NATO e Portugal» iam «provavelmente ser adiados até depois das eleições», mas que subsistia «o problema básico» de saber «se um regime dominado pelos comunistas ou pela extrema-esquerda tinha lugar na Aliança Atlântica». E num esclareci- mento particularmente importante às questões suscitadas pelo embaixador, os dois altos responsáveis pela política externa norte-americana acrescentaram que o problema da participação portuguesa na Aliança Atlântica era suscitado «não tanto como forma de fazer pressão para provocar mudanças em Portugal» mas mais pelas dúvidas que real- mente existiam sobre «se a NATO podia continuar a existir com membros comunistas ou próximos deles».

“Mais uns poucos “Portugais” e simplesmente não temos mais NATO”

Em substância esta «disputa no seio do governo dos Estados Unidos» consistiu num confronto entre duas escolas de pensamento na América acerca da política a levar a cabo em Portugal.

A primeira, conhecida por «teoria da vacina», resultou directamente da percepção existente em alguns círculos da administração Ford, cujo expoente máximo era Henry Kissinger, de que Portugal estava perdido para o Ocidente, ou porque se ia tornar num país comunista alinhado com o bloco soviético, ou numa ditadura militar, sob forte influência do PCP, com uma política externa não-alinhada. Partindo desta avaliação e das suas implicações para o futuro da Europa do Sul e para a NATO, acreditou-se que Lisboa devia ser isolada no seio da Aliança Atlântica; deste modo, evitava-se que constituísse um problema de segurança para o Ocidente, ao ficar sem acesso às suas informações classificadas, ao mesmo tempo que um Portugal marginalizado, empobrecido e periférico servia de «vacina» para o resto do flanco sul europeu, ou seja, um exemplo a não ser seguido por Itália, França, Espanha e Grécia.

A existência de facto desta perspectiva da «vacina» foi confirmada por vários protagonistas da época. Por exemplo, Frank Carlucci recordou que o Secretário de Estado tinha «uma visão muito dura da situação portuguesa», estava «bastante pessimista» e pensava que «era muito difícil deter o avanço comunista»; e, com base na correspondência que trocou com o Departamento de Estado, acrescentou: «Constatei que existiram vários relatórios, que considerei válidos, sugerindo que Kissinger tinha desistido de Portugal e que preconizava que se devia isolar o país para que este servisse como um exemplo para os outros países da NATO.»

Mas a melhor síntese do pensamento de Henry Kissinger nesta fase do processo político português pode ser encontrada nas suas próprias palavras durante um encontro realizado a 30 de Abril de 1975 com os mais altos dirigentes do Departamento de Estado e cujo conteúdo aparece transcrito num documento inédito que citamos quase integralmente:

«The Secretary: – Sobre Portugal. Devo dizer-lhes que estou num “comprimento de onda” totalmente diferente do de Carlucci. Não encontro nenhum conforto em qualquer governo dominado pelos comunistas na NATO. Não vejo nenhuma razão para concordar que é bom haver na NATO um governo que olha para a Argélia em busca de ideologia.

Sonnenfeldt: – Tenho reservas semelhantes. Soares e os seus colegas são um bando de moles. A situação não mudou, mas o que mudou foram as nossas opções porque não podemos agora convencer outros na Europa de que devem tomar medidas para isolar Portugal.

The Secretary: – Estou muito preocupado com isto. Se as coisas continuarem como estão vamos estar fora da Europa em dez anos. Se permitirmos que este tipo de coisas continue na NATO, isso vai inevitavelmente revolucionar a política na Europa e vai começar na Itália. Não consigo deixar de pensar que é muito pior ter a actual situação em Portugal do que uma completa tomada do poder dentro do modelo da Checoslováquia. Se fosse na América Latina e tivéssemos o mesmo tipo de problema teríamos mais espaço de manobra, mas em Portugal e na NATO…

Sonnenfeldt: – E as opções para levar a cabo políticas diferentes são agora praticamente nulas.

