Índice
Índice
Maria Matilde quase perdeu a conta aos lugares onde viveu. “Quando me perguntam de onde sou, digo que sou da ‘cor-da-Babilónia’. Sinto-me de todo o lado: sou transmontana de Chaves, dos 14 até aos vinte e tal vivi no Porto, até aos trinta e tal vivi em Angola, há quarenta e tal que estou aqui.” Tem hoje 72 anos. Há muito que vive no Restelo, em Lisboa, numa pequeníssima casa de fachada canto a recanto pintada de cor-de-rosa. Da vizinhança em redor mal se escuta o burburinho, de tão isolada que a casa de Maria Matilde está. Uma casa que, sendo avistada todos os dias por quem cruza a Avenida da Índia, aparenta ser de outro tempo, outra Lisboa. Perdida, afundada, no meio do que agora é luxo e modernidade.
Maria Matilde está à entrada de casa a estender roupa. Veste avental ruço, tem chinelos ortopédicos calçados nos pés, cabelo grisalho, tez morena, é magra, muito magra. Pára de estender e debruça-se sobre um muro que é quase da sua altura – ao longo dos anos o nível da rua subiu em relação ao da casa, deixando-a meia “afundada”. Tem sempre uma história pronta a contar. Uma a seguir à outra. “Tenho que desbobinar, filho. Sei que estou a ficar meio ‘caduca’ mas lembro-me de tudinho, tudinho. Não queres entrar? Entra, entra! Tenho lá as cerejas.”
Apressada, com os chinelos a chocalhar no piso de cimento, volta-se para a entrada da casa, atravessando depois as tiras das cortinas de plástico suspensas na porta, segue até à cozinha que fica à direita, abre prontamente a porta do frigorífico, retira lá de dentro uma travessa metálica com cerejas e pousa-a sobre a mesa. “Oh filho, tira, tira uma mão-cheia delas, não tenhas vergonha de tirar. Mete-as ao bolso! Dou-te um guardanapinho e metes no bolso. Assim vais a comer até casa. Tira, tira.”
No interior não há portas entre a cozinha e a sala. O quarto é logo adiante, a casa-de-banho também. A casa é exígua e quase sem mobília. Sente-se ao respirar a humidade que envolveu o teto. Voltámos ao exterior da casa e Maria Matilde a estender a roupa.
– Qual é a morada da casa?
– Não é.
A casa “perdeu-se” na toponímia de Lisboa. Está situada no largo onde termina a Travessa da Saúde – mas não é da Travessa da Saúde –, nas traseiras que dão para a Rua Bartolomeu Dias há o luxuoso hotel Palácio do Governador, mais adiante estão os abandonados pavilhões da antiga Universidade Moderna, na Avenida da Índia. Na caixa do correio foi desenhado a tinta PRAIA SECA DO BOM SUCESSO N.º 10. “Foi o meu cunhado que aí pôs; não é o número da porta. O carteiro aqui do Restelo sabe que Maria Matilde Rosa de Jesus só posso ser eu. As contas da água e da eletricidade nunca deixaram de chegar-me por não ter número da porta”, graceja.
“A casa até parece que foi aqui ‘plantada’, não parece? Às vezes dizem-me isso. Mas não; o resto é que foi plantado à volta.” Maria Matilde ainda tem memória da casa sem o “resto”. “Pfffuuuuui!… Antes de haver aí a Moderna isto aqui era tudo casas e hortas, hortas e casas. Ou melhor, barracas – esta era a única ‘casa’. É muito antiga. Tem duzentos e tal anos. É o que dizem: que tem duzentos e tal anos. Não sei se tem ou se não – quem mo disse foi uma senhora engenheira da Câmara. Mas foi construída muito antes de vir para cá morar. Antes de mim viveu aqui a minha sogra e o meu sogro. Viviam com os três filhos como sardinha em lata”, lembra.
