Os casos como os da menina de quatro meses que morreu infetada pelo novo coronavírus continuam por explicar pela comunidade científica e intrigam os médicos pediatras. Ninguém sabe a origem da cardiopatia congénita, uma complicação cardíaca de que a bebé sofria. E ninguém sabe porque é, entre todas as crianças, as que têm menos de um ano que parecem ser especialmente vulneráveis à Covid-19.
As cardiopatias congénitas são doenças que provocam alterações morfológicas na estrutura do coração e dos vasos sanguíneos, como “a aorta estar no lado direito do coração, a comunicação entre os ventrículos não funcionar corretamente ou terem alterações graves que precisam de ser corrigidas”, explica Henrique Cyrne Carvalho.
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Estas doenças podem ocorrer por causa de erros genéticos, se a mãe sofrer determinadas infeções virais durante a gestação ou por ação de determinadas substâncias, como medicamentos, consumo de álcool ou tabaco. Ninguém sabe ao certo. Mas sabe-se que, entre todas as doenças congénitas (as que nascem com uma pessoa), as cardíacas são as mais comuns. Ainda assim são raras: afetam apenas oito a 10 em cada 1.000 bebés. Ou seja, apenas até 1% dos nados-vivos.
De acordo com o cardiologista e diretor do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS) da Universidade do Porto, nos casos de cardiopatias congénitas mais graves, “os bebés têm de ser operados imediatamente para sobreviverem”. Apesar de não ser claro de que doença cardíaca específica sofria esta criança ou se já tinha sido intervencionada à conta dela, a DGS confirma que o quadro clínico da bebé — a vítima mais jovem da Covid-19 e Portugal — sofreu um “agravamento” por causa da Covid-19.
Mais: a doença provocada pelo novo coronavírus terá levado ao surgimento de uma nova complicação, uma miocardite, isto é, “uma inflamação do músculo cardíaco, que chama miocárdio, e pode ser provocada por um processo inflamatório não infeccioso, mas também por ataque vírico”, neste caso pelo SARS-CoV-2.
Esta é, de resto, uma complicação comum nos casos que Covid-19 que desenvolvem casos clínicos mais severos. Tipicamente, precisam de internamento. É assim porque o músculo do coração também tem as enzimas que o SARS-CoV-2 utiliza para se introduzir nas células: os recetores ACE2. Quando as proteínas S, que dão o aspeto coroado ao vírus, se ligam a estes recetores, o doente sofre uma lesão miocárdica.
Esses casos têm sido reportados mesmo nas pessoas que não têm doença cardíaca prévia, mas quem já sofre com essas complicações terá “uma probabilidade muito elevada de não sobreviver”, uma vez que o músculo cardíaco já está mais fragilizado, avisou Regina Ribeiras, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Cardiologia, em entrevista ao Observador.
De acordo com a cardiologista, o ataque do novo coronavírus ao coração pode ocorrer de duas formas. Uma delas ocorre quando o vírus se liga aos recetores ACE2 nas células do miorcárdio, dando origem a uma inflamação. É algo que acontece com outros agentes patogénicos, mas “a inflamação do miocárdio provocada por este vírus é bastante exuberante, a lesão é muito marcada e muito intensa”. É a miocardite.
A outra forma como o coração pode ser atingido por uma infeção pelo novo coronavírus é quando o corpo entra numa “tempestade de citocinas”, em que o número destas moléculas, responsáveis pela comunicação entre as células quando o organismo desencadeia uma resposta imune, aumenta em flecha; e, com ele, o número de troponinas, moléculas envolvidas na contração do coração e que entra em circulação quando é danificado.
De acordo com Regina Ribeiras, a primeira forma de ataque do SARS-CoV-2 ao coração basta para que o doente necessite de internamento. Mas quando o organismo entra na tempestade de citocinas, o quadro clínico torna-se muito reservado: 85% dos pacientes que sofre esta lesão adicional acaba por morrer nos cuidados intensivos.
De acordo com Graça Freitas, “a causa final da morte” da criança de quatro meses “foi um choque séptico”, ou seja, os sistemas essenciais para a bebé entraram em falência e a sobrevivência já não pôde ser garantida. Ainda assim, “esta situação foi classificada pela codificadora da Direção-Geral da Saúde mais reputada, com formação pela Organização Mundial da Saúde, como um óbito por Covid-19”.
Há outros casos, também eles raros, semelhantes ao da bebé que se tornou a vítima mais jovem da Covid-19 em Portugal. Em maio, o Reino Unido registou a morte de um bebé de seis semanas, também ele doente cardíaco, após uma infeção pelo novo coronavírus. Na África do Sul, um bebé de dois dias, prematuro, morreu pela mesma causa.
Ora, apesar de as crianças serem consideradas a faixa etária menos afetada pela doença — isto é, são poucos os infetados nessas idades e tendem a desenvolver quadros clínicos menos severos —, “não podem ser tratadas como um grupo homogéneo”. E os bebés com até um ano parecem ser especialmente vulneráveis ao novo coronavírus.
Foi isso que defendeu Luís Varandas, médico pediatra e professor de infecciologia no Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT), em conversa com o Observador quando, há três meses, o delegado para a Covid-19 do Gabinete Federal de Saúde Pública suíço defendeu que as crianças podiam reencontrar-se com os avós, uma vez que ” não há praticamente quaisquer dados a mostrar que as crianças transmitiram o vírus”, logo “é bastante legítimo se tiver de haver contacto físico entre avós e netos”.
“Uma coisa que ainda não sabemos explicar é o facto de os bebés com menos de um ano parecerem fazer quadros clínicos mais graves do que as outras crianças. Não se sabe porquê”, indica Luís Varandas. Num estudo citado pela UNICEF num relatório o mês passado, os investigadores notaram que, apesar de apenas 2,7% das crianças analisadas terem quadros clínicos severos de Covid-19, essa percentagem sobe para 12% entre os bebés com cerca de três meses.
A resposta pode estar na forma como o sistema imunitário muda ao longo da infância e é especialmente frágil nos primeiros meses de vida. Nos primeiros meses de vida, os anticorpos maternos, transferidos durante a gestação, são responsáveis pela proteção imunitária dos bebés mais pequenos contra algumas infeções virais. Ou seja, “não é uma resposta da criança, mas uma transferência materna”, descreveu Manuel Vilanova, imunologista do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, ao Observador.
À medida que a criança vai crescendo, aumenta a quantidade de linfócitos — um tipo de glóbulos brancos que defende o organismo dos agentes estranhos através da produção de anticorpos e outras substâncias —, o que promove “uma resposta imunitária mais agressiva aos agentes patogénicos infeciosos” e menos dependente dos anticorpos transferidos inicialmente pela progenitora.
Esses linfócitos são amadurecidos num órgão chamado timo. À medida que a idade avança, o timo vai-se desenvolvido e os linfócitos começam a ser produzidos a um ritmo progressivamente maior. Estas células “irão constituindo e preservando a memória imunológica a esses agentes”: “O nosso sistema imunológico fica assim melhor equipado para responder a agentes patogénicos recorrentes, como alguns vírus”, explicou Manuel Vilanova.
No entanto, a partir de certa altura, o timo vai regredindo com a idade e produzindo cada vez menos dessas células. Por isso, é possível que os bebés de até um ano e os idosos estejam mais vulneráveis: no início da vida, a glândula ainda não está totalmente desenvolvida; e no fim está cada vez mais encolhida.
Mas esta é uma hipótese que está por validar: “Não foi ainda adequadamente investigada no contexto desta doença”.