Dos enviados especiais do Observador a Kiev
“Se os nossos camaradas conseguem combater na linha da frente, nós temos de lhes fazer chegar lá tudo aquilo de que precisam. E vamos fazê-lo, independentemente do perigo.” Oksana Horbach, 38 anos, é a coordenadora de abastecimentos do Batalhão 207 da Defesa Territorial de Kiev. Foi ela própria que teclou a designação do cargo no nosso telemóvel e fez questão de corrigir para Kyiv, a forma ucraniana de escrever o nome da capital, em vez da russa, que sempre foi utilizada em Portugal. “Somos muito sensíveis em relação a isto, é muito importante para nós”.
Estamos no que era até há pouco tempo um espaço comercial, que tem agora as lojas fechadas e os corredores e átrios centrais transformados num armazém de guerra ucraniano, dirigido por Oksana, que se transformou subitamente numa espécie de segunda mãe para milhares de militares. “É mesmo assim que me sinto”.
Há uma sucessão de caixas e paletes empilhadas com uniformes, roupa, água, comida, medicamentos, bens de higiene e tudo o mais de que os militares possam precisar para se prepararem para o terreno. Até têm um barbeiro na antiga zona da restauração, pronto para lhes fazer penteados de guerra a pedido.
O primeiro teste para se juntar às Forças de Defesa Territorial
A 24 de fevereiro, quando os primeiros mísseis russos atingiram Kiev, a vida de Oksana mudou, como a de todos os seus compatriotas. Até aí era a coordenadora para a Ucrânia dos Invictus Games, um grande evento desportivo internacional para antigos combatentes com deficiência, criado pelo príncipe Harry em 2014. Uma espécie de Jogos Paralímpicos para veteranos de guerra, apoiados por reis, presidentes e primeiras damas de 20 países, que tem a próxima edição prevista já para daqui a um mês em Haia, nos Países Baixos. Ainda não se sabe se o país estará representado — depende da evolução da guerra: dos cerca de 20 atletas da seleção ucraniana, 18 estão a combater (os restantes não podem por terem incapacidades que os impedem).
Em janeiro, Oksana tinha começado a frequentar uma pós-graduação em Comunicação Estratégica no departamento de estudos de guerra do King’s College, de Londres. A parte presencial começaria em abril mas foi adiada. Depois do ataque de 24 de fevereiro, Oksana, que é solteira e não tem filhos, podia ter ido ter com a família a Lviv, no Oeste da Ucrânia, que nessa altura não tinha sido atacado. Mas a decisão foi fácil: “Escolhi não o fazer. Sabia que tinha de ficar em Kiev e ajudar o meu país. Vou ficar aqui. Não vou para lado nenhum.”
No segundo dia da guerra, foi oferecer-se à Força de Defesa Territorial, mas percebeu que não confiaram no seu potencial de combate. “Senti-os relutantes em aceitar-me como militar, por não ter experiência no campo de batalha. Fui ter com o comandante e disse-lhe: ‘Sou uma boa gestora. Se precisar que alguma coisa apareça feita, eu consigo garantir isso’”.
O espírito de iniciativa, a auto-confiança e a determinação de Oksana terão causado impacto no comandante. Deixou de a ver como uma mulher-soldado que poderia não ser de grande utilidade para alvejar russos em emboscadas; e passou a ver o enorme potencial de “generala” a organizar e pôr ordem na retaguarda da guerra. Testou-a logo nesse momento: “Ok, temos 300 pessoas aqui que precisam de comer. Consegues arranjar refeições para elas?”.
Oksana agarrou-se ao telefone, abriu a lista de contactos e começou a disparar mensagens e chamadas a pedir ajuda a todos os empresários, fornecedores e amigos. “E conseguimos! Ao fim desse dia, tínhamos um primeiro prato, um segundo prato, sobremesa, chá e café. Tudo oferecido pelos cafés e restaurantes locais e por outros voluntários. Nem toda a gente quer e pode contribuir no campo de batalha. Mas todos querem ser úteis. Temos mulheres de comandantes militares a trabalhar aqui, membros da comunidade LGBT, gente ligada à produção de cinema, grandes empresários, todos parte deste esforço voluntário”.
Foi assim que Oksana se tornou responsável por organizar toda a cadeia de abastecimento para os elementos deste batalhão. Na primeira semana de guerra, chegaram a concentrar-se neste espaço comercial cerca de 800 militares em simultâneo à espera de saber o destino e a missão que lhes seria confiada. Dormiam em colchões e sacos-cama espalhados ao longo dos corredores entre as lojas, transformados em camaratas improvisadas. E também foi montada uma messe de emergência, com mesas e cadeiras para lhes serem servidas três refeições por dia. Ao mesmo tempo, era preciso ir levar comida e roupas aos militares do batalhão que estavam nas suas posições estratégicas nos arredores de Kiev. Um condutor sai deste armazém com comida quente para alimentar os soldados que estão em Irpin, por exemplo, uma das frentes de batalha mais intensas às portas da capital.
As missões perigosas para ir à linha da frente e o som dos mísseis
Oksana não fica o tempo todo em segurança dentro das portas deste armazém controlado por militares fortemente armados. Também vai ao terreno. Logo no seu terceiro dia, que coincidiu com um recolher obrigatório em Kiev, foi incumbida de ir em dois carros à outra margem do rio Dnipro buscar mantimentos. Recebeu uma credencial especial para passar os vários checkpoints e ficou esmagada por ver como era complexa a situação na sua cidade e a tensão provocada pela proximidade do inimigo.