Não se sabe ao certo quando foi construída a casa. Sabe-se que em meados de 1814 já existiria e que pescadores vindos do Algarve habitavam as casas em volta dela. Esta referência (a única entre a muita bibliografia consultada no Gabinete de Estudos Olisiponenses e Biblioteca Nacional) surge no livro de 1949 “Belém e Arredores Através dos Tempos”, da autoria do genealogista José Dias Sanches. E lê-se: “A 29 de Novembro [de 1814] ocupava o lugar de governador o tenente general Marquês de Olhão, Pedro de Melo da Cunha Mendonça e Meneses, presidente do Senado da Câmara e 2.º Conde de Castro Marim. Nesta data, já o Palácio dos Governadores, com o seu amplo terraço virado ao sul, estava rodeado de casaria modesta onde vivia gente do mar”.
Um dos primeiros proprietários da casa terá sido João Alves. No dia 9 de dezembro de 1816, escreveu ao então governador da Torre de Belém. Queria que a sua casa tivesse mais um piso. E pedia assim autorização a Pedro de Melo da Cunha Mendonça e Meneses, em carta transcrita no livro de Dias Sanches: “Ilmo. Senhor: Diz João Alves, que havendo comprado, o ano próximo passado a António Lopes Soares [anterior proprietário], uma pequena propriedade de casas, constante de lojas, primeiro andar e quintal. (…) Sucedeu, porém, ser a mesma obra embargada por ordem do Exmo. Governador da Tôrre de Belém. (…) Conceda a licença para a continuação da mesma obra contando que não deve exceder em altura à propriedade contígua (…) e quando haja abuso será demolida a dita obra.”
O governador da Torre indeferiu o requerimento de João Alves a 31 de dezembro. E a casa manter-se-ia até hoje com somente rés-do-chão e primeiro andar.
A vizinhança da Moderna, João Soares e a casa “engraçadinha” (mas não Pombalina)
Tal como a sogra, também Maria Matilde criou nesta casa (uma nail house, ou “casa-prego”, como são também denominadas estas habitações que resistem intocáveis ao progresso, isolando-se entre edifícios maiores nas grandes cidades) os filhos quando regressou de Angola. “O meu filho veio para cá com três aninhos e o outro nasceu cá. O mais novinho tem hoje 35 anos; o outro tem 45 e está emigrado para fora. Os meus netinhos é que mal saíram da maternidade vieram logo para esta casa. Eles gostam da casinha da avó, oh se gostam. Mas isto não era nada como é hoje…”
Maria Matilde revolve na memória e conta: “Aqui em frente havia um muro a toda a volta. Tudo, tudo tapadinho. Isto foi durante muitos anos um ‘buraco’ que esteve para aqui esquecido no Restelo, essa é que é essa. O que a minha sogra me contava é que isto foi tudo tapado quando, ainda no tempo do Salazar, em 1957, a rainha de Inglaterra veio de visita a Portugal. O que o Salazar quis foi tapar a miséria para a Isabel II não ver. O muro só foi derrubado – o muro e as barracas – quando veio para cá a Moderna…”
Tudo foi “derrubado”. “Quantas pessoas é que viviam aqui? Pfffuuuuui!… Tanta gente! Ora bem, viviam acolá duas cunhadas minhas, irmãs do meu Manel. Depois havia aqui em frente mais um casal. E vivia também uma moça que era sobrinha do meu marido. Havia também uma vizinha mais além. E uma tia que vivia com os dois sobrinhos. O resto era só hortas. O reitor da Moderna – um tal de [Braga] Gonçalves ou lá o que era – chegou aqui certo dia todo emproado, qual pavão qual quê, e deitou tudo abaixo. Mas não pagou indemnizações a ninguém! Não me venham cá com cantigas, que a mim não me enganam: ficaram sem as casinhas, uns foram para a Ajuda, outros para a Boavista ou lá o que é, mas ninguém viu um centavo. Nadinha. Não tiveram consideração por ninguém! Desculpa lá o palavreado, filho, mas sou como os malucos: digo tudo”, atira de chofre.
