Quando me perguntei “que obra clássica associo à palavra ‘Felicidade’?”, a propósito do dia em que o conceito é internacionalmente celebrado (20 de março), lembrei-me do segundo andamento do Concerto para Violoncelo Nº1 de Saint-Saëns, da abertura Candide de Bernstein, e do final das Bodas de Fígaro de Mozart. Colegas e amigos deram outras respostas tão díspares como as Quatro Estações de Vivaldi, as Variações Rococó de Tchaikovsky e a abertura Guilherme Tell de Rossini. E o Hino à Alegria? Pode não ser esta a primeira obra que nos passa pelo pensamento?
Na verdade, o nome “Hino à Alegria”, ou “Ode à Alegra”, pertence ao último andamento apenas. Assim é porque Beethoven usa um coro para cantar em plenos pulmões as palavras de An die Freude (Para a Alegria), poema homónimo de Friedrich Schiller. Se ouvirmos apenas os três primeiros andamentos da sinfonia, dificilmente associaríamos a obra à Alegria. Mas será que o último andamento consegue cumprir sozinho esta designação?
A 9.ª Sinfonia de Beethoven, e especialmente o Hino à Alegria, deve ser das peças clássicas mais ouvidas e reconhecidas no mundo inteiro. Justificadamente, é considerada uma das grandes obras da humanidade pelo seu valor musical, mas carrega já o peso de infinitas e variadas interpretações e conotações. Os estudiosos desta obra dizem que, por força do hábito de ouvi-la tantas vezes, nos ensurdecemos para a verdadeira música. Essas conotações históricas, políticas e sociais toldam-nos o entender da verdadeira mensagem da obra e talvez seja por isso que já não associamos imediatamente a música de Beethoven com o sentimento de alegria da comunhão da humanidade que este quis transmitir.
[a 9.ª Sinfonia de Beethoven, pela Orquestra Sinfónica de Chicago, dirigida por Riccardo Muti:]
A música do quarto andamento tem um perfil que apela verdadeiramente aos povos de todo o mundo; o texto de Schiller é simples e aberto a inúmeras leituras. Assim, o tema que Beethoven ofereceu à humanidade como o seu hino de união, é usado tanto como mote para democracias como para ditaduras. Cada qual revê nessas palavras os valores e ideais que tem dentro de si. Para além disso, certas performances icónicas da história recente estão ainda muito presentes na nossa mente e mantêm uma influência enorme na forma como ouvimos a obra.
Exemplo perfeito disto será a performance que se deu no final de 1989, para celebrar a queda do muro de Berlim e a unificação da Alemanha. Uma performance que viu a palavra chave, Freude (Alegria), mudada para Freiheit (Liberdade). Não só se deformou o texto original (há quem justifique que esta seria a intenção original do poeta), como se imprimiu profundamente a história do século XX na 9.ª Sinfonia de Beethoven: um século devastado pelas grande guerras, pela Guerra Fria, e por inúmeras disputas e desentendimentos, que se desfazem com a queda de Berlim, tal como a música de Beethoven começa num turbilhão avassalador no início da Sinfonia, que só se resolve no último andamento com a Ode à Alegria.
Redescobrir a obra de um ponto de vista neutro é muito difícil. Mesmo de um ponto de vista meramente musical, teremos sempre grandes discussões de performance histórica vs. performance contemporânea, música programática vs. música absoluta, etc. Ainda assim, a 9.ª Sinfonia de Beethoven não é apenas um conjunto aleatório de andamentos. Apesar da génese da obra não ser linear, o compositor não deixou ao acaso o contexto em que apresentou as palavras de Schiller. Independentemente do sentido que tiramos desta obra, a viagem pelas três primeiras partes da sinfonia é obrigatória, é parte do caminho para que se consiga chegar ao momento de clímax e êxtase que é o quarto andamento, qualquer que seja o seu significado: uma união fraternal da humanidade, o confronto com o abismo do infinito, ou até mesmo uma aproximação ao divino.
O primeiro capítulo desta odisseia, o primeiro andamento, é, como a maior parte das sinfonias, um Allegro em forma sonata. Uma forma apenas aparentemente bem estruturada e completa, traz-nos algo de novo nos primeiros compassos da obra — aquele início sublime e ambíguo, que nos provoca imediatamente uma sensação de dúvida e expectativa através de uma textura de tremolos e um arpejo descendente assente apenas nas notas Lá e Mi, que se resolve finalmente no arpejo de Ré menor. Sentimos, durante o andamento inteiro, uma luta interna, bem caracterizada na dualidade entre Ré menor e Ré Maior. Depois de uma reexposição magnífica, Beethoven encadeia uma longuíssima coda, que se desenrola na “marcha fúnebre” que encerra este primeiro capítulo. Num tom completamente derrotista, esta primeira parte da sinfonia representa o fim do ideal heróico.
