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Foi executivo na Yahoo! durante mais de 10 anos e desde 2014 que é partner e investidor na 500 Startups, uma das principais aceleradoras e capitais de risco de Silicon Valley. Marvin Liao conversa com o Observador enquanto está de passagem pela Roménia, numa videochamada que passa por “unicórnios [empresas avaliadas em mais de mil milhões de dólares] sem modelos de negócio reais”, uma bolha que vai rebentar e não apenas na indústria tecnológica, pelos portugueses e pelo ecossistema de Lisboa, mas também por Trump, pelo Facebook e pela proteção de dados. “Vejo muito dinheiro a ir para negócios muito maus e não entendo isso. Não entendo as avaliações que muitas das empresas num estado mais avançado têm“, disse.
Com passagem marcada para Lisboa em junho, onde mais uma vez vai participar no Lisbon Investment Summit, evento de dois dias organizado pela Beta-i que junta investidores e startups de todo o mundo, Marvin Liao sabe o que vai encontrar: um ecossistema “mais rico” do que era no passado”, com empresas “mais maduras” e que é “incrivelmente amigo das startups”. Mas não deixa de apontar o dedo ao que considera serem os problemas dos portugueses: “a ética no trabalho”, a “falta de sentido de urgência” e de ambição. Marvin Liao acompanha e faz parte dos conselhos de administração de vários projetos do portefólio da 500 Startups, onde se inclui a portuguesa Talkdesk, e investe sobretudo em projetos na área de digital media, marketing cloud, comércio eletrónico e plataformas móveis.
Mentor em vários programas de aceleração na Europa, em Israel e nos Estados Unidos, diz que o que mais procura nas startups em que investe são “fundadores com grandes ambições, como o Tiago [Paiva] da Talkdesk”. Há cinco anos que é investidor na 500 Startups, fundo de capital de risco para startups em fase muito inicial que já investiu em mais de 2.200 empresas de 74 países. A 6 e 7 de junho, vai estar presente no Lisbon Investment Summit, um dos principais eventos de empreendedorismo que, na edição do ano passado, contou com mais de 600 startups, 200 investidores, 100 oradores e de 400 empresas de mais de 50 países.
“Muitos destes unicórnios nem sequer têm um negócio real”
Disse numa entrevista à Beta-i, em 2017, que havia “muito culto da treta ao produto”. Ainda estamos nessa fase ou já passámos para outro culto?
Há tantos cultos, não é? Acho que ainda se sente muito [este culto], sobretudo na Europa. Falo muitas vezes sobre marketing e vendas e continuo a achar que são áreas desvalorizadas. Mas isto também depende do ecossistema sobre o qual estamos a falar. As vendas e o marketing ainda são muito, muito desvalorizadas na Europa, no geral, e não tanto nos EUA. Mas também ainda são desvalorizadas no mercado norte-americano.
Também disse que nos últimos anos houve muito dinheiro a ser canalizado para o ecossistema e que havia projetos que nem sequer deviam ter recebido investimento. Que startups foram estas?
Falei no geral e ainda existe muito dinheiro no ecossistema. Deixe-me dar o mercado norte-americano como exemplo: nos EUA, na fase mais inicial das startups, a semente, não circula muito dinheiro no ecossistema, mas quando olhas para o que acontece em fases mais tardias, nas de crescimento, a realidade é que tens uma série de unicórnios, que não consigo entender [porque é que o são]. Muitos destes unicórnios nem sequer têm um modelo de negócio real, nem sequer têm bons indicadores económicos e estão mesmo sobreinvestidos. Isto não faz sentido nenhum para as empresas. Acho que há muito dinheiro a inundar estas empresas, porque os mercados de capitais estão muito voláteis e as empresas preferem manter-se privadas do que submeterem-se à realidade das bolsas.
Estas empresas são avaliadas com valores multimilionários, mas não é porque valham mesmo isso, é antes porque os investidores não têm onde alocar o dinheiro?
Acho que isto é uma grande parte. Mas também é verdade que o dinheiro se tornou numa matéria-prima para muitos investidores e acho que este tema entra numa conversa maior sobre a economia. O que está a acontecer é que como as taxas de juro estão tão baixas, há muito dinheiro que está a ser canalizado para a private equity [ações privadas] e para o ecossistema de startups, à caça de retornos — os retornos que não conseguem nos outros mercados. Se pensares nas classes de ativos de uma perspetiva macroeconómica, como as matérias-primas ou as moedas… Também acho que a inovação — como a tecnologia, o capital de risco — é um dos maiores ativos e, apesar de ter sido canalizado muito dinheiro para aqui, continua a ser um ativo muito, muito pequeno.
Continuamos numa bolha, então. Concorda?