A casa de Maria Matilde resistiu às demolições aquando da ida da Universidade Moderna para aquele local. “Uma vez ouvi o reitor dizer a um engenheiro: ‘Isto é tudo para ir abaixo, tudo abaixo!’ ‘A minha casinha não deita você abaixo, está a ouvir?!’, disse-lhe eu. Sabes o que é que me respondeu? ‘Não converso com grão-miúdo!’ Mas tu achas que me calei, filho? ‘Sou grão-miúdo, sou. Mas você também não é lá muito alto, oh senhor reitor!’ Não me calei.”
– Mas ainda não me contou é como é que esta casa resistiu às demolições e as outras não?
– Espera, escuta esta primeiro…
Voltamos à Moderna — e à relação “tempestuosa”. Maria Matilde coloca uma mão sobre a testa fazendo sombra nos olhos e aponta com a outra para o que resta dos pavilhões da antiga universidade. “Escuta: houve aí um tempo em que me chegou a casa uma conta de telefone de sessenta e tal euros. É que reclamei logo!… Se não estava em casa, se ninguém entrou em minha casa àquela hora, como é que eu podia ter feito chamadas para a Argentina, o Chile, o Canadá, a Serra Leoa?!… Os tipos lá dos telefones sugeriram-me que pagasse. E que daí em diante não deixasse o telefone em casa quando saísse. Mas queriam o quê? Que fosse trabalhar com o telefone debaixo do braço?! Ora essa! Afinal as chamadas estavam a ser feitas de dentro da universidade, vê lá tu!”
Voltamos às demolições. “Ainda me lembro das negociações entre o reitor e o João Soares – foi acolá ao fundo, de noitinha. Porque é que não meu fui embora? Porque fui teimosa! E porque me reuni, na Rua Castilho, número vinte e tal, com uma engenheira da Câmara [Municipal de Lisboa] e ela é que disse que a casa era Pombalina e que eu ficaria na casa. Quando apanhei aqui o João Soares a negociar disse-lhe o que a engenheira me tinha dito. E ele disse-me que a casa era património municipal e não seria derrubada como as outras. Foi assim.”
A casa de Maria Matilde é pertença da Câmara Muncipal de Lisboa desde 1942, estando desde então arrendada – primeiro aos sogros dela, mais tarde à própria. A autarquia, contactada pelo Observador, não confirmou se a casa é ou não património municipal (uma confirmação que também não chegaria da Direção-Geral do Património Cultural) ou a arquitetura da mesma “Pombalina” – como Maria Matilde alega. Quanto à arquitetura, especialistas do Centro de Investigação em Arquitetura, Urbanismo e Design (CIAUD) da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa garantem “não conseguir identificar traça pombalina no edifico”, aparentando este ter sofrido “várias alterações” ao longo dos tempos.
Mas e a conversa que Maria Matilde diz ter mantido com João Soares, será verdade? Contactado pelo Observador, João Soares diz “não se lembrar de nada”. E explica: “Aquilo era tudo barracas. E havia um muro. A casa ficou porque era engraçadinha. Não sei se era património municipal ou não — nem me lembro tão pouco se a casa era da Câmara [Municipal de Lisboa]. Ai dizem que só não foi derrubada por causa de mim? Olhe: não gosto de me atribuir méritos que não sei se tenho ou não. Mas aquela zona foi toda embelezada e a casa era engraçadinha e ficou. Não me lembro de mais nada. Passaram mais de vinte anos…”.
