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O dia 18 de janeiro de 2017 ficará registado na história de Ricardo Salgado como o dia em que foi formalmente constituído arguido por alegadamente ter corrompido um primeiro-ministro e dois ex-líderes da Portugal Telecom (PT) — indiciação que foi mais tarde confirmada pelo Ministério Público no despacho de acusação da Operação Marquês.
Como diria o historiador José Hermano Saraiva, “foi aqui” — ou melhor, foi ali –, naquela pequena sala do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), em Lisboa, que Ricardo Salgado tomou consciência de que já não era o DDT — Dono Disto Tudo. Ao ouvir a longa indiciação que o procurador Rosário Teixeira demorou 30 minutos a ler, a sua habitual postura glaciar pouco se alterou mas a forma contida, ritmada e fria das primeiras declarações do líder informal da família Espírito Santo contrastam claramente com o seu estado de espírito.
“Não se surpreendam de eu ter ficado praticamente em estado de choque porque se não tivesse alguma preparação física provavelmente tinha caído para o lado com estas acusações (…) O que eu ia pedir era um copinho de água porque, de facto, este… este choque que sofri o merece”, começou por dizer perante os procuradores Rosário Teixeira e Inês Bonina e os inspetores tributários Paulo Silva e Ana Barroso.
O céu tinha acabado de cair em cima da cabeça de um dos homens mais poderosos do Portugal dos últimos 30 anos.
[Ouça no vídeo a reconstituição de 8 momentos-chave do interrogatório a Ricardo Salgado, em mais um episódio da mini-série Sim, Sr. Procurador]
A defesa da honra
Entre suspeitas de corrupção de titular de cargo político (José Sócrates), corrupção ativa de dois gestores da PT (Henrique Granadeiro e Zeinal Bava), branqueamento de capitais, fraude fiscal qualificada e abuso de confiança — alegados ilícitos estes a que foi acrescentado o alegado crime de falsificação de documento no despacho de acusação da Operação Marquês –, Salgado diz ter ficado “profundamente chocado, profundissimamente chocado com tudo isto”. Mas não ficou calado: “Nunca vi tanta mentira junta e peço desculpa por o estar a afirmar”.
Seguindo um padrão de discurso público e privado que segue desde a derrocada do grupo que liderou informalmente durante mais de 20 anos, Salgado começou por negar qualquer irregularidade e refutou as acusações — particularmente no que diz respeito às suspeitas de corrupção e aos alegados benefícios nos negócios relacionados com a PT.
Ricardo Salgado: Posso ter cometido erros de julgamento mas não erros de princípios (…). Não são verdadeiras as afirmações de qualquer tipo de relação, de influência, no primeiro-ministro da altura, o eng. José Sócrates, em relação a qualquer operação que fosse. Nunca falei com o José Sócrates sobre a história da PT sequer. E muito menos procurar entregar valores a um primeiro-ministro [José Sócrates], portanto subornos, direta ou indiretamente, por qualquer outra forma. Também gostava de referir que ilícitos praticados em relação a administradores da PT, por mim ou pelo grupo, não foram cometidos. (…)
O primeiro negócio da PT que está sob escrutínio na Operação Marquês é a Oferta Pública de Aquisição (OPA) da Sonae que Belmiro e Paulo Azevedo anunciaram ao mercado em fevereiro de 2006 — que foi derrotada em Assembleia Geral da PT cerca de um ano depois. Salgado é suspeito de alegadamente ter corrompido José Sócrates para o então primeiro-ministro influenciar a Caixa Geral de Depósitos (onde estava Armando Vara como administrador) a alinhar contra a OPA da família Azevedo (mantendo a influência do BES na PT) e de ter igualmente e alegadamente corrompido Henrique Granadeiro (então líder da PT) e Zeinal Bava (então vice-presidente da PT) para convencer a gestão da operadora a delinear e a aplicar uma estratégia anti-OPA.
Ricardo Salgado: Sr. procurador posso-lhe dizer que este aspeto da OPA da PT é o aspeto mais fácil para mim de explicar. Que não era necessária nenhuma intervenção política. (…) Se quisermos fazer um esforço de memória é muito fácil relembrar as informações que saíram na época logo que foi anunciada a OPA, salvo erro no início de fevereiro de 2006, em que imediatamente saíram duas afirmações que explicam muita coisa. A primeira é que a OPA não passa. Isso era opinião dos media especialistas na área económica (…). E a segunda vem exatamente do Paulo Azevedo, que vem referir com toda a transparência que a participação da PT no Brasil não é estratégica e, portanto, diz de caras que a operação do Brasil é para ser vendida porque — isto agora já é um julgamento meu — isso permitiria ajudar a financiar a aquisição da PT, uma vez que tinham um comprador garantido que era a Telefónica (…).
