No final dos anos 60, um inglês emigrado na África do Sul deixou a sua casa em Durban para vir para Lisboa aprender português durante 18 meses. Hubert D. Jennings, então com 72 anos, tinha dado aulas na mesma escola secundária onde Fernando Pessoa tinha estudado entre 1899 e 1904. Foi assim que descobriu o poeta português, que começava aos poucos a ficar conhecido fora de Portugal. Fascinado com a vida e obra de Pessoa, decidiu dedicar-lhe as últimas décadas da sua vida (Jennings morreu aos 95 anos) e escrever a sua biografia, a primeira em língua inglesa.
O livro, Fernando Pessoa, The Poet with Many Faces, foi concluído em 1972 e devia ter sido publicado dois anos depois. Mas o 25 de Abril frustrou os planos de Jennings e a biografia nunca chegou a sair. Durante décadas, esteve mesmo perdida, até que o acaso fez com que fosse encontrada num sótão de uma casa em Joanesburgo, na África do Sul. Depois de muitas peripécias, acabou nas mãos do investigador brasileiro Carlos Pittella, que sentiu que era sua obrigação dar a conhecer o trabalho pioneiro de Jennings, o inglês que se apaixonou por Pessoa primeiro que todos os outros.
Mais de 40 anos depois de ter sido escrita, Fernando Pessoa, The Poet with Many Faces foi finalmente publicada. A primeira edição, da Brown University, onde está guardado o espólio de Jennings, saiu nos Estados Unidos da América em 2018. Menos de um ano depois, chegou a Portugal, no seu original na língua inglesa, pela Tinta-da-China, cumprindo-se assim o desejo do inglês que queria dar a conhecer Fernando Pessoa ao mundo. A “dívida histórica”, como lhe chama Carlos Pittella, responsável pelas duas edições, está “saldada”.
Um inglês à procura de Fernando Pessoa
Hubert Dudley Jennings nasceu em Inglaterra em 1896, oito anos depois de Fernando Pessoa. Depois do final da Primeira Guerra Mundial, onde lutou e perdeu um olho, mudou-se para a África do Sul, onde ocupou um cargo como professor na Durban High School (D.H.S.), a instituição de ensino onde Pessoa tinha estudado de 1899 a 1904. Quando a D.H.S. estava prestes a completar o seu primeiro centenário, em 1966, Jennings, já reformado, foi convidado para contar a sua história. Foi durante a investigação que fez para The D.H.S. Story — 1866-1966 que descobriu o poeta português e se começou a interessar pela sua vida e obra.
Foi das páginas de The D.H.S. Story que, de certo modo, nasceu a biografia que viria a escrever em Lisboa. O volume sobre a Durban High School é, segundo a descrição de Carlos Pittella, “uma crónica única sobre a escola, com capítulos dedicados às vidas de antigos alunos”. Pessoa ocupa dois desses capítulos. “Um deles foi o primeiro esboço biográfico de Pessoa em inglês”, afirmou Pittella na “Editor’s Note”; o outro trata-se de um conto “que imagina o jovem poeta sentado na sua sala de aula”.
Foi depois da publicação de The D.H.S. Story, em 1966 que Jennings fez a primeira de suas viagens a Portugal, acompanhado pela sua mulher, Irene. Foi durante esta estadia que conheceu a família de Pessoa: os irmãos Luiz Miguel Nogueira Rosa, mais conhecido por Michael, e Henriqueta Madalena Dias, a Teca, que acompanhou o poeta nos últimos anos de vida. O professor inglês teve também a oportunidade de conhecer Eve, mulher de Michael, e Francisco Caetano Dias, marido de Teca. Mais tarde, entraria em contacto com o outro irmão de Pessoa, João Maria Nogueira Rosa, o John, e a sua mulher Eileen.
Foi por intermédio dos familiares próximos do poeta que Jennings conseguiu que lhe fosse atribuída uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian para estudar em Portugal. O inglês chegou a Lisboa em 1968, depois de uma longa viagem de navio (que Fernando Pessoa tinha feito antes dele), e permaneceu na capital portuguesa durante 18 meses. Com mais de 70 anos de idade, o professor começou a estudar português e mergulhou nos papéis de Fernando Pessoa, que na altura estavam guardados em casa de Teca.