O isolamento após as demolições não preocupou Maria Matilde. E continua a não preocupar “Isolada? Não me importo nada. Vivi tantos anos isolada com o muro à volta; agora é que estou bem. Quando vim para cá não havia nada, nem casa-de-banho. Só uma pia. Então, estive aqui tantos anos isolada e agora é que me iria embora de rabo alçado só porque não tenho vizinhos?! Nem pensar. Nunca na vida! Mas não estou isolada, filho…”
Então? “Isto é só turistas! Olha acolá mais dois… [aponta para a Avenida da Índia] Os turistas param aqui muito. Tiram-me fotografias. Acho que se pudessem me compravam isto. E acham muitas graça às minhas couves – nunca viram couves tão altas. Também tocam acolá na minha planta de arruda — mas aquilo cheira mal, não toques! É para espantar o mau-olhado. Tenho aqui tudo, não preciso de comprar nada, e aqui me entretenho. Tenho tomates, alfaces, tenho tudo. Tenho tudo aqui plantadinho. Sabes o que é isto? Cheira! É hortelã. É para os cocktails. Esta é hortelã-ananás, esta é hortelã-chocolate.” Mas faz cocktails? “Não. Mas dão-me os pezinhos e, pronto, planto-os.”
Mais recentemente, e depois da Moderna na década de noventa, outra “vizinhança” a sobressaltou. “Quando veio para aqui o hotel, o Palácio do Governador – antigamente era onde os funcionários públicos vinham pagar a providência –, fizeram obras e esteve aqui um fulano a tirar medidas, um engenheiro qualquer. E perguntou-me: ‘A senhora quer sair daqui?’ ‘Você dá-me uma casa, é?!’, respondi-lhe, desconfiada. ‘É que se é para ir para o Restelo, para uma casa pior do que a minha, pegue nas suas botinhas — ele tinha umas botifarras calçadas — e vá você!’ Trabalhei muito no Restelo, lavei roupa e esfreguei escadas – o meu falecido marido era polícia e o ordenado dele não chegava para tudo –, sei bem que aquelas casas para onde me queriam mandar não prestam para nada. E respondeu-me ele: ‘Você é fina…’ ‘Pois sou. Olhe bem para mim: não vê que sou fina?!’”
“O Sousa Cintra quis comprar-me isto, mas não quero sair”
– Sabes, filho: no ano passado, antes da inauguração do hotel, pintaram-me a casa.
– É, a pintura é recente…
– A casa sempre foi cor-de-rosa. Mas estava tudo gasto. É um tapa-olhos, para não estragar a vista dos fregueses do hotel. E ainda tive que ser eu a emprestar a água aos pintores!
– Assim até dá mais gosto viver aqui, não?
– Qual quê! Só pintaram a fachada, lá dentro não me pintaram nada. Mas embora é que não vou!
– Olhe: e os vizinhos de cima?
– Queres falar com a minha vizinha? Eu chamo-a: Fernanda?… OOOOOH FEEER-NAAAN-DA!
Ninguém responde ao chamamento de Maria Matilde. Segue até à porta, sem campainha, e toca, primeiro delicadamente com os nós dos dedos, depois bruscamente com a palma da mão. Abre-se a janela da varanda, não é Fernanda quem de lá surge mas sim Manuel Jesus, 73 anos, o marido. “Oh Manel, este menino quer falar convosco sobre a casa…” Manuel acena afirmativamente. Enquanto desce, Maria Matilde atira: “É Manel como o meu falecido marido. Cresceram os dois aqui. Mas olha que eu desbobino mais do que ele, filho. Sou assim, pronto…”
Grisalho, tez morena e quase avermelhada do sol, entroncado como um antigo boxeur, veste t-shirt e calções, ginga no andar como no trato e apresenta-se de pronto: “Então queres saber mais sobre a casa, é isso? Nasci aqui, pá, nasci aqui. Mas esta casa já era dos meus pais. Há mais de cem anos que eles para aqui vieram morar. À vontadinha mais de cem… Sou mesmo daqui, do Bom Sucesso — até fui diretor do Sport Bom Sucesso e tudo”.
