Rui Rocha nunca teve vida fácil no que às questões internas do partido diz respeito e, depois da convenção mais agitada da história da IL, em que derrotou a ex-deputada Carla Castro, a reunião magna para discutir estatutos começou a ser vista como um possível ponto de viragem e um medir de pulso à possibilidade de haver alguém capaz de fazer frente à corrente da liderança numa próxima disputa interna.

A oposição interna chegou-se à frente: primeiro uniu-se (depois de na convenção ter havido duas listas contra Rocha) e alguns dos rostos mais conhecidos do partido surgiram juntos a apresentar as intenções para alterar os estatutos e mais tarde avançaram com uma proposta concreta. No entretanto, a força foi-se esvaindo quando algumas pessoas importantes nessa equação começaram a abandonar o partido — a começar pelos dois ex-candidatos à presidência da IL que se desfiliaram, Carla Castro e José Cardoso. Mas nem por isso Tiago Mayan Gonçalves desistiu.

Era preciso alguém para representar os descontentes com o projeto de Rocha e da sua direção e o ex-candidato presidencial deu a cara por esses desalinhados depois do resultado pouco risonho nas eleições legislativas. E após a convenção estatutária ter sido adiada com a justificação de ser preciso foco num novo desafio eleitoral após a queda do Governo de António Costa, a oposição aproveitou esses resultados para se reagrupar e mostrar que estava pronta para apresentar uma alternativa.

Tiago Mayan Gonçalves apressou-se a liderar essa fileira de descontentes, assumiu querer “refundar o partido em valores e princípios liberais” e recuperar quem foi saindo. Disse estar “pronto” para liderar uma candidatura à liderança quando esse momento chegasse e deu um novo fôlego a uma oposição interna que vinha a perder algumas referências. O timing de apresentação do manifesto “Unidos pelo Liberalismo” foi justificado com o “estado atual do partido” e porque os mais de 200 membros que o assinaram “não desistem” da IL.

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De resto, os descontentes apontavam aos maus resultados eleitorais de Rocha e, na altura, Mayan argumentava que “a estratégia desenvolvida pela atual direção do partido” tinha “consecutivamente falhado em atingir os objetivos” — Madeira, Açores e legislativas. Mas as europeias acabaram por mudar a realidade: a IL não só conseguiu superar o objetivo de eleger um eurodeputado (leva dois para o Parlamento Europeu) como assumiu uma trajetória inversa aos liberais a nível europeu (que perderam força) e conseguiram até eleger o estreante João Cotrim Figueiredo para vice-presidente do grupo parlamentar dos liberais.

Contudo, no rescaldo dessas eleições, Mayan não deu um único passo atrás na intenção de apresentar uma alternativa: “Continuo exatamente com o mesmo ânimo que tinha quando apresentei o manifesto, [porque] as circunstâncias que o ditaram mantêm-se.” O ex-candidato a Belém acredita até que estes resultados podem ditar um “novo ciclo” e ser uma “oportunidade” para que o partido queira dar o “salto”. Em declarações ao Observador, no programa Direto ao Assunto, recordou até a ambição de Rui Rocha, que chegou a colocar a fasquia nos 15% na moção de estratégia global com que foi eleito (numas legislativas que não fossem antecipadas), e fez questão de reiterar que a direção “falhou todos os objetivos eleitorais à exceção das europeias”. “É um sinal de que é preciso trabalho interno”, apontou na altura, sublinhando que este resultado “não muda nada” e que, “sem dúvida”, continua a ser necessária uma alternativa.

E se é verdade que Carla Castro, que chegou a ser o rosto da oposição à corrente da direção, e José Cardoso, que foi um dos candidatos à presidência do partido, se desfiliaram da IL, também é verdade que não foram os únicos. Mais ou menos conhecidos, vários desalinhados foram abandonando o partido liberal — uma questão que Rocha e a sua equipa sempre foram desvalorizando com a justificação de que o número de novas adesões era mais elevado. Agora, mesmo dentro do próprio movimento “Unidos pelo Liberalismo” há a crença de que já há novas filiações geradas pela alternativa que se está a formar.

