Texto e fotografias dos enviados especiais do Observador à Ucrânia, Cátia Bruno e João Porfírio
Quando a notícia de que a Rússia tinha invadido a Ucrânia chegou, Rostyslav não conseguiu reagir. “Estava completamente dormente, em choque. É claro que de certa forma já esperávamos isto, porque a situação piorava de dia para a dia. Mas mesmo assim…” Este técnico de informática de Irpin, uma cidade nos subúrbios de Kiev, tem acompanhado afincadamente as notícias nas últimas semanas e, a determinada altura, achou que seria mais seguro levar a família para Lviv. Alugaram um apartamento até ao dia 27 de fevereiro. A guerra apanhou-os de surpresa, começando a 24.
Não podem voltar para trás. A sua cidade está debaixo de fogo, é “um campo de batalha”. “Toda a infraestrutura foi destruída. É muito duro ver os vídeos que os amigos que estão lá no mandam.”
A sua família não está ali. Os pais de Rostyslav estão em segurança noutra cidade; os da sua mulher, porém, estão em Kherson, cidade que tem estado sob ataque. “Eles fazem anos de casados hoje. Estão na sua casa, que é num 1º andar, com os vizinhos do 5º andar, que se juntaram a eles por ser mais seguro. Estão a tentar manter-se animados”, conta Natalia, a mulher de Rostyslav, com um sorriso triste.
A situação deste casal com duas filhas, de 6 e 2 anos, tem sido amparada pela bondade de estranhos. Na manhã desta terça-feira, caminhavam pelas ruas de Lviv com as filhas ao colo quando foram abordadas por uma desconhecida: “Precisam de um carrinho de bebé? Tenho vários, não preciso deles, posso dar-vos um.” Quando se encontram com o Observador, Natalia e Rostyslav já trazem consigo o carrinho azul e amarelo.
Mas ambos fazem questão de apoiar de volta os compatriotas. Rostyslav tem ido para a zona de fronteira da Polónia ajudar a levar mantimentos às centenas de pessoas que aguardam passar a fronteira dentro de carros, numa fila que dura dias. Natalia grava vídeos com a filha mais velha para enviar aos colegas de escola e à professora, que estão agora a viver permanentemente em abrigos anti-aéreos, na esperança de os animar. “Às vezes só perguntar ‘como estás?’ ou dizer ‘adoro-te’ pode fazer a diferença”, diz esta mãe. Ambos consideram que não estão a fazer “nada de especial”. “Não somos soldados, nem estamos a patrulhar as ruas. Isto é o mínimo que podemos fazer”, declara Rostyslav.
Uma cama para seis e um teto que abriga 15 pessoas
O casal de Irpin tem posto em prática, porém, um gesto ainda mais altruísta. Quando perceberam que a cidade de Lviv estava a ser inundada de refugiados que fugiam da guerra e não tinham onde ficar, decidiram abrir o apartamento que alugaram a quem precisasse. Natalia faz publicações no Facebook e no Instagram e contacta com as pessoas. Rostyslav vai buscá-las à estação de comboios ou aos carros. Na última noite, dormiram 15 sob o mesmo teto; há dois dias, eram 18.
Natalya e Sergei são duas das pessoas que beneficiaram da ajuda do casal de Irpin. Nativos de Kherson, a mesma cidade dos pais de Natalia, fugiram há uns dias sem plano definido com o filho de 11 anos. A família ficou para trás. O pai de Natalya juntou-se às forças de defesa civil da cidade, mas estas foram desmanteladas perante o avanço cada vez maior dos russos. “Disseram-lhes que eles eram possíveis alvos e por isso mandaram-nos ficar em casa”.
Conduziram durante 30 horas, em filas que avançavam a menos de 10 quilómetros por hora. “As faixas estavam todas ocupadas, quebrámos todas as regras de trânsito… Mas o que é que isso interessa agora, não é?”, comenta Natalya com o Observador, soltando um riso nervoso. “Tínhamos medo de ficar presos no meio do nada, sem combustível nem comida”. O destino inicial era um alojamento em Lviv que não dispunha de aquecimento — até que Natalya viu a informação da homónima e mudou o plano. “Temos muito que lhes agradecer”, diz a jovem de Kherson. Na noite em que chegaram, dormiram com Natalia, Rostyslav e a filha mais velha destes — todos na mesma cama de casal.
Ao quinto dia da invasão, estes dois casais olham com sentimentos contraditórios para as notícias mais recentes de negociações que convivem com ataques cerrados a cidades como Kiev e Kharkiv. “Por um lado, vejo que muitos dos nossos soldados estão a fazer um belo trabalho e que o mundo está unido contra a Rússia”, aponta Rostyslav. “Por outro, continuam a chegar tropas russas ao nosso país e a provocar muitos danos através de métodos sem ética e bombardeamentos a civis.”
Para além do apoio a outros, estes dois casais têm passado todo o seu tempo agarrados ao telemóvel: ora a falar com família e amigos, ora a ler notícias. Para já, não conseguem pensar no dia de amanhã nem no que será o futuro. Rostyslav gostava que a mulher e as filhas fossem para a Polónia, mas Natalia recusa: “Posso sair e o meu marido morrer entretanto. Pelo menos enquanto estamos juntos sinto-me melhor”, confessa.
Para já, o apartamento que dá abrigo a 15 pessoas está alugado até ao dia 16. Depois disso, ninguém sabe o que será. O futuro é uma interrogação gigante, mas Natalia e Rostyslav já começam a assimilar que a vida não voltará a ser a mesma. “Sou fotógrafa, faço casamentos e sessões familiares. O meu trabalho acabou. Quem é que vai querer fotos de família sorridentes agora?”