Homem no poder há muito tempo, Ricardo Salgado lidou com todos os primeiros-ministros eleitos desde que tomou posse no início dos anos 90 como líder executivo do BES. Tem, por isso mesmo, muitas histórias para contar — como faz questão de recordar ao longo das mais de duas horas de interrogatório. António Guterres, primeiro-ministro entre 1995 e 2001, é protagonista de um episódio marcante para a história da PT: a ida para o Brasil e a vitória na privatização da Telesp Celular. Mais tarde, a PT uniu-se à Telefónica (que tinha ganho a privatização da rede fixa de São Paulo) e criam uma joint venture que veio dar origem à operadora Vivo.
Mas o procurador Rosário Teixeira não perde o foco desta parte do interrogatório: a OPA da Sonae.
Ricardo Salgado: Gostava também de recordar que foi o BES que financiou a PT para a aquisição da licença da Vivo [no final dos anos 90]. A Telefónica tinha comprado a rede fixa de São Paulo, a rede celular da Vivo [Telesp Celular] foi vendida no Rio de Janeiro. E é muito fácil de verificarem esse aspeto porque (…) julgo que era o eng. Guterres que era primeiro-ministro. Telefona e diz-me [Guterres]: “Ricardo, o valor da licença está a subir exponencialmente e não sabemos se podemos ir a certos valores”. E eu apoiei-o naquilo que fosse a decisão que ele tomasse, que a administração da PT que estava no Rio de Janeiro tomasse. “O BES fará tudo para poder estar ao vosso lado na aquisição da Vivo [Telesp Celular]”. (…)
Procurador Rosário Teixeira: A administração da PT contra a OPA [da Sonae] não foi uma coisa que o sr. dr. [Ricardo Salgado] tivesse, digamos assim, também apoiado de alguma forma?
Ricardo Salgado: (…) hoje em dia não sei se consigo convencer as pessoas da bondade do meu comportamento… (…) Eu tinha tido a oportunidade de vender o controlo do BES quando o Santander comprou o grupo do António Champalimaud (…) e eu disse que não. Não podíamos vender o controlo de uma instituição a outro banco espanhol, principalmente. O nosso princípio era de defesa dos centros de decisão em Portugal e não era com objetivos maquiavélicos de retirar daí benefícios significativos. E, portanto, com certeza que estava contra a OPA [da Sonae à PT] e estava contra a OPA porquê? Por uma razão muito simples. É que nós sabíamos que a Telefónica ia comprar a Vivo. (…) Nunca falei com o José Sócrates a pedir o que quer que fosse. Aliás, eu julgo que houve no início, até nas notícias de 2006, José Sócrates fez uma dissertação pública de satisfação que a OPA [da Sonae] mostrava confiança na economia do país.
A relação com Hélder Bataglia
De acordo com a tese da acusação, o processo da alegada corrupção de Sócrates por parte de Salgado tem um homem-chave: chama-se Hélder Bataglia e, de acordo com o testemunho do próprio nos autos da Operação Marquês, terá sido este alto quadro do GES e ex-presidente da Escom a receber dinheiro do Banco Espírito Santo Angola e da Espírito Santo Enterprises, o famoso ‘saco azul’ do GES, e a transmiti-lo a Carlos Santos Silva.
O Ministério Público entende que Bataglia terá recebido do GES cerca de 22 milhões de euros com esse objetivo, mas Bataglia apenas reconheceu no seu interrogatório no DCIAP, realizado poucos dias antes de Salgado ser chamado a prestar declarações, que transferiu cerca de 12 milhões de euros para Santos Silva alegadamente a pedido expresso de Salgado.