Sim, acho mesmo que estamos numa bolha, mas não acho que seja apenas uma bolha tecnológica. Há uma bolha em todas as classes de ativos. Se olhar para as valorizações de todas as empresas, até para as que são cotadas nos mercados, percebe que estão a crescer. Há tanta procura por retornos em todo o lado que, para mim, tudo é uma bolha.
E quando é que vai rebentar? Porque vai rebentar, não vai?
Sim. E vai ser brutal e mau. Espero que tenhamos pelo menos mais um ou dois anos para juntarmos o máximo de dinheiro que conseguirmos, porque acho que vai ser mesmo muito feio.
Pode acontecer em dois anos?
É difícil dizer. Essa é a questão do trilião de dólares. Se soubesse, provavelmente não estaríamos aqui a ter esta conversa, estaria reformado na praia. Não sei, mas a realidade é que ainda há muito dinheiro disponível, ainda há muito dinheiro que anda à procura de retornos e questiono as estruturas de muitos negócios. Muitos países, muitas empresas no geral. É uma preocupação. Por isso, vai rebentar em algum momento, sim. Não sei se vai ser daqui a um ano ou daqui a uma semana, porque, se pensarmos sobre isto, a economia é muito cíclica… E já estamos em recuperação desde 2010, acho que é o período que tem durado mais tempo, cerca de oito anos. É muito tempo.
Os efeitos secundários desta bolha vão ser piores do que os que vivemos depois da falência do Lehman Brothers?
O que é interessante nisto é que olhamos muito para as 500 empresas [do índice norte-americano S&P] e percebemos que estão muito bem capitalizadas. Acho que os negócios não estão a crescer, mas estão sentados sobre muito dinheiro e isso é interessante. Acho que o que está a acontecer, pelo menos no mercado dos EUA, é que temos taxas de juro muito baixas e, apesar de não gostar do nosso governo atualmente, a verdade é que tem sido muito amigo das empresas, promoveu muitas mudanças e quando olhas para o mercado norte-americano percebe-se que é muito robusto. Mas quando se fala com pessoas e quando se lê as notícias toda a gente parece estar muito convencida de que vem aí muito em breve uma grande recessão ou depressão.
O que acho é que, regra geral, o consenso entre as pessoas está errado, por isso parte de mim… Olho para os sinais e percebo que são maus, mas também me questiono… Porque há uma escola de pensamento que diz que quando acreditas que uma coisa vai acontecer ela acontece, mas também há outra que diz que quando toda a gente acredita que alguma coisa vai acontecer, começa a mover-se noutra direção para evitá-la e ela acaba por não acontecer. Há um reflexo de volatilidade sobre isto. Por isso, talvez não seja tão mau quanto as pessoas julgam. Não sei.
Está dividido.
Sim, mas preocupo-me de um ponto de vista macroeconómico. Vejo muito dinheiro a ir para negócios muito maus e não entendo isso.
Que maus negócios são esses?
Não entendo as avaliações que muitas das empresas num estado mais avançado têm.
Pode dar-me exemplos?
O problema está em muitos dos unicórnios dos quais já falámos. Mas também tenho de ter aqui algum cuidado porque todos eles têm, no leque de investidores, amigos meus e não quero fazer inimigos [risos]. Muitos investidores em capital de risco investiram, na minha opinião, em empresas sobrevalorizadas.
“Houve uma bolha que nos cegou para muitas das coisas negativas que a tecnologia trouxe”
Falou do atual governo dos EUA. Quais foram as mudanças mais significativas para as startups e comunidade tecnológica feitas pela administração Trump?
Não sei se houve. Trump não é fã da Costa [Oeste dos EUA], dos média e, como sabe, Silicon Valley e toda a Califórnia, no geral, é muito anti-Trump e por isso… Se pensar em todas as políticas que ele tem promovido, como as anti-imigração, percebe que são uma ameaça à tecnologia num todo. Mas, por outro lado, tem outras mais amigas das empresas, que permitiram uma série de fusões e aquisições, e as mudanças nos impostos têm beneficiado muitas das grandes empresas, no geral.
Isso não está relacionado com o protecionismo que Trump quer para a economia americana?
Em alguns aspetos. Não estou certo de que a administração Trump tenha assim tantas estratégias políticas, mas uma que vamos ver sem dúvida é a da guerra comercial contra a China. E uma das poucas coisas com as quais concordo: a política económica do governo chinês não tem sido necessariamente boa nem para os americanos nem para ninguém. É uma coisa que tem vindo a acontecer há muito tempo e ninguém os enfrenta. Essa parte até entendo, mas não gosto de mais nada.
Que perigos enfrenta agora o ecossistema de startups?
