A 17 de dezembro de 1770, na igreja paroquial de São Remígio, em Bona, teve lugar o baptismo do segundo filho de Johann van Beethoven, cantor na capela do arcebispo de Colónia. Presume-se que o rapaz, que recebeu o mesmo nome que o avô, Ludwig, terá nascido nesse mesmo dia ou no dia anterior (ver Beethoven: O outro lado do génio, de A a Z). A passagem de 250 anos sobre o nascimento de Ludwig Jr. não poderia deixar indiferente a indústria discográfica, pelo que, desde o final de 2019, se têm sucedido diversos tipos de edições: reedições de gravações históricas de obras canónicas (ver Beethoven (1770-1827): Sete gravações lendárias para comemorar 250 anos); novas gravações de obras canónicas; primeiras gravações de partituras recém-descobertas, “aparas de oficina” e arranjos por Beethoven de obras de outros autores; e volumosas caixas que compilam tudo o que Beethoven compôs (ver Ludwig van Beethoven (1770-1827): Uma vida em 80 discos).

O segundo tipo de edição é talvez o que suscitará maior perplexidade: o que levará um intérprete, em 2020, a ousar propor a enésima leitura de obras consagradas das quais já existem no mercado dezenas de versões superlativas, já para não falar em centenas de nível bom ou mediano?

A resposta é que a riqueza e profundidade da música de Beethoven continuam a proporcionar espaço para intérpretes criativos, como demonstraram os discos surgidos neste ano comemorativo, como os concertos para piano por Ronald Brautigam com Die Kölner Akademie e o maestro Michael Alexander Willens (BIS) ou por Kristian Bezuidenhout com a Orquestra Barroca de Freiburg e o maestro Pablo Heras-Casado (Harmonia Mundi), como a Sinfonia n.º 6 pela Akademie für Alte Musik Berlin (Harmonia Mundi) e como a Sinfonia n.º 9 pelo Bach Collegium Japan e pelo maestro Masaaki Suzuki (BIS). Não é por acaso que estas “revelações” vieram todas da área da “interpretação historicamente informada” (HIP, na sigla inglesa), que recorre a instrumentos de época (ou réplicas modernas destes), analisa as edições originais e os manuscritos autógrafos e emprega efectivos e práticas instrumentais conformes aos usos da época, e é também desta área que vem mais uma realização que comprova que mesmo as partituras mais escrutinadas e dissecadas ainda comportam “segredos”: as Sinfonias n.º 1-5 por Le Concert des Nations, com direcção de Jordi Savall (Alia Vox/Megamúsica, 3 SACD).

[I andamento (Allegro con brio) da Sinfonia n.º 2, por Le Concert des Nations & Jordi Savall]

Ao contrário de outros grandes maestros que ganharam nome na música antiga mas também têm interpretado com frequência obras dos séculos XIX e XX, o catalão Jordi Savall tem tomado o final do período Barroco como baliza temporal e apenas pontualmente fez incursões no repertório do classicismo vienense: as Sinfonias n.º 39-41 e o Requiem de Mozart, As Sete Últimas Palavras de Cristo na Cruz, de Haydn, e a Sinfonia n.º 3 de Beethoven. Estes quatro discos deixavam, todavia, excelentes indicações sobre a afinidade de Savall com a linguagem e sensibilidade do classicismo e o novo registo das Sinfonias n.º 1-5 vem confirmá-lo plenamente.

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[I andamento (Allegro con brio) da Sinfonia n.º 3, por Le Concert des Nations & Jordi Savall]

Savall emprega à volta de meia centena de músicos (o que seria o efectivo usual no tempo de Beethoven), combinando cerca de 35 “veteranos” de Le Concert des Nations com uma vintena de jovens talentos seleccionados entre os participantes da Academia Beethoven 2020 (os efectivos variam consoante as sinfonias). A orquestra explora uma larga amplitude dinâmica e exibe um colorido tímbrico riquíssimo e cada frase é esculpida com tal esmero e vivacidade que estas obras, tantas vezes tocadas, soam como se a tinta ainda estivesse fresca na partitura. Ao longo da sua longa e prolífica discografia como maestro, que teve início há 44 anos, Savall cultivou uma sonoridade redonda, rendilhada e irrepreensivelmente elegante, fosse o repertório medieval, renascentista ou barroco, mas nas recentes gravações das oratórias Messiah, de Handel, e Juditha Triumphans, de Vivaldi, revelou uma incisividade e uma energia surpreendentes. São qualidades que voltam a manifestar-se, ainda com mais exuberância, nestas cinco sinfonias de Beethoven, em particular no electrizante I andamento da n.º 3, no azougado I andamento da n.º 4 e no I e IV andamentos da n.º 5 – o Presto no final da n.º 5 é um ciclone de categoria quatro, mas no meio do turbilhão a disciplina orquestral mantêm-se intacta e os instrumentos não perdem a sua individualidade.