Os estatutos que dividem e o formato inovador para chamar liberais

A convenção de Santa Maria da Feira tem como principal objetivo discutir e aprovar a revisão estatutária, mas pode acabar por ficar tudo na mesma. Há duas propostas — aquela que foi levada a cabo pelo Conselho Nacional, e uma outra intitulada “Estatutos + Liberais”, encabeçada por Miguel Ferreira da Silva e que foi o primeiro passo de união dos desalinhados com a direção. Para que uma delas seja aprovada é preciso 2/3 dos votos dos convencionistas e sem este número não se avança para a fase de especialidade e continuam em vigor os estatutos atuais. No fundo, tendo em conta estas regras, a convenção estatutária pode mesmo terminar sem novos estatutos.

Este é um dos assuntos que tem sido aproveitado para cavalgar a luta interna e servido de arma de arremesso entre direção e desalinhados. De tal forma que o próprio Tiago Mayan Gonçalves chegou a dizer ao Observador, ainda antes de encabeçar o movimento e na altura em que a convenção estava para ser realizada no fim do ano, que se houvesse “aprovação em pleno da proposta do grupo estatutário” teria de “reconsiderar em que partido” está por acreditar que esta proposta é um “retrocesso”.

Entre os desalinhados continua a haver acusações de que os estatutos que têm a bênção da direção irão contribuir para “um partido mais fechado, menos transparente e com práticas políticas menos democráticas”, bem como para a “falta de separação de poderes” e para a “concentração de poderes na Comissão executiva”. Já o grupo responsável pelo documento refutou, na mesma altura ao Observador, todas as acusações e garantia que esta proposta é uma “enorme evolução qualitativa face aos estatutos em vigor pelo que não só torna a IL mais liberal como a torna muito mais capaz e robusta para mudar o país”.

Com estas acusações vindas do interior do partido, esta torna-se uma convenção ainda mais relevante pela necessidade de afirmação (ou confirmação) do projeto da corrente da liderança, mas também para a oposição interna, tendo em conta que esta é a primeira reunião magna após a apresentação do movimento “Unidos pelo Liberalismo”, o que faz deste um primeiro teste a Mayan. E há ainda a questão da proposta de estatutos: apesar de o movimento que levou à criação da proposta de revisão estatutária não ser exatamente o mesmo, até porque José Cardoso, por exemplo, saiu, seria uma vitória desta oposição interna que o documento “Estatutos + Liberais” fosse aprovado.

Mais a mais, considera-se dentro do movimento encabeçado por Mayan que este é um teste relevante, mas não fatal ou que possa derrotar a alternativa vinda da oposição interna. É mais visto como um barómetro para medir o pulso ao partido e para perceber qual o espaço que há para o movimento crescer, desde logo à boleia do que se considera um espírito de divisão interna — e pelo qual a direção é vista como a principal culpada.

Além da discussão de estatutos, a direção optou por fazer desta uma convenção mais abrangente, dando a possibilidade de os membros assistirem e participarem em várias sessões (e até workshops) em que vai haver espaço para a apresentação de determinado temas, seguida de debate. Em causa estão discussões sobre assuntos como orçamento autárquico, estratégia de campanha, portal do membro, técnicas de comunicação, círculo de compensação e elaboração de programas eleitorais.

No rescaldo do melhor resultado de sempre da IL, na convenção em Santa Maria da Feira, mais de mil convencionistas vão não só decidir os futuros estatutos da IL e o novo programa político do partido como darão o pontapé de saída para a próxima convenção eletiva da IL onde, aí sim, Rui Rocha e a corrente da liderança vão ter de ir a votos contra uma oposição interna que anda há muito a preparar-se. A realidade é que quando Rocha herdou a presidência da Iniciativa Liberal tinha o importante desafio de unir um partido que acabara de passar pela primeira luta pela liderança, numa eleição interna que deu espaço para acusações e críticas que deixaram os liberais de feridas abertas. Um ano e meio depois, os liberais reúnem e as tais feridas parecem tudo menos saradas.