Houve uma grande mudança na forma como vemos as coisas. Hoje, olha-se para o Facebook, para o Google e percebe-se que há uma retaliação contra a tecnologia no geral, particularmente nos EUA, mas acho que em todo o lado. Também acho que a inundação de dinheiro que há em Silicon Valley é muito negativa, no geral, para a cultura. E isto é uma espécie de bolha que há em São Francisco. E é muito negativo. Acho que quase todos nós temos estado a operar numa bolha há muito tempo… Acho que há muitos Ubers na tecnologia, no geral, e que a bolha da uberização já rebentou. Agora, estamos a começar a perceber que a tecnologia é uma força do bem, mas que também pode ser uma força do mal. Na Bay Area, houve uma bolha que nos cegou para muitas das coisas negativas que a tecnologia trouxe.
Falou no Facebook, que desde que rebentou o caso Cambridge Analytica tem estado envolvido em vários escândalos e que agora quer ser uma plataforma mais focada na privacidade. Vão conseguir chegar a esse ponto?
Acho que vão. São super inteligentes, têm muito dinheiro e muitos recursos para se moverem nessa direção. Honestamente, estão a aprender muito com a China. Olha para o WeChat, que tem tudo combinado numa só app. Acho que vão caminhar nessa direção, estão muito bem posicionados e têm pessoas muito inteligentes a trabalhar na empresa. A realidade é que olha-se para eles e não se acredita que se comportam de determinada forma, mas quando começas a pensar no Facebook enquanto ecossistema… Uso-o todos os dias, quer goste ou não goste. Não sei como as gerações mais novas estão a olhar para o Facebook, mas acho que está bem posicionado. Muitas jovens usam o Instagram e o WhatsApp.
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O Facebook está a tornar-se o WeChat do Ocidente?
Sim, acho que sim. Acho que o WeChat se está a sair muito bem e faz sentido.
Mas isso significaria que teriam o controlo e monopólio de tantas coisas… Não é preocupante termos tantos dados numa só empresa?
Sim, mas o Google também tem todos esses dados e a Amazon também. Há um grande livro que recomendo a toda a gente, mas mesmo a toda a gente no mundo, o “Data and Goliath: The Hidden Battles to Collect Your Data and Control Your World” [Bruce Schneier], isto já está tudo a acontecer. Nem é preciso começarmos a falar daquilo que os governos já sabem sobre nós. Sim, devíamos preocupar-nos, mas isto já aconteceu. Não está a acontecer, já aconteceu.
E devíamos apenas aceitar? O que é que devemos fazer?
Acho que devíamos estar a usar mais vezes VPN, precisamos de ter muito cuidado também com o que pomos online. A verdade é que muitos deles já têm estas informações. É um mundo assustador e acho que vai haver uma retaliação das pessoas.
Disse que a bolha da uberização rebentou. E a das redes sociais?
Não, acho que as redes sociais se tornaram numa utilidade. Todas as pessoas as usam, é como o ar que respiras, por isso não sei se algum dia vão acabar. A verdade é que se pensarmos muito nelas percebemos que são, basicamente, a versão online de algo que é muito semelhante ao que já fazíamos. Naturalmente já queremos socializar, mas a diferença é que no Facebook o fazemos virtualmente e se olharmos para o Twitter…. Tudo isto são reflexos de coisas que os humanos naturalmente fazem. Se é o Facebook que vai estar no futuro é difícil dizer, mas vai haver alguma coisa, alguma plataforma.
Quais são as novas tendências agora? O que anda à procura nos seus investimentos?
Ainda olho para muitas coisas como a cloud ou o software as a service, porque acho que tudo isto está ainda muito no início. Pode estar disponível há cerca de 20 anos, mas se pensarmos na quantidade de pessoas que usa este software, percebemos que é um número relativamente baixo. Também olho muito para a biotecnologia, a saúde digital.
A nova regulamentação europeia para a proteção dos dados foi uma boa medida ou é uma barreira?
É uma mistura dos dois. Há um nível assustador da falta de privacidade. Acho que a espinha dorsal é muito boa, mas acho que também tem outras consequências não intencionais. Vai tornar a vida das empresas pequenas mais difícil. As únicas empresas que vão conseguir cumprir com o RGPD são as grandes. A grande vantagem está nas empresas que têm dinheiro e recursos, mas vai ser um grande desafio para as startups. Todas as leis começam com boas intenções, mas também há muitas consequências não intencionais. Uma delas é que ironicamente isto só vai ajudar os grandes.
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A realidade da Europa ainda é muito diferente da norte-americana?