The Secretary: – Porque é que não conseguimos transmitir a ideia de que quanto mais moderados eles forem na política externa mais eficazes eles serão. Afinal de contas, que opções têm eles? Se ficarem fora da NATO quem vai preocupar-se com eles? Mas se ficarem na NATO têm hipótese de afectar o modo como toda a organização funciona. Mais uns poucos “Portugais” e simplesmente não temos mais NATO. Não é tanto o que Portugal vai fazer, mas o simbolismo.

Sonnenfeldt: – Mas não há um governo na Europa que esteja disposto a seguir uma política de exclusão relativamente a Portugal.

The Secretary: – Então, em dez anos vamos estar fora da Europa. Em cinco anos vamos ter a mesma coisa na Grécia e em Itália. Vocês vão ver, Karamanlis vai ser o próximo Kerensky. Então, em 1977, vamos ter eleições em França com uma coligação entre socialistas e comunistas e o mesmo pode acontecer lá. Na Grã-Bretanha, a situação é pior do que aparenta. No Partido Trabalhista têm um bando de moles e tudo vai terminar numa forma mais elegante de neutralismo. A Europa e a NATO podem estar acabadas. E a Europa Comunitária vai encontrar o seu futuro no anti-americanismo. O que a Alemanha vai fazer, não sei. Mas a NATO pode simplesmente tornar-se numa aliança entre os EUA e a Alemanha.»

Isto é, o Secretário de Estado considerou seriamente que Portugal podia contagiar o resto da Europa Ocidental e destruir a Aliança Atlântica, sendo mesmo o risco mais sério neste âmbito não uma tomada do poder pelo PCP mas a evolução do país para um regime do tipo argelino, e por esse motivo defendeu que Lisboa devia ficar «fora da NATO». Como veremos mais adiante, Kissinger chegou mesmo a tentar convencer os aliados europeus a aceitar esta visão para a revolução portuguesa, fazendo-o sobretudo no contexto da Cimeira da NATO em Bruxelas de finais de Maio de 1975. Todavia, como referiu Sonnenfeldt durante o diálogo, as intenções de Kissinger tinham a oposição de praticamente toda Europa Ocidental, bem como do seu embaixador em Lisboa, acabando assim por nunca se concretizarem.

A segunda escola de pensamento americana sobre a política para a revolução portuguesa foi desenvolvida por Frank Carlucci e era exactamente o oposto da «vacina». Ela partia do pressuposto de que Portugal não estava condenado a tornar-se comunista desde que os Estados Unidos, bem como os europeus ocidentais, apoiassem o país, quer concedendo auxílio económico ao Estado português, quer promovendo a sua crescente integração na NATO, quer ainda ajudando as forças «moderadas» internas, políticas e militares.

Num texto publicado numa obra do Departamento de Estado o próprio Carlucci explicou a sua perspectiva, começando justamente por sublinhar as razões internas que em sua opinião tornavam pouco crível uma vitória do PCP: «Quando era embaixador americano em Lisboa pareceu-me que uma tomada do poder pelos comunistas não era muito provável por várias razões. A mais óbvia era pura geografia. Portugal não tinha uma fronteira comum com um país comunista. Em segundo lugar, uma percentagem muito pequena do comércio externo português, apenas 3 a 5 por cento, era com países comunistas; a maior parte das suas trocas comerciais era feita com a Europa. Em terceiro lugar, havia a ligação à NATO que, apesar de todos os problemas que suscitou, teve um impacto decisivo sobre a atitude e o sentido de profissionalismo dos militares portugueses. Em quarto lugar, havia a estrutura de propriedade privada ao nível agrícola (…). E, mais importante de tudo, havia a Igreja.»

Em seguida, e como consequência lógica desta convicção, o embaixador defendeu que Washington devia dar sinais de simpatia com a transição portuguesa, fazendo-o desde logo através de um duplo apoio: implementação de um programa de ajuda económica; auxílio à modernização das Forças Armadas e promoção da sua integração nas estru- turas da NATO. Sobre a dimensão económica escreveu ele: «Com o nosso programa de ajuda económica fomos capazes de transmitir uma imagem de simpatia e apoio às aspirações sociais de Portugal em áreas como a habitação e a saúde.» Já relativamente às medidas destinadas às Forças Armadas testemunhou: «Na área do apoio militar, concebemos a ideia de uma brigada portuguesa destinada a contribuir para a NATO, ajudando assim a restaurar o sentido de profissionalismo dos militares portugueses.»

