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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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Em Águeda, os bombeiros são o alvo da frustração: "São pessoas de Queluz e do Estoril, não conhecem o mato"

De Arrancada a Valada, o fogo evoluiu em apenas algumas horas e ameaça chegar ao centro de Águeda. Moradores desconfiam das autoridades vindas do sul. Autarca diz que, às vezes, há "calma a mais".

Quando o fogo deflagrou em Arrancada do Vouga, no concelho de Águeda, na madrugada de terça-feira, já se fazia adivinhar o cenário que se ia abater sobre a localidade. Praticamente 24 horas depois, a situação mantém-se. De Arrancada, com a ajuda do vento, as chamas passaram para Valongo, avançando diretamente para a zona industrial de Águeda. Aí, é o centro da cidade que está em maior risco. Com previsões de fortes rajadas para a madrugada de quarta-feira, a noite avizinha-se difícil. Para a população, mesmo atendendo à falta de meios, não há outro culpado que não as próprias autoridades.

É o que conta Fernanda Teixeira, moradora em Cabeça de Gordo de Veiga, bem perto de onde as chamas lavram. “Eles tomaram a decisão de esperar que o fogo viesse para o conseguir dominar”, vai dizendo. “Agora, o fogo atravessou para o lado de lá, vai chegar a Águeda certamente, à zona industrial, das firmas. É uma pena: é um concelho a arder.” Fernanda, tal como a maioria das pessoas que acompanham o evoluir das chamas, partilha da ideia de que cada fogo deve ser combatido por bombeiros que conheçam a região, que estejam familiarizados com as especificidades do terreno. Neste caso, não é isso que acontece, garante: “Isto são pessoas de Queluz, do Estoril, de não sei onde. Não têm noção do que é estar no mato.”

"Isto são pessoas de Queluz, do Estoril, de não sei onde. Não têm noção do que é estar no mato".

A falta de meios da região obrigou a que chegassem a Aveiro equipas vindas de muito longe. Ao longo do dia, nesta vasta área, é possível ver operacionais de zonas como Sacavém, Alcabideche, Estoril, Queluz, Mafra, Penha de França ou até Estremoz. Ao Observador, alguns destes bombeiros confessam que, face às dificuldades na comunicação com as patentes mais altas, muitas vezes são os próprios operacionais a procurar os focos ativos mais significativos na internet. Se é verdade que este relato mostra sinais de desorganização nas forças que combatem os bombeiros, também é preciso lembrar que não há sequer homens suficientes para atacar todas as frentes — sejam conhecedores daquelas localidades, ou vindos de fora.

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No terreno, é palpável a tensão e a hostilidade dos moradores. “Despachem-se! Está uma casa em risco!”, grita uma mulher na direção dos bombeiros, enquanto sobe a rua intempestivamente. A mesma mulher acabaria por regressar, já com um conjunto de moradores atrás dela, de baldes e mangueiras à mão. Entre o desespero de quem vê uma casa em risco — e as marcas de uma vida inteira construída também a serem ameaçadas —, as emoções vêm ao de cima, e é a frustração que fala mais alto. “Eles estão ali a olhar e não fazem nada, é uma pouca vergonha”, comenta outro dos moradores.

A falta de harmonia entre bombeiros e as pessoas da terra leva a situações difíceis. Face ao que consideram ser a impassividade das autoridades, vários tentam salvar as habitações com as próprias mãos: entram pelo mato em zonas diferentes daquelas em que os bombeiros escolhem atuar, enquanto tentam molhar as áreas secas. Pelo caminho, animais de estimação são levados para longe do perigo, ao mesmo tempo que são retiradas botijas de gás do interior das casas em maior risco.

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Coordenada ou não, a ação destas duas forças em conflito vai fazendo o seu trabalho, e o fogo vai ardendo apenas na zona do mato. Tal como fonte da GNR já tinha assumido ao Observador, é essa a prioridade nesta altura: proteger a vida humana, as habitações e as empresas, e não gastar meios (quer seja água, quer os próprios operacionais) a lutar contra as chamas no mato, que rapidamente se podem reacender. De resto, é o vento que comanda o fogo. E mesmo que as casas estejam seguras, é a zona industrial que enfrenta o maior risco durante a noite desta terça-feira.
Isso mesmo preocupa o presidente da Câmara Municipal de Águeda, que, face ao evoluir da situação, marca presença no terreno ao longo da noite. “O fogo tem um comportamento que é um paradoxo“, explica Jorge Almeida. “Por um lado, é previsível, mas qualquer rajada de vento muda as circunstâncias. Nós temos duas frentes que podem ir parar a Águeda. Gostávamos muito de as poder parar, mas é praticamente impossível.”