Não sei se os EUA são um exemplo. Há muitas coisas maravilhosas e outras horríveis: temos um sistema de saúde da treta e o de ensino também. Não tenho a certeza se seremos um exemplo. Mas também não sei se a Europa o será. A Europa também tem estragos. Há estragos por todo o lado. Não estou certo de que algum país tenha descoberto a fórmula.
“Há um problema de ética no trabalho em Portugal. Falta sentido de urgência”
Já veio a Lisboa algumas vezes. Tem visto diferenças no ecossistema?
Sim, sem dúvida que agora é mais rico do que era no passado. Temos visto muitas empresas maduras a levantar rondas de investimento Série B e Série C e, se reparar, a Talkdesk está a sair-se muito bem. É uma das empresas do nosso portefólio e é incrível. Começamos a ver algumas empresas assim e também a maturidade do ecossistema no geral… Acho que isso é bom e que têm um ecossistema incrivelmente amigo das startups.
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E o que é que fazemos mal?
Ainda há um problema de ética no trabalho. Não acho que seja tão grave como noutras partes da Europa. Portugal ainda é muito interessante, gosto do ecossistema, mas não acho que as pessoas trabalhem o que precisam de trabalhar. Talvez isso seja o meu lado americano a falar, mas acho que a ética no trabalho é um problema e que ainda falta sentido de urgência.
Falta aos portugueses sentido de urgência?
Acho que ainda é um problema. E também acho que as empresas não estão a pensar tão em grande quanto deveriam e têm exemplos, como o da Talkdesk. A Talkdesk devia ser um modelo para as empresas portuguesas — grandes ambições, tornarem-se grande — e ainda não vejo isso.
A Talkdesk é diferente porque beneficia de estar nos EUA desde o início?
Acho que ajuda, mas metade da equipa está em Lisboa e outra metade nos EUA. Acho que esse deve ser o modelo do futuro.
Ter eventos como a Web Summit é importante para Lisboa se afirmar como um hotspot da comunidade tecnológica na Europa?
Sim, acho que ajuda. Estes eventos são uma boa forma de galvanizar a comunidade e trazer coisas novas. Acho mesmo que a Web Summit é muito boa para Portugal enquanto ecossistema tecnológico, sobretudo por causa de todos os novos contactos: novos investidores e novas startups que estão agora em Portugal. Para o país, acho que foi dinheiro bem gasto. Foi um bom investimento e tem sido muito útil para Portugal.
O que é mais importante para si no momento de investir?
Invisto numa fase mesmo muito inicial — a semente e pré-semente — e regra geral gosto de ver já um produto a funcionar, alguns dados iniciais sobre os consumidores. E gosto de ver fundadores com grandes ambições, como o Tiago [Paiva] da Talkdesk. Ando à procura de pessoas como o Tiago.
O segredo está sempre nos fundadores?
Nesta fase das empresas sim, noutros estados, mais à frente, é muito diferente.
A 500 Startups já recuperou do escândalo de assédio sexual que envolveu o ex-CEO Dave McClure?
Isso já aconteceu há mais de um ano e meio. Somos uma empresa muito diferente agora, mas a verdade é que o Dave era apenas um dos cofundadores, não estava assim tão envolvido no dia a dia. Acho que recuperámos, sim, estamos a levantar o nosso quinto fundo agora, continuamos a investir no nosso portefólio e continuámos em frente. Não sei se há uma mudança assim tão grande na cultura da empresa, porque a verdade é que enquanto organização não fizemos nada de mal. Pessoalmente, estou muito chateado com tudo o que aconteceu e também por ser considerado culpado de uma coisa que nem eu nem a minha equipa fizemos.
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Mas o caso do Dave foi revelado numa altura em que houve outros casos na Uber, Google, etc.
Acho que muitas das coisas que aconteceram foram terríveis e que as pessoas devem ser punidas por isso. Isto forçou a que houvesse mais perceção sobre este tema e uma mudança cultural. Se olhar para muitos dos fundos de capital de risco, todos os grandes têm uma mulher na direção agora. Não estou a dizer que os problemas foram todos resolvidos, estou a dizer que agora se vê que há uma maior perceção sobre isto e que houve uma mudança cultural a acontecer nos últimos dois anos. Se olhares para todos os escândalos que aconteceram em Hollywood em Wall Street, não me parece que isso tenha feito com que essas indústrias mudassem.
Sei que é viciado na compra de livros. Que livro recomendaria aos empreendedores portugueses?
Recomendaria aos portugueses, quer sejam ou não empreendedores, o “CA$HVERTISING: How to Use More than 100 Secrets of Ad-Agency Psychology to Make Big Money Selling Anything to Anyone” [de Drew Eric Whitman]. É um livro sobre compreender a psicologia humana, o poder da linguagem e acho que é útil quer estejas ou não numa startup. É um livro mesmo muito útil.