Foi este contacto direto com a família (com quem mantinha uma boa relação, como atestam as cartas encontradas no seu espólio) e manuscritos pessoanos que lhe permitiu escrever Fernando Pessoa, The Poet with Many Faces. O livro, que Jennings considerava “um estudo e uma antologia” e não uma biografia, foi concluído em 1972. Deveria ter sido publicado em 1974 pelo Instituto de Alta Cultura, mas a Revolução dos Cravos deitou por terra os planos do estudioso inglês — o vice-presidente do organismo, amigo de F. E. G. Quintanilha, terá perdido o posto e o próprio Quintanilha, que estaria a tratar da edição, ter-se-á suicidado. Jennings ainda tentou divulgar o trabalho em Inglaterra e na África do Sul, mas sem sucesso.
Decidido a não desperdiçar o trabalho, Jennings enviou “a parte que parecia mais importante preservar” para a College of Cardiff da University of Wales, onde tinha estudado. Pegou na capítulo 2, “Fernando Pessoa in South Africa”, um estudo detalhado sobre os anos do poeta em Durban, “e transformou-o numa tese de mestrado, que defendeu aos 80 anos”, contou ao Observador Carlos Pittella que, infelizmente, não conseguiu localizar o trabalho. Este foi posteriormente desenvolvido e transformado nos livros Os Dois Exílios. Fernando Pessoa na África do Sul, publicado em 1984 pelo Centro de Estudos Pessoanos (que acabou um ano depois) e pela Fundação eng. António de Almeida, no Porto, e Pessoa in Durban, publicado em 1986, na África do Sul. As duas obras são, no entanto, “completamente diferentes” da biografia. “Ele não usou a mesma coisa e acrescentou parágrafos. Reescreveu tudo. Mas as informações são parecidas”, explicou Pittella.
A descoberta do espólio Jennings e de The Poet with Many Faces
Hubert Jennings morreu em Inglaterra, para onde tinha regressado, em 1991, aos 95 anos. Durante mais de 20 anos, a biografia que tinha escrito achou-se perdida. Até que o marido da neta Jeannine, Peter Ibbotson, descobriu no sótão da casa da família em Joanesburgo, escondida entre as traves do teto, uma caixa com papéis e alguns livros que Jennings tinha deixado aos filhos. Jeannine e Peter enviaram os materiais para o filho do biógrafo de Pessoa, Christopherf Jennings, que por sua vez os enviou para o escritor Matthew Hart, a quem tinha pedido que investigasse a história da família. Hart, que vivia em Nova Iorque, tentou então entrar em contacto com especialistas na obra pessoana. “Pesquisou ‘Pessoa’s scholar english’ no Google porque queria falar com alguém”, contou Pittella, editor da mais recente edição do Fausto de Fernando Pessoa.
Um dos emails enviados pelo escritor chegou a George Monteiro, professor na Brown University, em Providence, Rhode Island, onde funciona um importante centro de Estudos Portugueses e Brasileiros. Monteiro contactou Jerónimo Pizarro, que depois pediu a Carlos Pittella que fosse a Nova Iorque ver os papéis. “Eram duas caixas de plástico com muita coisa”, recordou o investigador, que viu pela primeira vez o espólio em 2015.
O manuscrito, hoje à guarda da biblioteca John Hay da Brown University, que recebeu o espólio de Hubert Jennings por decisão da família, tinha algumas folhas “soltas”, como os agradecimentos e o prefácio, e havia diferentes versões. “Tive de descobrir qual era a versão final”, admitiu o pessoano, responsável pela primeira edição do livro, que passou a ter “biografia” no título por decisão sua. Jennings nunca se referiu a ele como tal. “Fui eu que mudei para biografia. Jennings chamava-lhe ‘um estudo e uma antologia’, ‘a study and an anthology’. Mas tinha claramente a intenção de fazer uma biografia, como disse noutros documentos”, explicou Carlos Pittella.
A biografia de um velho inglês
Dividida em dez capítulos, The Poet with Many Faces atravessa toda a vida de Fernando Pessoa, com foco nos anos passados na África do Sul que, na opinião de Jennings, tinham sido transformadores: “A experiência, e particularmente a educação inglesa que ele lá recebeu, transformaram a sua vida, permearam o seu trabalho, e deixaram uma marcada influência nas tendências literárias do Portugal moderno”. Um dos capítulos é dedicado à relação de Pessoa com as mulheres, em especial com Ofélia, e nele o estudioso inglês explicar porque é que o poeta nunca casou ou constituiu família, facto que atribuía à genialidade do poeta. Especialmente pioneiro foi o trabalho de análise dos três principais heterónimos, numa altura em que não havia nada sobre o tema em inglês e muito pouco em português. O livro termina com uma antologia de poemas do ortónimo, Caeiro, Campos e Reis, traduzidos para o inglês.