"As pessoas estão num momento de enorme ansiedade porque veem os seus bens em risco. Veem um bombeiro e querem que ele venha a correr, mas um bombeiro tem hierarquia, tem comando,

O autarca desvaloriza, no entanto, as manifestações de desagrado dos moradores em relação aos reforços vindos do sul: “As pessoas estão num momento de enorme ansiedade porque veem os seus bens em risco. Veem um bombeiro e querem que ele venha a correr, mas um bombeiro tem hierarquia, tem comando, e tem também a necessidade de sair em segurança, sobretudo numa zona que ele próprio não conhece, com comportamento de fogo que não conhece.” Mesmo saindo em defesa dos bombeiros, reconhece que, “às vezes, é calma a mais de alguns intervenientes”. E isso “leva a esses frissons“, assume.

Jorge Almeida é também o responsável regional da Proteção Civil em Aveiro, e lamenta que passados cinco anos dos últimos grandes incêndios no distrito, estejam a ser repetidos os mesmos erros. “Nós somos um país fantástico”, ironiza, “não aprendemos nada, nada, nada“. O autarca pede mais “autoridade do Estado para fazer as coisas bem feitas”, em vez de andar sempre, de incêndio a incêndio, a correr atrás do prejuízo. Da maneira como o sistema está montado, argumenta, “cada um trata como pode, alguns tratam bem, outros tratam mal e põem tudo em risco”. Questionado sobre a responsabilidade dos cidadãos, que em muitos destes incêndios acabam por desajudar, ao falhar com prazos, por exemplo, para a limpeza dos próprios terrenos, Jorge Almeida diz que é difícil os comportamentos mudarem sem haver punições adequadas.

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“Tenho os animais por gosto, é o que me dá mais pena”. O relato de quem perde mais que bens materiais

Antes de as chamas chegarem a Valongo, já grande parte dos terrenos em Arrancada do Vouga tinha ardido. A frente a causar mais preocupação lavrou no terreno de Manuel Cruz, de 80 anos. Junto à estrada, um barracão com várias máquinas de construção foi consumido pelas chamas. Alguns deles tinham réstias de combustível, que serviram como vitamina para o incêndio.

Apesar de tudo o que perdeu, Manuel lamenta acima de tudo o que vai acontecer aos animais de que tomava conta. No terreno de mais de um quilómetro de comprimento, tinha ovelhas e cabras. Todas sobreviveram, graças à ajuda dos vizinhos, mas já não têm sítio para ficar. “Agora, acabou. Não tenho onde os pôr. Vou ter de os dar”, assume. “Eu tenho os animais por gosto, é o que mais pena me dá nisto tudo”.

Era meia-noite, o terreno ainda não ardia e os cães já uivavam, garante o proprietário. “Eles sentem estas coisas. Soltei os ontem à noite, estavam no barracão, mas eles ficaram ao meu lado. Disse-lhes: ‘Amigos, temos um problema’. E não saíram de ao pé de mim.”

"Eles sentem estas coisas. Soltei os ontem à noite, estavam no barracão, mas eles ficaram ao meu lado. Disse-lhes: 'Amigos, temos um problema'. E não saíram de ao pé de mim".

Ali perto, já depois de os bombeiros chegarem, dois cães dos vizinhos continuam presos a uma árvore, com uma tijela de água ao lado. Quem por ali passa, conta que um deles se assustou com as chamas e fugiu para longe, daí a necessidade de estarem fixos num local. De qualquer maneira, os animais não deixam de merecer uma visita cuidada de três bombeiros, que vêm verificar se estão feridos, e acabam por ficar para umas festas.

Manuel Cruz culpa-se pela dimensão do fogo. Explica que “estava à espera deste incêndio há anos”, e “tinha tudo bem preparado”. “Descuidei-me um bocadinho. Durante a noite, larguei o barracão e fui a casa beber a água. Quando voltei, estava tudo a arder.” Ainda assim, mesmo tendo perdido praticamente todo o material que usava para construção, não atira a toalha ao chão. “Não fui dormir, estou sem sono, acredite nisso”, começa por dizer, antes de rematar: “Mandaram-me sair daqui. Sair daqui, eu? Sou uma pessoa muito persistente, ainda hoje, com 80 anos, não vou desistir.”

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