A alegada necessidade de Ricardo Salgado corromper José Sócrates é explicada pelo MP através de dois temas — ambos relacionados com a PT:
- Convencer Sócrates a apoiar a oposição do BES à OPA lançada pela Sonae em fevereiro de 2006, de forma a manter a influência do BES na operadora;
- Promover a utilização das 500 golden-shares da PT que o Estado detinha, de forma a condicionar a venda da participação que a PT tinha na Vivo ao reinvestimento de boa parte dos 7,5 mil milhões de euros pagos pelos espanhóis da Telefónica na aquisição de uma nova participação numa operadora brasileira: a Oi/Telemar.
Procurador Rosário Teixeira: Vamos então, e já que era seu desejo, reconstruir esse relacionamento com o sr. Hélder Bataglia. Tinha prometido ou não ao sr. Hélder Bataglia qualquer tipo de pagamento, qualquer tipo de compensação pelo trabalho, pelo sucesso da Escom?
Ricardo Salgado: (…) o Hélder Bataglia foi contratado pelo meu primo António Espírito Santo. (…) E para fazer a longa história curta eu vou-lhe dizer que houve dois grandes culpados da catástrofe do Grupo Espírito Santo em Angola: um foi o sr. Álvaro Sobrinho e outro foi o sr. Hélder Bataglia. Mas, no início, o Hélder Bataglia era um homem genial. O desenvolvimento da atividade da Escom vem em velocidade acelerada e ele começa, muito cedo, a desenvolver relações internacionais com a bandeira Espírito Santo (…). Vai para a China, vai para a Rússia, vai para aqui, vai para acolá. E é de tal maneira bem-sucedido que, no final dos anos 90, eu não lhe sei precisar a data exata, os chineses já estavam a fazer acordos com Angola no sentido de comprar petróleo e financiar o Estado angolano. O prestígio do Hélder Bataglia em Angola subiu vertiginosamente. Ele era praticamente one man show. Trouxe os chineses para Angola. Há relatórios, até relatórios secretos, sobre isso se depois tiverem interesse. Que afirmam isso. Poderemos facultar-lhe.
Salgado manteve ao longo de todo o interrogatório a sua justificação para as transferências realizadas pelo BESA e pela ES Enterprises para as contas bancárias suíças de duas sociedades offshore de Hélder Bataglia: tratava-se de uma remuneração por um acordo (apelidado de acordo-chapéu pelo próprio Salgado) que o GES tinha assinado com Bataglia para remunerá-lo pela obtenção da licença bancária que permitiu ao GES abrir o BESA em Angola e por alegadas licenças de exploração de petróleo em Angola que seriam emitidas em nome do GES.
Procurador Rosário Teixeira: O acordo-chapéu com Hélder Bataglia foi mesmo feito nesta data de 2005?
Ricardo Salgado: Foi, foi. (…) Com as boas relações que estava com o governo de Angola, o Hélder Bataglia diz-nos que vai obter licenças para blocos de petróleo. E então aparecem seis blocos, salvo erro, dois onshore em Angola e quatro offshore. Não sei agora os nomes nem as características. Aquilo que eu vim a reconhecer depois é que nós só tivemos uma participação num bloco de petróleo com um grupo angolano. Foi a única coisa que eu depois acabei por detetar. Mas nós tivemos que pagar ao Hélder Bataglia montantes consideráveis para efeitos dessas concessões.
Contudo, o próprio Salgado admite que Bataglia não conseguiu as licenças de petróleo que tinha prometido e para as quais teria alegadamente recebido cerca de 6 milhões de euros do BESA.
Ricardo Salgado: Devo dizer-lhe que encontrei o Manuel Vicente [ex-vice-presidente de Angola e ex-presidente da Sonangol] em Portugal uma ou duas vezes a quem eu me queixei (…) e disse-lhe: “Tudo aquilo que nós já fizemos por Angola e eu tenho agora esta informação, esta possibilidade dos blocos de petróleo dita pelo Hélder Bataglia…”. E ele por duas vezes garantiu-me: “Vocês vão ter concessões de petróleo em Angola. Não tenha dúvida alguma”. O Manuel Vicente verbalmente. Julgo até que uma vez foi num jantar oficial oferecido não sei se foi ao [José] Eduardo dos Santos, mas ele estava lá nesse jantar oficial. Não sei qual era o primeiro-ministro, o Presidente [Cavaco Silva] que estava a receber as entidades.
Procurador Rosário Teixeira: Tinha então duas pessoas bem posicionadas, o dr. Hélder Bataglia e o Manuel Vicente, que estava na Sonagol na altura, a garantir que o grupo iria ser beneficiário de licenças de exploração?