[I andamento (Allegro con brio) da Sinfonia n.º 5, por Le Concert des Nations & Jordi Savall]

Parte deste milagre é responsabilidade do registo sonoro, realizado por Manuel Mohino na igreja colegial do Castelo de Cardona, na Catalunha, local de soberba acústica que há décadas acolhe as gravações de Savall. O registo combina naturalidade, transparência e pujança, distribui os instrumentos por um espaçoso palco sonoro, dá aos timbales (tocados com baquetas com ponta de madeira, como era uso na época) uma presença e uma articulação nunca antes ouvidas (sem, no entanto, se tornarem intrusivos) e poderia ser empregue como padrão de aferição na demonstração de aparelhagens high end nos shows audiófilos.

Existem hoje várias gravações integrais das sinfonias de Beethoven em instrumentos de época que merecem recomendação, mas a integral por Savall (está previsto para breve um 2.º volume com as Sinfonias n.º 6-9) irá certamente juntar-se às versões de John Eliot Gardiner com a Orchestre Révolutionnaire et Romantique (Archiv) e de Jos van Immerseel com a Anima Eterna (Channel Classics) no topo das preferências. O mais surpreendente é que esta reveladora leitura de Beethoven provenha de um maestro e de uma orquestra cujo repertório costuma deter-se em Bach, Handel e Rameau.

[IV andamento (Allegro-Tempo I-Allegro-Presto) da Sinfonia n.º 5, por Le Concert des Nations & Jordi Savall]

Os que preferem as sinfonias de Beethoven na abordagem “tradicional”, têm muito por onde escolher. As recomendações de integrais históricas costumam incluir Fürtwangler, Karajan (com quatro versões!), Klemperer e Toscanini e esquecer a versão gravada em 1957-60 pelo maestro franco-belga André Cluytens, à frente da Filarmónica de Berlim, originalmente efectuada para a EMI francesa e agora reeditada, em caixa económica, pela Erato/Warner Classics. Escreve-se frequentemente que o registo das nove sinfonias realizado em 1961-62 por Karajan e a Filarmónica de Berlim para a Deutsche Grammophon foi o primeiro ciclo integral destas obras concebido como tal e gravada em estúdio, mas este registo de Cluytens precedeu-o.

[I andamento (Allegro con brio) da Sinfonia n.º 3, pela Filarmónica de Berlim & André Cluytens]

O som obtido pelos engenheiros da EMI na Grünewald-Kirche, em Berlim (e remasterizado em 2017), não é tão esplendoroso e consistente como o que os engenheiros da Deutsche Grammophon lograram poucos anos depois na Jesus-Christus-Kirche, com a mesma orquestra e Karajan, mas é genericamente aceitável, sobretudo quando se considera a sua antiguidade (e que a estereofonia tinha acabado de nascer). Nalguns momentos falta algum refinamento e os timbales soam enevoados, mas os metais costumam ser impressionantemente cortantes e brilhantes. Cluytens tende a imprimir uma toada enérgica e incisiva à máquina bem oleada da Filarmónica de Berlim, mas na Sinfonia n.º 6 Cluytens aposta numa abordagem rendilhada e suave: o I andamento ganha detalhe e riqueza tímbrica, a distensão não assenta mal ao II andamento (em que Cluytens gasta mais 2-3 minutos que a maioria dos maestros), mas sente-se falta de rusticidade e vigor nas danças camponesas do II andamento. A Sinfonia n.º 9 é um triunfo, com um II andamento pleno de electricidade e um IV andamento de proporções épicas (para o que dá contribuição decisiva o arrebatamento do coro da St. Hedwigs-Kathedral, de Berlim).

A caixa de 5 CDs inclui as aberturas Die Geschöpfe des Prometheus op.43 (1801), Coriolan op.62 (1807), Fidelio op.72c (1814), Egmont op.84 (1810) e Die Ruinen von Athen op.113 (1811).