Paralelamente a este apoio ao Estado português, Carlucci sustentou que a sua administração devia apoiar as forças não comunistas «moderadas». Escreveu o diplomata: «Em face da estratégia de linha dura [do PCP], a tentação óbvia para qualquer decisor político americano era a de trabalhar com os elementos mais conservadores, nomeadamente com os da direita. Porém, se observássemos a estrutura social portuguesa, esse sector não parecia oferecer quaisquer oportunidades. Na realidade, o apoio a esse sector seria um significativo handicap (…). A revolução portuguesa não foi um golpe de Estado, foi uma revolução, e tínhamos que tratá-la como tal. O único grupo lógico com que devíamos trabalhar era a esquerda não comunista. Trabalhando com eles, quer no campo militar, quer com o Partido Socialista, trabalhando em ligação com a NATO e trabalhando com a Igreja, era a melhor oportunidade.»

“Não via como é que os moderados podiam sair reforçados com a concessão de ajuda a radicais”

O conflito entre Henry Kissinger e Frank Carlucci foi posteriormente reconhecido, e justificado, pelos próprios.

Nas suas memórias, o Secretário de Estado escreveu a este respeito: «Quando o governo conservador autoritário foi deposto, em Abril de 1974, recomendei um programa de auxílio através do empréstimo de 20 milhões de dólares, num gesto favorável à democratização. À medida que se sucediam governos cada vez mais à esquerda, a questão era saber se se devia prosseguir com esta ajuda, para já não falar em aumentá-la. O embaixador Carlucci era a favor da continuação da ajuda ao governo radical, defendendo a teoria de que os moderados iam beneficiar, de algum modo, pela nossa demonstração de boa vontade. Tinha sido eu a insistir na nomeação de Carlucci para a embaixada em Lisboa, e levei os seus pareceres muito a sério. Porém, a verdade é que, inicialmente, houve uma divergência entre nós. Não via como é que os moderados podiam sair reforçados com a concessão de ajuda a radicais, e defendi que ela se mantivesse em níveis modestos, até que os radicais fossem erradicados do governo, de forma a que os dirigentes democráticos pudessem ficar com crédito pelo aumento da ajuda.»

Getty Images

Já o embaixador referiu-se a este dado primordial nos seguintes termos: «Com certeza que tivemos divergências de pontos de vista, mas foram completamente ultrapassadas. Ele [Kissinger] tinha uma perspectiva global; eu tinha um problema concreto para resolver. Houve algumas trocas de palavras duras, mas acabámos por chegar a um acordo no sentido de que seria dada uma hipótese à política por mim recomendada. Alcançado esse acordo, deu-me todo o seu apoio.»

A propósito deste conflito, refira-se que os embaixadores Frank Carlucci e João Hall Themido parecia que estavam trocados.

Kissinger, que não confiava no seu embaixador em Lisboa, recorreu ao diplomata português para se inteirar da situação em Portugal, como aliás este último confirmou nas suas memórias ao escrever que foram «muitas» as suas «“conversas inexistentes” no Departamento de Estado com Arthur Hartman» e que «funcionava como um verdadeiro conselheiro do governo americano»25. E Hall Themido acrescentou ainda: «(…) passei a ser alvo de atenção e a dispor de uma capacidade de actuação que excedia em muito o peso político de Portugal. As minhas idas ao Departamento de Estado passaram a ser frequentes e durante o gonçalvismo foram raras as semanas em que não entrasse no gabinete de Kissinger, não conversasse com ele em encontros casuais ou não me avistasse com alguns dos seus colaboradores mais próximos (…).»

Do lado português, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Melo Antunes, também não confiava no seu embaixador em Washington, com quem tinha «uma relação inexistente, nunca tendo recebido a sós João Hall Themido durante todo o período que esteve em funções». O responsável pela política externa portuguesa recorreu a Carlucci para tratar das questões relativas aos dois países.

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