Ricardo Salgado: Em função disso são montadas algumas dessas operações. (…) Os pagamentos ao Hélder Bataglia eram feitos com esta finalidade. A obtenção de direitos de concessão, poços de petróleo, etc. Agora, de repente, e eu devo-lhe dizer que descobri isso fundamentalmente depois do colapso, por trás das nossas costas estava a passar um filme de terror em que os recursos eram desviados para outras finalidades. Que eu nunca na minha vida pensei que isso pudesse acontecer. (…)
Procurador Rosário Teixeira: Então porque é que pagaram sem verificar se isso tinha ido avante ou não?
Ricardo Salgado: Porque é que pagámos? A sua questão é perfeitamente correta. É porque nós estávamos convencidos de que as coisas estavam a acontecer. (…)
Procurador Rosário Teixeira: O acordo é feito pela tal Espírito Santo Enterprises, que o sr. dr., não sei se admitirá ou não, mas que em princípio só libertaria fundos com a sua intervenção…
Ricardo Salgado: Não era só com a minha. Também havia outros membros do Conselho Superior [do GES] que davam ordens para a Enterprises. Mas pronto. (…) O senhor que controlava os pagamentos [Jean Luc Schneider], certamente deve ter perguntado se podia pagar (…).
Inspetor Paulo Silva: E foi perguntar a quem?
Ricardo Salgado: Deve ter perguntado a mim! Pode ter perguntado perfeitamente a mim! (…) Eu não tinha tempo para tratar administrativamente desse assunto. Há falhas, há. Não tenho dúvida. Agora, pode ter a certeza que esses recursos para nós deviam ter sido investidos em Angola (…) e não sub-repticiamente passar-nos por trás das costas e estarem a ser passados não sabemos a quem.
Os alegados pagamentos a José Sócrates
A primeira tranche que Hélder Bataglia recebeu do GES corresponde a 7 milhões de euros que tiveram origem no BESA e acabaram numa conta da Suíça aberta em nome da Markell, sociedade offshore de Bataglia. Com esses fundos na mão, o então líder da Escom terá transferido cerca de 6 milhões de euros para a conta da Gunter Finance de José Paulo Pinto de Sousa — primo de José Sócrates e o seu alegado primeiro testa-de-ferro. Bataglia diz que este montante corresponde ao preço de compra dos terrenos das salinas de Benguela que pertenciam à família Pinto de Sousa. Mas esta justificação foi claramente desmentida por Pedro Ferreira Neto, alto quadro do GES e então chief financial officer da Escom, nos autos da Operação Marquês.
Ricardo Salgado: (…) Quando me falam agora de acusações ou de suposições que eu mandei pagar através do Hélder Bataglia ó… ó… A quem é que é? Ao José [Paulo] Pinto de Sousa [primo de José Sócrates]! O Hélder Bataglia falou-me uma vez neste José Pinto de Sousa que tinha… que tinha se… porque havia lá terrenos do… da… destes familiares do Sócrates e que tinham umas salinas… foi a única coisa que eu soube.
Procurador Rosário Teixeira: É capaz de nos dizer em que circunstâncias é que ocorreu essa… essa conversa?
(…)
Ricardo Salgado: Comigo? Não! Eu vim a saber mais tarde que as salinas acabaram no BESA. Mas só soube mais tarde. Só soube depois da nossa intervenção lá no BESA. Em 2013. Exatamente.(…) Foi uma conversa de ocasião, uma coisa qualquer que me disse: “Ah! Eu tenho aqui o Pinto de Sousa…”, que era primo do Sócrates. Eu não sabia que o Hélder Bataglia tinha relações familiares tão estreitas com o José Sócrates, não fazia a mais pequena ideia. Acho que tinha uma filha que era de uma prima dele [Filomena Pinto de Sousa]. (…) Em outubro de 2013 quando eu fui lá [a Angola], depois de ter detetado o buracão que havia no banco [Espírito Santo Angola] provocado pelo Álvaro Sobrinho, hoje não tenho dúvida de acrescentar o nome do Hélder Bataglia. Peço desculpa, aquilo que lhes vou dizer é uma frase inglesa, os ingleses são muito cínicos, mas que é esta:”birds of the same feather they fly together — pássaros com as mesmas penas voam juntos”. Não tenho dúvida nenhuma que fomos completamente enganados em relação às duas coisas. Ao banco [BESA] e à Escom. E que o Hélder Bataglia foi um elemento determinante nisso.