[IV andamento da Sinfonia n.º 9, pela Filarmónica de Berlim & André Cluytens]

O Concerto para violino op.61 (1806) pela nipo-americana Midori com as Festival Strings Lucerne e o maestro Daniel Dodds (Warner Classics), registado a 1 de Março passado, numa sala vazia em Lucerne, após a pandemia ter cancelado as agendas de concertos, é executado com precisão e elegância, mas não traz novidades e a orquestra soa algo contida no que deveriam ser os momentos de clímax. A Festival Strings Lucerne é uma orquestra de câmara, com menos de meia centena de músicos, mas é presumível que a contenção decorra mais de uma escolha do que do número reduzido de músicos. O CD inclui as duas outras obras relevantes para violino e orquestra de Beethoven, os Romances n.º 1 op.40 (c.1798-99) e n.º 2 op.50 (1802), a gravação é calorosa e a interpretação fluida e macia poderá agradar aos que preferem Beethoven sem arestas nem brusquidão.

[II andamento (Larghetto) do Concerto para violino, por Midori & Festival Strings Lucerne]

Poucos pianistas têm credenciais tão impressionantes no classicismo vienense quanto o checo-austríaco Rudolf Buchbinder (n.1946): gravou integrais das sonatas para piano de Haydn (Teldec/Warner), dos concertos para piano de Mozart (Hänssler/Profil), das sonatas para piano de Beethoven (RCA/Sony Classical), da obra para piano solo de Beethoven (Teldec/Warner) e dos concertos para piano de Beethoven, acumulando funções de solista e maestro (Sony Classical). Em 2019 assinou contrato com a Deutsche Grammophon, onde se estreou com um disco intitulado The Diabelli Project, em que toca 11 peças encomendadas a outros tantos compositores contemporâneos sobre o tema que serviu de base às Variações Diabelli, de Beethoven. No seu segundo disco para a DG, regressa aos concertos para piano de Beethoven – o n.º 1 op.15 –, com a Filarmónica de Berlim, mas deixando a direcção a Christian Thielemann, num registo efectuado em Berlim, num concerto ao vivo em Dezembro de 2019.

[II andamento (Largo) do Concerto para piano n.º 1, por Rudolf Buchbinder, Filarmónica de Berlim & Christian Thielemann]

Beethoven compôs o Concerto n.º 1 em 1795, ano em que também o terá estreado (supõe-se), voltou a tocá-lo, em forma revista, em 1800, e submeteu-o a novas revisões antes de o publicar no ano seguinte. Nos seis anos decorridos entre a composição original do concerto e a publicação, o estilo do compositor já evoluíra apreciavelmente, pelo que, apesar das revisões, Beethoven admitiu que – tal como o Concerto n.º 2 – não o tinha “como um dos meus melhores esforços no género”. O Concerto n.º 1 denota, com efeito, influências mozartianas, que são reforçadas pela interpretação elegante e poética de Buchbinder e Thielemann – quem prefira um Beethoven mais assertivo poderá ficar desiludido.

O CD inclui as Variações sobre um tema original op.34 (1802), uma obra para piano solo cuja modesta popularidade talvez resulte da sua desconcertante heterogeneidade; a ideia de fazer seguir a soberba Variação n.º 5, uma marcha fúnebre de tons sombrios incendiada por picos de dramatismo, pela frivolidade simplória do início da Variação n.º 6 entra mesmo no domínio do desastroso.

[Variação n.º 5 das Variações op.34, por Rudolf Buchbinder]

A colecção de três trios com piano publicada em 1795 foi a primeira obra que Beethoven julgou merecedora da atribuição de um número de opus, mas o compositor já tinha atrás de si numerosas peças, tendo a primeira sido publicada quando tinha apenas 12 anos. O op.1 mostra que, aos 25 anos, Beethoven era capaz de ombrear com os trios com piano de maturidade de Haydn e Mozart – e Beethoven daria passos ainda mais ousados neste formato com os Trios n.º 5-6 op.70 (1809) e o Trio n.º 7 op. 97 “Arquiduque” (1816).

[I andamento (Allegro) do Trio com piano n.º 1 op.1/1, por Daniel Barenboim, Michael Barenboim e Kian Soltani]

O experiente pianista (e maestro) Daniel Barenboim, constituiu em 2017 um trio com dois músicos bem mais novos, o violinista Michael Barenboim, filho de Daniel e da pianista russa Elena Bashkirova, e o violoncelista Kian Soltani, um austríaco de ascendência iraniana que foi primeiro violoncelo da West-Eastern Divan Orchestra (fundada e dirigida por Daniel Barenboim); o trio, que já tinha registado a integral dos trios com piano de Mozart para a Deutsche Grammophon, apresenta agora, na mesma editora, um álbum triplo com os seis trios com piano de Beethoven acima referidos, acrescidos das 10 Variações sobre “Ich bin der Schneider Kakadu” de Wenzel Müller op.121a (também como Trio com piano  n.º 11), uma obra composta em 1803 que só foi publicada em 1824 (daí o seu n.º de opus elevado). Não é tudo o que Beethoven compôs para este formato instrumental – há ainda o Trio n.º 4, que é um arranjo do Trio op.11 para piano, clarinete e violoncelo, e três peças “menores” que correspondem aos Trios com piano n.º 8-10 – mas é o essencial.