No dia seguinte, estava a entregar alimentos a militares nas suas posições quando sentiu pela primeira vez de perto o impacto sonoro de um míssil Grad, lançado pelo lado ucraniano. “Foi tão inacreditavelmente intenso. Nunca tinha ouvido este som. Mas agora já sei distinguir os vários tipos de rockets, sei se estão a sair do nosso lado ou se vêm do lado russo. Sou uma civil, mas agora sei estas coisas. É mindblowing.”
Logo nos primeiros dias, Oksana recusou andar armada. “Não sei disparar. Para que preciso de arma?” Mas, entretanto, já pediu treino, foi fazer uma sessão de tiro ao alvo e surpreendeu-se: ”Fui muito boa nisso. Até tenho jeito”.
Há três dias, quando seguia ao lado do condutor a caminho de um novo abastecimento de refeições e roupa ao seu batalhão numa das linhas da frente junto a Kiev, contactou o comandante da companhia que a iria receber e apanhou-o num momento de sobressalto: “Parem, parem agora. Estamos a ser bombardeados.”
Oksana estava a 500 metros do local onde os seus homens estavam a ser atacados pelo inimigo. “Nesse momento, soube que se tivesse uma arma e experiência a usá-la, podia ser útil a esta companhia. Mas assim, não. Sou uma pessoa do abastecimento e tive de voltar, para uma localização mais segura. Foi a minha missão mais perigosa e em que estive mais perto dos tiros, logo nos primeiros momentos deste bombardeamento, com muitos carros militares do nosso lado a chegar, um a um, para reforçar a posição. Já voltei a esse local depois e foi tudo arrasado”.
“A coisa mais difícil de conseguir na Ucrânia não é comida. É coletes de proteção”
O armazém chefiado por Oksana é também o primeiro ponto de acolhimento dos voluntários civis que são aceites nas Forças Territoriais de Defesa. Os candidatos têm de preencher um formulário para serem avaliados pelo comando, que analisa a experiência de combate e a profissão de cada um.
“Temos tantos voluntários de reserva, que o comandante já não aceita toda a gente e rejeita muitas candidaturas”, assegura Oksana. “Mas continua a haver uma grande procura por controladores de tráfego aéreo ou pilotos de drones”.
Quem é aceite na tropa recebe aqui o uniforme, as botas, mudas de roupa interior e, quando é possível e se justifica, os óculos de visão nocturna e coletes de proteção. Mas esta é a maior dificuldade de Oksana neste momento: “A coisa mais difícil de conseguir na Ucrânia não é comida. É coletes de proteção e equipamento de visão nocturna. A procura é tão elevada. Temos 200 mil pessoas nas forças armadas, mais 400 mil na Força de Defesa Territorial, mais 100 mil na Guarda e na polícia. São 500 a 600 mil pessoas que precisam de equipamento de proteção. A comunidade internacional ajuda-nos, mas não chega. Recebi no meu batalhão 500 coletes à prova de bala. Mas há 3 mil pessoas que tenho de proteger”.
Tirando os coletes, e o armamento que é gerido à parte, tudo o resto vai aparecendo de uma forma ou de outra, com a ajuda das maiores empresas. “Alguns empresários perguntam: ‘De que precisa?’ Eu digo, por exemplo, escovas de dentes. E eles: ‘No problem’”. Por princípio, Oksana tenta que estas encomendas sejam de facto uma compra e não uma doação. “Queremos pagar. Se pudermos pagar, preferimos pagar. Assim mantemos a economia a funcionar. Queremos que as pessoas que produzem recebam dinheiro. Mas quando não podemos pagar, não pagamos, e pedimos às empresas se podem doar aquilo de que precisamos”.
Foi criada uma conta bancária em nome do batalhão e fazem angariação de donativos em permanência. A transferência bancária mais alta feita por um só particular foi de um valor equivalente a cerca de dez mil euros. Oksana organiza também relatórios financeiros, que incluem provas fotográficas de tudo o que é recebido.
A morte em combate de um atleta da seleção ucraniana: “Não pensem nele como um mártir”
As últimas indicações da ofensiva militar indiciam que os russos terão falhado, para já, na tentativa de cercar militarmente a capital. Mas esse cenário não está afastado e cabe a Oksana garantir que os soldados continuam a ser alimentados. “Temos o suficiente de bebida e comida para nos aguentarmos pelo menos duas semanas, mesmo que deixem de chegar comboios a Kiev. Mas estamos sempre a trabalhar para acumular mais. Até porque, nesse caso, não sabemos se não teremos também de ajudar crianças e idosos.”
Nestas primeiras três semanas de guerra, Oksana também já se confrontou com a perda de membros do batalhão, atingidos ou abatidos pelo inimigo. “É realista perceber que temos baixas. Não posso falar disso, mas é a guerra.”
Na véspera tinha sido tornada pública a morte em combate de Serhii Karaivan, um atleta da equipa ucraniana que iria competir nos Invictus Games, uma participação organizada por Oksana. O veterano, que já tinha ficado ferido em combate em 2014, morreu numa batalha a 200 km de Kiev.
It is with regret that we report that a member of the Ukrainian Invictus Games community has been confirmed as a fatality of the Russian invasion of Ukraine.
More: https://t.co/3cuaLFCqiV pic.twitter.com/ThwgLnDS3m— Invictus Games Foundation ???????? (@WeAreInvictus) March 16, 2022
“Conhecia-o, claro. Era brilhante, tinha enorme sentido de humor. Mas não falem dele como um mártir, ele não ia gostar disso”, pede Oksana. “Uma vítima é uma pessoa que está numa situação em que é atingida por algo que aconteceu à volta. Ele escolheu defender a Ucrânia. Decidiu não sair do país. Teve a intenção de proteger o seu povo e morreu. Isto faz dele um herói, não uma vítima”.