As críticas a Carlos Costa
Hélder Bataglia e Álvaro Sobrinho são dois protagonistas do caso BES/GES que merecem acusações de Ricardo Salgado. Salgado aponta o dedo a muitas outras pessoas, desde o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, que recusou autorizar a Caixa Geral de Depósitos a conceder um empréstimo de emergência ao GES, até Carlos Costa, governador do Banco de Portugal que o afastou da liderança do BES e abriu cinco processos de contra-ordenação ao próprio Salgado e aos restantes administradores do BES. Aliás, Salgado fez mesmo questão de mostrar o que pensa de Carlos Costa num aparte do interrogatório que decorreu no DCIAP — tudo a propósito do pagamento da dívida de Angola a empresas portuguesas que decorreu no início da década sob patrocínio do Governo de Durão Barroso.
Procurador Rosário Teixeira: E neste processo de negociação [para o pagamento da dívida de Angola a Portugal e restantes credores internacionais], o Sr. Hélder Bataglia tem alguma intervenção?
Ricardo Salgado: Zero. Nada. Não tem nada. Isto foi tudo feito em Lisboa. Estavam vários responsáveis angolanos à volta da mesa, que agora não me lembro do nome mas posso facultar-lhe alguns nomes, e estavam entre outras pessoas como representantes dos bancos, a ironia da história, entre outros um tal dr. Carlos Costa da área internacional do BCP. Infelizmente para o nosso país. Peço desculpa pelo aparte.
“Conhece Carlos Santos Silva?”
O momento-chave do interrogatório de Ricardo Salgado surge quando o procurador Rosário Teixeira confronta o ex-líder informal do GES com as declarações de Hélder Bataglia — que, dias antes, tinha responsabilizado Ricardo Salgado naquela mesma sala por lhe ter pedido para usar as suas contas.
Procurador Rosário Teixeira: Diga-me uma coisa: conhece o sr. eng. Carlos Santos Silva?
Ricardo Salgado: Nunca o vi! Nunca o vi. Era uma… é uma situação para mim de uma enorme perplexidade. Por aquilo que eu percebi, os recursos foram parar a um tal Carlos Santos Silva. Eu vou-lhe dizer o que é que eu conheço do grupo Lena. (…)
Procurador Rosário Teixeira: (…) Mas já me está a associar o Carlos Santos Silva ao grupo Lena.
Ricardo Salgado: Ó sr. procurador, eu não me recordo de ter falado ao Carlos Santos Silva.
Procurador Rosário Teixeira: Em primeiro lugar, era seu cliente com alguns recursos, que até recebia os dinheiros numas contas do BESI que não são para toda a gente e que trouxe dinheiro lá de fora.
Ricardo Salgado: Para mim foi uma enorme surpresa que ele tivesse feito o RERT [ Regime Excepcional de Regularização Tributária] no BES. Eu não sabia! (…) Eu falo no Lena porquê. Porque eu vejo-o associado ao Lena e nas fotografias aparece sempre os senhores [irmãos] Barroca com o Carlos Santos Silva ao lado e o eng. José Sócrates. Uma das minhas funções é estar todos os 15 dias no terreno em Portugal a visitar as direções regionais dos centros de empresas e, portanto, nessas reuniões nós acabávamos por receber os clientes ao fim do dia. E eu parece-me que o Lena é ali da região de Leiria, não é?
Procurador Rosário Teixeira: Certo.
Ricardo Salgado: Pronto. E portanto eu posso ter recebido — e nós normalmente quando recebíamos pessoas não eram 100 ou 200, chegavam a ser 400 e 500 pessoas para cocktail e jantar, jantar em pé. Posso ter cumprimentado o Sr. Carlos Santos Silva, mas não sei! Não… Nunca eu, em plena consciência… nunca o vi. (…) Agora, nunca me passou pela cabeça que isto pudesse acontecer. Esta conjugação de relações entre o eng. Sócrates, o Lena e o Carlos Santos Silva. Não fazia ideia.
Procurador Rosário Teixeira: E muito menos tem conhecimento que tenha pedido a alguém para fazer transferências para este sr. Carlos Santos Silva?