Nunca deixou a casa, mesmo depois de casar com Fernanda, que escuta a conversa da varanda — e vai tagarelando com Maria Matilde. Mas pensa deixar, se nada se alterar. As condições de habitabilidade são, a cada inverno, menores. “Sair daqui? Nunca me falaram em sair. Mas era uma hipótese, sim. É que a casa já não tem condições para viver. Isto foi pintado, é verdade, mas é só a fachada. Lá dentro tenho a casa cheia de humidade, com tudo a cair. Ninguém faz nada por mim – e a verdade é que eu, com a idade que tenho, com a pouca reforma que tenho, e ainda por cima a sofrer como sofro da coluna, não posso andar a subir e descer escadotes e não consigo fazer nada. Olha aqui, pá… [entreabre a porta] Assim que chove, basta chover um bocadinho de nada, fica tudo [esmalte da parede] neste estado, tudo a cair. Tenho um pedido desde 2014 na Junta de Freguesia de Belém, um pedido para me repararem a casa, para isolarem isto e coiso e tal. E nada. Mas gosto de viver cá, claro que gosto. É aqui que tenho as pessoas com quem me dou.”
A vizinhança foi-se a pouco e pouco, sobretudo após a chegada da Universidade Moderna. “Saudades? Oh se tenho saudades! Como tenho saudades da minha meninice, dos meus amigos da meninice. Como é que isto era antigamente? Era muro a toda a volta. Isto aqui [aponta para o hotel] era a escola dos pescadores, onde aprendiam para depois ir para a pesca do bacalhau. Depois os pescadores da escola faziam os exercícios na Doca do Bom Sucesso. Era onde aprendiam a remar e tudo isso. Porque é que havia muro? Não sei, não sei. Por causa da rainha [Isabel II]? Não sei. Mas que havia miséria para tapar, havia. Lembro-me que o meu pai saltava o muro. Fez uns buraquinhos no muro, uma espécie de escada, e saltava para não ter que dar a volta. Onde agora é a Moderna era tudo horta. Aqui em frente é que havia uma casa ou outra. Depois, até onde é o CCB, era tudo zona industrial – havia empresas de conservas, uma fábrica de borracha, uma fábrica de redes e pesca, uma empresa de mecânica. O Lagoa Henriques — era escultor, não era? — também tinha aí o atelier dele, naquele prédio verde lá ao fundo. E esta casa lá se foi aguentando, pronto.”
Porquê? “Quando veio para aqui a Moderna derrubaram tudo mas a casa aguentou-se. E aguentou-se porque o João Soares não deixou que derrubassem a casa. Ouvi-o dizer: ‘Derrubem tudo mas esta casinha não!’ Acho que é porque é antiga e coiso e tal. Quando os tipos da demolição chegaram fui ter com eles e disse-lhes: ‘Se vocês derrubam a minha casa vão ter problemas com o Soares!’ E não derrubaram.”
– Não queres subir? Sobe e conversamos lá em cima…
Depois de subir uma estreita escadaria, entra-se em casa, toda em tons de rosa, quase fluorescente e que fere a vista, divisão por divisão, sala, quarto, casa-de-banho, em todas elas com o rosa a ser escurecido pela humidade nos tetos. “Está tudo assim, vês? O que é que um gajo pode fazer?… Nada.”
Paga “sessenta e tal euros” de renda. “É pouco. Toda a gente acha que é pouco. Mas a minha reforma e a da minha mulher não dá para mais. Mas até admitiria pagar mais qualquer coisinha – desde que me fizessem obras, obviamente. A gente fazia o sacrifício e pagava. Assim é que não. Mas a casinha é um sucesso. A minha Fernanda deve ter corrido o mundo todo! Nem queiras saber. Os turistas chegam aqui e o que querem é tirar fotografias com a minha mulher à varanda, às vezes com a roupa estendida e tudo. ‘Posso?’, lá perguntam eles em inglês. ‘Oh homem, tire à vontade!…’, responde ela. Às vezes até é ela que os ajuda a saber que elétrico apanhar”, conta Manuel de enfiada, sentado ao lado da mulher na sala. Fernanda só acena.
– Corre as cortinas, Manel! Olha o pó a entrar todo, Manel!