Há 50 anos, Daniel Barenboim já gravara estas obras com Pinchas Zukerman (violino) e Jacqueline Du Pré (violoncelo) para a EMI, num registo que ganhou lugar vitalício nas recomendações da crítica e que foi o escolhido para representar os trios com piano na caixa Beethoven: The complete works da Warner Classics. A nova versão por Barenboim et al. é de muito bom nível: a abordagem é menos apaixonada e intensa do que no registo de 1969-70 (Soltani é menos arrebatado do que Du Pré), mas a articulação é mais rendilhada e o som é mais transparente e detalhado.

[II andamento (Scherzo: Allegro) do Trio com piano n.º 7 op.97 “Arquiduque”, por Daniel Barenboim, Michael Barenboim e Kian Soltani]

O Lied para voz e piano não exerceu forte apelo sobre Beethoven e a sua produção nesta área, se bem que inclua obras de valor, não é comparável, em relevância e carácter inovador, aos contributos do compositor noutros géneros musicais. Beethoven compôs cerca de 90 canções originais, parte delas na sua juventude, ainda que só tenham sido publicadas anos mais tarde (o que faz com que exibam números de opus enganadoramente elevados). O tenor Ian Bostridge e o pianista (e maestro) Antonio Pappano escolheram 18 para o álbum Songs & Folksongs (Warner Classics), que abre com as mais famosas: Adelaide op.46, de 1795, e o ciclo An die ferne Geliebte op.98, de 1816, que costuma ser considerado como o primeiro conjunto de canções concebido como um todo congruente a ser publicado por um compositor de primeiro plano.

[Bostridge e Pappano apresentam o disco Songs & Folksongs]

Se estes Lieder são relativamente pouco conhecidos, mais obscura ainda é a faceta de Beethoven como arranjador de canções tradicionais das Ilhas Britânicas, um trabalho que lhe foi encomendado por George Thomson, um editor de Edinburgh, e o ocupou, intermitentemente, entre 1809 e 1823,. Apesar de se tratar de um trabalho estritamente “alimentar”, Beethoven tomou-o a sério e até dotou muitas das canções de partes elaboradas para violino e violoncelo que muito as enriqueceram, ainda que o procedimento fosse incomum na época e Thomson até alertasse Beethoven para o facto de a esmagadora maioria dos compradores das partituras não dispor de meios para executar as partes de cordas. Entre as 164 canções que Beethoven arranjou, Bostridge e Pappano seleccionaram oito (em que são acompanhados pela violinista Vilde Frang e pelo violoncelista Nicolas Altstaedt) e pelo menos três delas justificam que não se olhe com desdém para esta faceta “menor” da obra beethoveniana: as sombrias e trágicas “The lovely lass of Inverness” e “The return to Ulster” e a rodopiante e vigorosa “Come draw me round a cheerful ring”.

[“The return to Ulster”, por Bostridge & Pappano]

A experimentada parceria Bostridge/Pappano, que lança discos regularmente desde 2006, tinha deixado excelente impressão com o seu disco de 2018, Requiem: The pity of war (assinalando o centenário da conclusão da I Guerra Mundial), e volta aqui a demonstrar o seu perfeito entrosamento – quem pretenda, num único CD, ficar com uma ideia das realizações de Beethoven no domínio da canção, dificilmente encontrará melhor do que Songs & Folksongs.

[“Wo die Berge so blau”, canção n.º 2 de An die ferne Geliebte, por Bostridge & Pappano]

O disco só suscita duas reservas: não só a jocosa e simplória “Marmotte” op.52/7 está muito longe de representar Beethoven (ou Goethe) no seu melhor, como, ao surgir no fim do alinhamento, é também a impressão que fica mais presente na memória do ouvinte. A outra reserva prende-se com a captação de som: enquanto o piano soa a uma distância justa e tem a reverberação adequada para um ambiente intimista que se deseja para este tipo de música, a voz de Bostridge é demasiado próxima e seca, o que dá a ideia de que não partilham o mesmo espaço. Estranha-se que produtores e engenheiros de som tão experimentados (Alain Lanceron, John Fraser, Philip Siney) tenham tomado esta opção, mas a verdade é que, nas circunstâncias em que 99% dos ouvintes costumam ouvir música, não se dará por nada.

[“Es kehret der Maien”, canção n.º 5 de An die ferne Geliebte, por Bostridge & Pappano]