Ricardo Salgado: Claro que não! Isso é tudo iniciativas do sr. Bataglia, que quando tinha um programa para desenvolver em Angola, para o qual estava a ser pago (…) fazia circular os recursos por trás das nossas costas desta forma. Foi uma total surpresa. (…)
Procurador Rosário Teixeira: Mas algumas dessas mesmas interpretações destes factos não saem da nossa lavra, saem de pessoas que o afirmaram e que dizem que foi o senhor que pediu precisamente para haver contas que serviam de passagem para dinheiros que vieram da [Espírito Santo] Enterprises.
Ricardo Salgado: Nunca fiz isso na minha vida.
Procurador Rosário Teixeira: Nunca pediu a ninguém: “Olhe, deixe lá passar esse dinheiro e depois transfere para a conta tal”?
Ricardo Salgado: Não, não.
Procurador Rosário Teixeira: Portanto, aquilo que aqui está em causa são duas versões sobre a existência destes pagamentos porque o sr. está-nos a dizer que deu estes dinheiros todos ao sr. Hélder Bataglia — que só nestes anos 2008, 2009 somam aqui assim os tais 22 milhões de euros — e que são pura e simplesmente para ele desenvolver negócios e para remunerações dele pelo sucesso que pudesse ter, incluindo a tal licença bancária do BESA que terá sido paga algum tempo depois. Isso é verdade da sua parte que a licença já foi paga nos anos depois. Outra coisa é dizer que parte deste dinheiro foi entregue por si ao sr. Hélder Bataglia mas para depois o reencaminhar para umas contas que o sr. Carlos Santos Silva deveria indicar.
Ricardo Salgado: Nunca ouvi falar no Carlos Santos Silva antes. Nunca ouvi falar. O Hélder Bataglia nunca me falou no Carlos Santos Silva. Nunca me falou de nada. Ele fazia o que queria (…)
Ricardo Salgado: "Claro que não! Isso é tudo iniciativas do sr. Bataglia, que, quando tinha um programa para desenvolver em Angola, (...) fazia circular os recursos por trás das nossas costas desta forma. Foi uma total surpresa."
As relações com José Dirceu
João Abrantes Serra, sócio de Fernando Lima (grão-mestre do Grande Oriente Lusitano) no escritório de advogados Lima, Serra e Fernandes & Associados, foi constituído arguido na Operação Marquês mas acabou por não ser acusado de nenhum ilícito criminal. Em causa estava o alegado pagamento de cerca de 944 mil euros a José Dirceu, o ex-braço direito do Presidente brasileiro Lula da Silva. A equipa do procurador Rosário Teixeira suspeitava que o escritório Lima, Serra e Fernandes & Associados, que foi contratado por Henrique Granadeiro para assessorar a PT no Brasil a propósito de uma possível fusão com a operadora Telemar, teria sido usado para fazer chegar aquele montante a José Dirceu, de forma a que este intercedesse junto das autoridades brasileiras para alegadamente favorecer a PT.
Ricardo Salgado foi confrontado com estas suspeitas, o que levou o ex-líder do BES a falar de um personagem que ficou famoso na década passada no Brasil e em Portugal: Marcos Valério, um antigo publicitário que está na origem do caso Mensalão — um processo judicial de alegada corrupção de um número muito significativo de congressistas do Partido dos Trabalhadores (PT) e que levou mesmo à primeira condenação a prisão efetiva de José Dirceu. Ricardo Salgado (BES), António Mexia (presidente da EDP) e Miguel Horta e Costa (ex-presidente da PT) chegaram a ser ouvidos como testemunhas em Portugal num inquérito criminal a propósito de acusações de Valério (conhecido como “o careca” por ser calvo) de alegado financiamento pratidário ilícito por parte daquelas empresas portuguesas ao PT. O inquérito foi arquivado.
Procurador Rosário Teixeira: Conheceu José Dirceu e em que circunstâncias?
Ricardo Salgado: O José Dirceu foi o braço direito do Lula na primeira fase do presidente brasileiro.
Procurador Rosário Teixeira: Chegou a conhecê-lo lá [no Brasil] ou cá [em Portugal]?