Ainda em Ré menor, o segundo andamento começa com uma explosão de tímpanos, evidentemente surpreendente após um primeiro andamento pessimista. Além disso, ficamos confusos com esta antecipação do andamento rápido para segunda posição da sinfonia, em vez do Adagio habitual. Na primeira secção, o Scherzo, o ritmo é o elemento mais importante: é o elemento gerador e propulsionador da ação, quase como um movimento perpétuo, que contraria qualquer estagnação, mesmo quando há silêncios na música. De alguma maneira, o Scherzo em Ré menor vem perpetuar o sentimento ambíguo do primeiro andamento. Beethoven consegue transformar a fuga (uma das técnicas contrapontísticas mais complicadas) numa estrutura quase homofónica e homorrítmica, e evita grandes momentos cadenciais até ao fim do andamento, criando uma constante tensão musical. O Trio, em Ré Maior, acaba por ser a face contrária deste tema. Agora em Ré Maior, ouvimos um tema simples, leve, quase pastoral, reminiscente da 6.ª sinfonia. Os críticos da época acharam este andamento um momento humorístico de Beethoven. Porém, a seguir a um primeiro andamento como o anterior, temos uma necessidade imensa de ouvir o melancólico Adagio. Talvez Beethoven tenha decidido esta ordem de andamentos para criar propositadamente este momento de tensão.
Conseguimos algum consolo ao chegar ao Adagio, a peça instrumental de Beethoven mais opulentamente lírica, que reflete o sonho por um novo heroísmo. É o anúncio da esperança. A escrita é simples e talvez clássica. Apresenta um conjunto de variações sobre dois temas igualmente doces e pacíficos, que por duas vezes culminam numa fanfarra de metais. Estas fanfarras são a premonição da música final, da vitória, que não conseguimos alcançar para já.
Tendo Beeethoven já apresentado três andamentos, criando uma história complexa de angústia, de tensão, de esperança e reconciliação, entramos agora no capítulo final. Este sim, é o ponto alto da sinfonia, em que Beethoven e Schiller anunciam a vitória da humanidade e nos incentivam à comunhão, à alegria e ao amor. Finalmente, o bem supera o mal, a luz brilha nas trevas, Ré Maior é a tonalidade que reina. Este andamento é complexo, tem muitas interrupções, mas que são justificadas pela mensagem musical e textual de Beethoven. A primeira secção é uma introdução instrumental, que de certa forma faz a sinopse da sinfonia e deste andamento. Em primeiro lugar, os temas dos andamentos anteriores são apresentados pela orquestra, pontuados por recitativos extraordinários por parte dos violoncelos e contrabaixos. De seguida ouvimos pela primeira vez a melodia, o tema, o mote deste andamento. Primeiro os violoncelos e contrabaixos, gradualmente entram as violas e fagotes, depois os violinos, e finalmente temos uma espécie de coda da introdução, com a orquestra em tutti a tocar o tema para a Alegria. O resto do andamento é, de forma simplificada, um conjunto de variações sobre o tema, inclusive as reconhecíveis secções “Alla Marcia”e a fuga dupla, por vezes interrompidos por secções recitativas. Por exemplo, a secção onde entra o tenor solo é muito semelhante à própria introdução, com os seus tuttis orquestrais e os recitativos, agora vocais. Não há dúvida que as inflexões, os humores desta sinfonia servem o propósito muito claro de preparar o clímax desta peça. Os chamamentos do coro (“Freude”), a chegada a Ré Maior, tornam-se infinitamente mais intensos após uma viagem turbulenta do início da sinfonia.
Está bem estudado e documentado o processo criativo de Beethoven para as suas sinfonias, e esta não é exceção. Apesar de a literatura não ser consistente nas datas, diz-se que o compositor teve um interregno criativo entre 1816 e 1819 (eventualmente estendeu-se até 1822). Neste período o compositor sofreu com a sua situação familiar (cada vez menos expectativas de matrimónio e problemas com a custódia do sobrinho), com preocupações e pressões relativamente às novas tendências musicais (que vinham fragmentar as formas cíclicas da tradição clássica e destronar a música instrumental germânica) e com a sua agravada condição física (para além da surdez, sofreu de uma “constante febre inflamatória”).
Apesar disso, Beethoven continuou a compor e a anotar avidamente as suas ideias musicais nos seus cadernos de bolso, em folhas soltas e nos blocos de apontamentos que tinha em casa, três grandes fontes para o estudo beethoviano. O processo composicional de Beethoven era já, de alguma forma, vagaroso, espontâneo e livre, e ficou prejudicado com este interregno. É a partir de 1822 que Beethoven retoma a sua atividade com mais ritmo, e completa, nesses anos seguintes, a composição de algumas da suas últimas Sonatas para Piano, a Missa Solemnis, as Variações Diabelli e a tão esperada 9.ª Sinfonia.