Apesar da novidade de muitos materiais, The Poet with Many Faces não deixa de ter traços do tempo em que foi produzido. “Foi escrito nos anos 70, e não em uns anos 70 quaisquer. São os anos 70 de inglês que nasceu no fim do século XIX e que tem uma visão de vida que é muito particular”, afirmou Carlos Pittella. Jennings “vivenciou a Primeira Guerra Mundial, passou pela África do Sul, viu o Apartheid, Salazar…”, mas tinha algumas perceções erradas do que realmente se tinha passado, talvez por ainda não ter o distanciamento necessário para poder ver as coisas como elas aconteceram. “Por exemplo, ele nunca diz nada de negativo sobre Salazar. Para ele, [o ditador] tinha ‘equilibrado as contas’. Hoje sabemos a que custo o fez”, apontou o pessoano. Também diz, a certa altura, “que a guerra dos boêres foi a ‘última guerra dos gentlemen‘. Hoje sabemos que 28 mil mulheres e crianças boêres morreram em campos de concentração, que inspiraram Hitler. Temos muita informação sobre isso”. Mas Jennings não tinha, ou se tinha não a refere.
Em algumas passagens, a linguagem de Hubert Jennings chega até a ser incómoda. “Algumas coisas de que ele fala são hoje politicamente incorretas ou, no mínimo, teriam de ser problematizadas”, afirmou Carlos Pittella, dando como exemplo a ancestralidade judaica de Fernando Pessoa, que o investigador inglês aborda em várias passagens do seu livro e que usa até para justificar algumas das características do poeta. Logo nas primeiras páginas, recorda que Pessoa era descendente de Sancho Pessoa, “que foi condenado pela Inquisição em 1706. Foi dele que Fernando herdou, sem sombra de dúvida, as suas características judaicas, e talvez uma certa melancolia permanente na sua disposição, assim como as suas tendências messiânicas”. Mas “Pessoa tinha uma relação muito conturbada com a sua própria ancestralidade judaica”, como lembrou Pittella. “Pessoa detestava o seu próprio rosto.”
Por essa razão, Carlos Pittella admite que “é muito complicado ‘conversar’ com Jennings”, porque muito daquilo que ele escreveu está desatualizado ou não corresponde à verdade. E o grande desafio de editar uma biografia de 1972 em 2018 foi precisamente esse — encontrar um equilíbrio entre o que o estudioso inglês escreveu e as notas necessárias para que o leitor de hoje o entenda. “Pus algumas notas de rodapé a tentar chamar a atenção para coisas que podem ser problematizadas mas sem ser anacrónico”, explicou Pittella, que se recusou a mexer “no texto de Jennings”. “Corrigi algumas gralhas, claro, alguns erros pontuais. Por exemplo: quando ele dá uma data errada, corrijo. Fora isso, deixei notas. A primeira edição que saiu na Brown tem todas as correções de gralhas anotadas no aparato, que foi cortado aqui.”
Mexer num trabalho datado é “engraçado” mas às vezes pode ser “incómodo”. “Por exemplo, quando ele dá uma hipótese errada, como quando diz Pessoa nunca falou sobre a avó. Não é verdade, mas na altura em que ele escreveu ninguém sabia que ele tinha escrito dois apontamentos sobre a avó. É de facto muito pouco, mas tecnicamente está errado.” Esta é uma das razões pelas quais Carlos Pittella não sabe como é que a biografia será recebida em Portugal.
Se é verdade que The Poet with Many Faces é um produto do seu tempo, por outro continua a não haver nenhum como ele. Apesar de existirem atualmente várias antologias de poesia de Fernando Pessoa em inglês, algo em que Jennings também foi pioneiro, não existe uma introdução completa à vida e obra do poeta. “Há a antologia de Richard Zenith, A Little Larger Than The Entire Universe, que dá uma ideia geral, mas não é propriamente uma biografia, e os ensaios biográficos [que existem] são muito curtos. Não há uma introdução a Pessoa com uma antologia, mas esta tem essa curiosidade — não é uma introdução de hoje.”
As fontes de Jennings e a importância de Severino
Além de ser a introdução que faltava em inglês à obra e vida de Fernando Pessoa The Poet with Many Faces é também uma das poucas biografias que existe do poeta. Em português, há apenas duas: a de João Gaspar Simões (1950) e a de José Paulo Cavalcanti Filho (2011). A primeira foi “desmontada” por Jennings, que debateu “completamente a visão de Gaspar Simões de Durban” e as suas fontes, nomeadamente a ideia de que Pessoa sofreu muito com o exílio numa “terra feia, sem poesia”. “Simões nunca foi a Durban, mas não o diz. Fala como se tivesse vivido lá, mas tudo o que recebeu [e usou na sua biografia] veio de Albertino do Santos Matias, o cônsul português em Durban.”