– Não vês que estou a falar com o senhor, Fernanda?! Bem…
“Aqui onde estamos era o meu quarto quando era puto. Meu e de catorze irmãos”, atira, e prossegue: “Éramos catorze irmãos, todos criados aqui. O mais velho morreu-nos no mar. Como é conseguíamos? Quando se quer tudo se faz. Chegámos a dormir no chão, encolhidos, encostados uns aos outros. Quando era hora de comer, tinha que ser à vez, comiam uns, depois os outros. Não sei de quem foi a casa antes. O que sei é que antes de os meus pais viverem aqui isto existia mas estava fechado. O meu pai era estivador. Mas às vezes para ganhar mais uns tostões ia com os barcos para a pesca. Uish, tenho tantas histórias de pesca…”
– Oh Manel, os senhores têm mais que fazer!
– Pois, ‘tá bem… Queres ouvir, pá? Eu conto-te…
“Às vezes vinha da escola, aqui em Pedrouços, e fazia recados aos pescadores. Vinha comprar-lhes o azeite, o pão, o vinho. Eles faziam caldeiradas de peixe e deixavam-me comer no final. É engraçado. Mas isto não era nada como é hoje, pá. Tu nem vais acreditar, mas é verdade: foi na Torre de Belém que aprendi a nadar, pá. Aquilo era tudo praia até aqui à Doca do Bom Sucesso. Certo dia, era eu criança, um galeão ficou aqui encalhado no Tejo, mesmo em frente à praia. A gente tirava as cortiças das redes dos pescadores, enrolávamos à volta da cintura, e íamos a nadar até ao galeão. E depois ficávamos lá em cima, a apanhar sol. Que saudades!…”
– Olha o pó, Manel!
– Fernanda: estou a conversar! Posso?!
“É como te digo, pá: só se não melhorar nada é que me vou embora. Tenho muito amor à minha casinha. Se isto melhorasse queria acabar a minha vida aqui. Sou daqui, pá. Fui gráfico no jornal Sport Ilustrado – que era aqui onde é a Moderna. Mas com onze anos já vendia pão em Algés. Aos catorze anos fui carpinteiro em Santo Amaro – até perdi aqui um bocadinho do dedo numa máquina de alisar. A seguir fui para o Ultramar, para a Guiné. Voltei. Também joguei à bola no Belenenses – joguei com o Quaresma, o Bernardino, o Albino, o Cardoso, o Godinho, joguei com o Fernando Peres que depois até jogou no Sporting. O meu clube? Não é o Belenenses, não; é o Benfica. Mas do coração, do coração sou do Bom Sucesso.”
[Fernanda atende o telefone: “‘Tou, filha? Ele ‘tá aqui a dar uma entrevista… Choveu? Oh se choveu…”]
“O melhor é a gente ir descendo e conversamos lá em baixo”, sugere. É difícil sair da exígua casa de Manuel e Fernanda. Primeiro atravessa-se o estreito corredor que vai da sala até à cozinha, desde a cozinha abre-se a porta da rua, saindo depois para o exterior. “Sabes, pá, esta casa vale muito carcanhol… Vou-te contar outra coisa engraçada que me aconteceu: certo dia estou aqui à varanda da casa e vem um senhor ter comigo. E pergunta-me logo, de ‘caras’, se queria vender-lhe a casa. Disse-lhe assim: ‘Eu conheço-o! Você é fulano tal…’ E disse erradamente o nome de um antigo presidente do Sporting.” Mas quem era? “Calma! Eu conto… ‘Não, não, não sou esse fulano, sou o Sousa Cintra!’, responde-me ele. Queria comprar-me a casa, o Sousa Cintra queria comprar-me a casa. Disse-lhe que não, que não queria sair daqui e que a casa não era minha, era da Câmara. Isto foi agora há pouco tempo, nem há um ano.”
O Observador tentou contactar Sousa Cintra, mas tal não foi possível.