Ricardo Salgado: Conheci-o cá e vou-lhe já dizer: o sr. procurador deve-se recordar do período em que houve o célebre careca [Marcos Valério] que era o ‘homem da mala’ que veio a Lisboa e que foi à PT, foi ao BES e que depois foi à EDP. E então andava a procurar levantar dinheiro. E eu disse-lhe que nós não tínhamos hipótese nenhuma e que não fazia sentido estarmos a contribuir para o Partido dos Trabalhadores. Ele aparecia então como responsável por uma empresa de comunicação no estado de Minas Gerais. Veio-se a verificar que é do pior que há, lá dentro daquele grupo. E aconselhei-o a falar com o meu primo Ricardo Espírito Santo no Brasil, o que ele fez. Entretanto, acontece a queda do Dirceu, começam as investigações e há um mandado para fazer um inquérito em Portugal no qual eu fui responder. Eu, o António Mexia e o Miguel Horta e Costa, que estava na PT na altura. Para saber se tínhamos dado dinheiro para o tal sujeito, o careca. Daí que poderia ser para o Dirceu. E nós dissemos que não tínhamos feito absolutamente pagamento nenhum, que não havia absolutamente nada e que não havia relação nenhuma com o José Dirceu. E encontro o José Dirceu numa cerimónia, ali na Expo, e o José Dirceu veio-me agradecer o depoimento que eu tinha feito. Eu nem sequer o vi lá no julgamento. E foi assim que eu o conheci.
E as relações com José Sócrates
O interrogatório terminou, como não podia deixar de ser, com a relação entre Ricardo Salgado e José Sócrates. O ex-líder do BES negou qualquer proximidade ao ex-líder do PS.
Inspetor Paulo Silva: A sua relação com o sr. José Sócrates. Conhecia-o antes das funções dele como primeiro-ministro?
Ricardo Salgado: Não. Julgo que terei eventualmente tido um encontro quando ele foi do Ambiente uma vez, por causa de uma situação na Beira Baixa, onde nós tínhamos lá propriedades. Mas fora isso as minhas relações com o eng. José Sócrates foram sempre institucionais. (…) Nada de intimidades. Aliás, nunca tive relações íntimas com nenhum primeiro-ministro ou Presidente [da República]. No outro dia, dei o meu testemunho em relação ao dr. Mário Soares, foi uma coisa de facto muito especial. Foi o dr. Mário Soares que me chamou para nós [família Espírito Santo] voltarmos para Portugal, infelizmente. E nós aceitamos. (…) O dr. Mário Soares ficou chocadíssimo com tudo aquilo que aconteceu [a detenção de Salgado no âmbito da processo Universo Espírito Santo]. Mas foi um amigo fantástico e visitava-me quando estava detido em casa — ele e a senhora, a Maria Jesus Barroso — e jantavam connosco. Quando eu deixei de estar detido, passei a ir visitá-los a casa deles. Foi um homem notável no nosso país.
Inspetor Paulo Silva: E com o eng. José Sócrates então?
Ricardo Salgado: Com o eng. José Sócrates nunca tive relações de intimidade, quaisquer que fossem. Nunca falei com ele sobre esta história.
Inspetor Paulo Silva: Já agora, qual foi a última vez que esteve com ele [José Sócrates]? (…) nunca foi à sua residência em Cascais?
Ricardo Salgado: Não me recordo.
Advogado Adriano Squilacce: O sr. inspetor está a perguntar isto porque saíram umas notícias que o Sócrates esteve a jantar em sua casa.
Ricardo Salgado: Não me lembro. Pode ter ido quando ele escreveu um livro, quando regressou de Paris ou qualquer coisa assim. Escreveu um livro e foi lá a casa entregar-me o livro. Julgo que foi isso.
Advogado Adriano Squilacce: Tanto quanto é público, aliás foi o Correio da Manhã que referiu, que teria ocorrido um jantar em março, abril de 2014.
Ricardo Salgado: Não me recordo do jantar. Recordo-me do tal livro que eu nunca li. Nunca tive intimidade nenhuma com o eng. José Sócrates. (…)
A falta de intimidade não livrou Ricardo Salgado de, na perspetiva da equipa do procurador Rosário Teixeira, ser o principal protagonista da Operação Marquês. No centro do alegado esquema de corrupção que é denunciado no despacho de acusação do Ministério Público está o alegado favorecimento do Grupo Espírito Santo — o que significa Ricardo Salgado, o ex-Dono Disto Tudo.
Luís Rosa é autor do livro “A Conspiração dos Poderosos — Os Segredos do Saco Azul do Grupo Espírito Santo” (Esfera dos Livros) lançado em novembro de 2017.