Santos Matias “era uma figura”. “Fascinado pelo Esperanto, que tentou divulgar, foi presidente da Associação Portuguesa de Esperanto, viveu na China, viajou imenso e falava uma série de línguas. Era muito simpático e um ótimo investigador.” Um “malandro”, quando descobriu que o francês Armand Guibert, que consagrou um dos volumes da sua coleção “Poètes d’aujourd’hui” a Fernando Pessoa, andava à procura de informações na África do Sul, “escondeu o jogo”. Guibert tentou em vão encontrar informações sobre a passagem de Pessoa no país. Pediu ajuda ao cônsul francês, “colocou um anúncio num jornal a pedir qualquer informação sobre Pessoa”. Só que “escreveu o nome errado. “Escreveu ‘Pessao’, e publicou no jornal errado. Devia ter publicado no Natal Mercury, [o jornal de maior circulação], mas publicou num que ninguém lia”, contou Pittella.
O cônsul português, que sabia que o seu homólogo francês estava à procura do mesmo, “publicou num outro jornal, com o nome certo, e de facto houve quem respondesse”. Uma das pessoas que entrou em contacto com ele foi Augustine Ormond, que tinha sido colega de Pessoa na Commercial School. “Matias reuniu muita coisa sobre Pessoa em Durban, que Gaspar Simões transformou num dossiê que usou na biografia e que vendeu ao arquiteto Fernando Távora [importante colecionador portuense, cujo espólio se encontra atualmente à guarda da Fundação Instituto Arquitecto José Marques da Silva]. Cerca de 90% da informação sobre Pessoa na África do Sul veio do Matias ou de pessoas relacionadas com ele.”
Depois de Simões e Guibert, quem tentou seguir os passos de Fernando Pessoa na África do Sul foi Hubert Jennings. Jennings foi a principal fonte de Alexandre Severino, que fez uma tese sobre Fernando Pessoa na África do Sul, defendida em 1966 e que deu origem a um livro, Fernando Pessoa na África do Sul, publicado 15 anos antes de Jennings escrever o seu. Nele, Severino cita o inglês 82 vezes em 39 páginas diferentes. “De tal modo que George Monteiro, no prefácio original [de The Poet with Many Faces, na edição da Brown], disse que o Severino devia o doutoramento ao Jennings. E é verdade — todas as informações são dele. E foi mais ou menos nessa época, em 1965, que ele começou a interessar-se por Pessoa. Ele já sabia da existência dele, mas foi nesta relação com o Severino” que começou a aprofundar os seus conhecimentos sobre o autor de Mensagem.
Foi com Alexandre Severino que, depois de ver frustrados os planos para publicar o seu livro, Jennings preparou uma comunicação para apresentar no simpósio internacional, o primeiro dedicado a Fernando Pessoa (organizado numa altura em que o extinto Centro de Estudos Pessoanos do Porto estava a preparar aquele que acreditava ser o primeiro congresso internacional sobre o escritor), na Brown University. Intitulado “In Praise of Ofélia”, o artigo foi lido por Severino no evento decorrido a 7 e 8 de outubro, uma vez que Jennings não se pôde deslocar até aos Estados Unidos. Quando foi realizado o segundo simpósio em 1983, na Vanderbilt University, Jennings não deixou escapar a oportunidade e apanhou um avião para Nashville, onde conheceu muitos investigadores ligados aos Estudos Pessoanos. Tinha então 87 anos.
“Ele fez uma coisa que ninguém tinha feito e que pouca gente fez — ele pensou sempre no Fernando Pessoa no âmbito da literatura do mundo, não só na literatura portuguesa”, afirmou Carlos Pittella. “Ele não tinha preconceitos — lia a poesia portuguesa de Pessoa, mas também lia a inglesa e a francesa. Tinha uma mente aberta. Quando escreveu a biografia, pensou em Pessoa ao lado de T.S. Eliott, Walt Whitman e outros escritores modernistas sem a menor síndrome de inferioridade, coisa que só muitos anos depois George Monteiro começou a fazer e que, até hoje, ainda não se fez direito — pensar no Pessoa como um poeta modernista mundial. As coisas são muito insulares aqui em Portugal. Não há muitos estudos a sério sobre Pessoa e T.S. Eliot, Pessoa e Walt Whitman. Há algumas teses agora, mas acho que ele foi o primeiro a fazer isto. Jennings fala de igual para igual. E isto é interessante.”