Em julho de 1822, Beethoven contactou a Philharmonic Society of London e sugeriu a encomenda de uma “grandiosa sinfonia”. Com este contrato assinado, pôs mãos à obra nos rascunhos que tinha vindo a fazer para Die Sinfonie aus 4 Stücken (sinfonia em quatro partes). O rascunho mais antigo que existe desta sinfonia data de 1816, onde está esboçado o tema principal do primeiro andamento. Outros rascunhos de 1822 complementavam essa ideia inicial, e já davam forma à introdução. Este rascunho continha também um pequeno apontamento para música para o Scherzo. Já a música do Adagio foi concebida fora do contexto da sinfonia. Beethoven trabalhou essa música e adaptou-a para outros possíveis projetos, mas, algures em 1823 reaproveitou esse trabalho e moldou-o no Adagio que conhecemos.
A história do último andamento é mais complicada, e torna-se densa pelos mitos e desinformações que há sobre a origem do tema da Ode à Alegria. Nicholas Cook, no livro Beethoven: Symphony No.9, da coleção Cambridge Music Handbooks, desmistifica algumas interpretações erradas dos esboços de Beethoven e de textos relativos à génese desta composição. Uma delas é uma carta de Friedrich Rochlitz, jornalista musical, que escrevia que Beethoven tinha planeado compor três grandes obras em 1822. Seriam uma oratória e duas sinfonias — uma que iria satisfazer a encomenda da Philharmonic Society of London, e uma outra, que teria apelidado de “Sinfonie Allemand” (Sinfonia Alemã). Com uma análise mais detalhada às condições em que a carta foi escrita e aos facsimiles dos esboços da sinfonia, Cook concluiu que as teorias que aceitavam a existência destas duas sinfonias estavam erradas, e que tinham sido negativamente influenciadas por esse texto falacioso e por transcrições pouco metódicas dos rascunhos de Beethoven.
[o “Hino à Alegria”, no último andamento da 9.ª Sinfonia:]
A inovação de Beethoven ao usar o coro no último andamento é inegável, mas sem dúvida que o compositor já tinha em mente muitos dos aspetos chave desta sinfonia. Quem conheça a Fantasia Coral de Beethoven, poderá reconhecer alguns traços do tema principal da Ode e de uma estrutura semelhante de tema e variações. Além disso, há dois outros paralelismos óbvios entre as duas peças: o recurso a solistas e coro, e a utilização de um texto que evoca a comunhão, com a arte e com a humanidade.
[a “Fantasia Coral”:]
O compositor trabalhou na sinfonia maioritariamente em 1822 e 1823, mas fez revisões e alterações, especialmente ao último andamento, até fevereiro de 1824, poucos meses antes da estreia. Beethoven ainda considerou estrear a peça em Berlim, onde a moda da ópera italiana, que já era comum em Viena, ainda não tinha suplantado o amor germânico pela sinfonia, mas mudou de ideias ao receber uma petição, assinada pelos seus mecenas e apoiantes, onde escreviam:
“Apesar de o nome de Beethoven e das suas criações pertencerem ao mundo e a todas as terras onde a arte encontre um espírito recetivo, é, porém, só a Áustria que o pode reclamar como seu. Ainda subsiste no seu povo o reconhecimento das grandiosas e imortais obras que Mozart e Haydn criaram no seu seio para a eternidade, e com satisfeito orgulho sabem que a sagrada tríade, no qual estes nomes e o vosso [Beethoven] brilham como símbolos do mais alto reino dos sons”
Este enaltecimento do nome do compositor como o grande herdeiro da música germânica, e último representante da tradição musical que desaparecia para dar lugar à ópera italiana, foi suficiente para que a estreia da Sinfonia fosse marcada para 7 de Maio de 1824 no Teatro Kärntnertor, em Viena. A publicação desta petição nos dois grandes jornais musicais da época, Wiener allgemeine musikalische Zeitung e Wiener Theater-Zeitung, criou grande expectativas em relação à nova sinfonia de Beethoven, e assegurou uma estreia de sala cheia. Dadas algumas circunstâncias peculiares desta performance, da dificuldade da peça, e da inovação coral desta sinfonia, as críticas não foram consensuais, porém concordavam que Beethoven tinha provado a sua mestria musical e criativa uma vez mais.
Desde a sua estreia, a 9.ª Sinfonia de Beethoven inspira interpretações variadas e díspares. É tão global que reflete os valores e esperanças de quem a quer perceber, estudar e dissecar. Tal como Maynard Solomon diz, a sinfonia está cheia de símbolos, como a marcha fúnebre, a troca dos andamentos centrais, o texto de Schiller e “estes elementos vibram com uma significância implícita (…). Beethoven conscientemente queria que encontrássemos ‘sentido’ no texto da sinfonia, no seu esquema e nos símbolos tonais”.
Rita Castro Blanco é maestrina