Nelson Mandela nasceu em 1918. Foi detido em 1962 e permaneceu na prisão durante 27 anos, 10052 dias. O advogado, presidente do partido ANC (African National Congress), foi sempre uma voz ativa contra o regime do Apartheid, que instaurou a segregação racial na África do Sul. Defendeu as suas posições antes de ser preso e assim continuou, mesmo a partir da prisão. As cartas que escreveu, para familiares, amigos, companheiros de luta e autoridades sul africanas foram o instrumento mais importante que utilizou.
A propósito dos cem anos que Nelson Mandela faria neste 18 de julho de 2018, foi publicado “As Cartas da Prisão de Nelson Mandela”, livro que reúne 255 destas cartas. O Observador publica três, escritas em momentos diferentes com destinatários diferentes, que revelam acima de tudo como Mandela alimentava a intimidade familiar a partir da prisão.
23 de junho de 1969
Para Winnie Mandela, mulher
“Meu amor,
Um dos bens mais preciosos que tenho aqui é a tua primeira carta, de 20 de dezembro de 1962, pouco depois da minha primeira condenação. Ao longo destes seis anos e meio tenho-a lido repetidas vezes e os sentimentos que ela exprime são ouro e tão frescos como no dia em que a recebi. Com as tuas aspirações e perspetivas e o papel que tens desempenhado na atual luta de ideias, sempre soube que mais tarde ou mais cedo havias de ser presa. Contudo, considerando tudo por quanto tenho passado, acalentava uma vaga esperança de que essa calamidade fosse sendo protelada e que serias poupada à desgraça e às misérias da vida na prisão. Assim, quando me chegou a notícia da tua detenção no dia 17 de maio, a meio da minha preparação febril para os exames finais, para os quais faltavam apenas 25 dias, não estava preparado e senti-me gelado e muito só. Que estejas livre e te possas deslocar, mesmo com limites, significa muito para mim. Esperei ansiosamente as tuas visitas e as dos membros da família e amigos, que organizavas com a tua característica competência e entusiasmo, o adorável aniversário, o aniversário de casamento e os cartões de Natal que nunca deixaste de enviar, e o dinheiro que apesar das dificuldades sempre tens conseguido arranjar. O que tornou essa desgraça ainda mais dilacerante foi o facto de me teres visitado pela última vez no dia 21 de dezembro e eu estar à tua espera no mês passado ou em junho. Esperava também a tua resposta à minha carta de 2 de abril, na qual falava na tua doença e fazia algumas sugestões.
Depois de receber a notícia, as minhas faculdades parecem ter deixado de funcionar por algum tempo e refugiei-me instintivamente na tua carta como sempre fiz quando me faltava o ânimo ou queria afugentar pensamentos incómodos:
«A maioria das pessoas não sabe que a tua presença física nada significaria para mim se os ideais aos quais tens devotado a tua vida não se concretizassem. Viver na esperança é o que de mais maravilhoso existe. O breve período que vivemos em conjunto, meu amor, foi sempre carregado de expectativas. (…) Nestes anos febris e violentos, aprendi a amar-te ainda mais do que antes. (…) Não há nada mais valioso do que fazer parte da construção da história de um país.»
Estas são apenas algumas das pérolas que esta maravilhosa carta contém, e depois de a reler em 17 de maio senti-me uma vez mais no topo do mundo. As desgraças estão sempre a acontecer, deixando as suas vítimas inteiramente alquebradas ou fortalecidas e mais capazes de encarar a próxima vaga de desafios que podem ocorrer. É precisamente neste momento que deves recordar que a esperança é uma arma poderosa e que não há nenhum poder na terra que possa roubá-la, e de que nada existe de tão valioso como fazer parte da história de um país. Os valores perenes da vida em sociedade e do pensamento não podem ser criados por pessoas indiferentes ou hostis às verdadeiras aspirações de uma nação. Por alguma razão, os que são desprovidos de alma e de sentido de orgulho nacional e de vontade de vencer não podem ser humilhados nem derrotados; não conseguem criar uma herança nacional, não são inspirados por nenhuma missão sagrada e não dão origem a mártires nem a heróis. Um mundo novo não será conquistado por aqueles que permanecem à distância, de braços cruzados, mas por aqueles que vão à luta, cujas vestes são rasgadas pelas tempestades e cujos corpos são mutilados no decurso da contenda. A honra pertence àqueles que nunca abandonam a verdade, mesmo quando tudo é negro e sinistro, que tentam uma e outra vez, que não se deixam desencorajar pelos insultos, pelas humilhações e pela própria derrota. Desde os alvores da história que a humanidade tem honrado e respeitado os corajosos e os honestos, homens e mulheres como tu, meu amor – uma jovem que oriunda de uma aldeia que é quase não aparece nos mapasi, esposa de um kraal dos mais humildes mesmo pelos padrões dos camponeses.
A minha devoção para contigo não permite dizer mais em público do que já disse nesta nota, que irá passar por muitas mãos. Um dia havemos de ter a privacidade que nos permita partilhar os ternos pensamentos que temos conservado ocultos nos nossos corações durante os últimos oito anos.
Em devido tempo serás acusada e possivelmente condenada. Sugiro que discutas o assunto com Niki logo que fores acusada e que tomes as providências necessárias para obter dinheiro para estudo, vestuário, compras de Natal e outras despesas pessoais. Tens também de combinar com ela para que te mande, assim que fores condenada, fotografias com moldura de pele adequada. Por experiência própria, sei que uma fotografia da família é tudo quanto necessitamos quando estamos na prisão e devemos tê-la desde o primeiro momento. Da minha parte, terás todas as minhas cartas mensais, meu amor. Escrevi uma longa carta a Zeni e a Zindzi, ao cuidado de Niki, a explicar a situação, na tentativa de as manter informadas e animadas. Só espero que tenham recebido a minha carta anterior, de 4 de fevereiro. No mês passado escrevi à mamã, em Bizana, e a Sidumo. Este mês vou escrever a Telli e ao tio Marsh. Não tive notícias de Kgatho, Maki, Wonga, Sef, Gibson, Lily, Mthetho e Amina, a quem escrevi entre dezembro e abril.
Foi possível escrever esta carta por amável autorização do Brig. Aucamp, e tenho a certeza de que fará tudo para te ajudar se responderes a esta carta enquanto ainda estiveres detida. Se conseguires, por favor confirma se recebeste a minha carta de abril. Entretanto, quero que saibas que penso em ti a todos os momentos do dia. Boa sorte, minha querida. Um milhão de beijos e toneladas de amor.
Devotadamente, Dalibunga”
29 de setembro de 1969
Para Nolusapho Irene Mkwayi, mulher do companheiro de cárcere Wilton Mkwayi
“Nossa cara Nolusapho,
Fui tocado pela comovente mensagem de condolências que me mandou por ocasião da morte do meu filho mais velho, Thembi. Tanto o texto impresso do cartão de pêsames como os sentimentos que descreveu ao lado desse texto foram singularmente apropriados e muito fizeram para me animar.
Recebi a trágica notícia a 16 de julho, e seis dias mais tarde requeri ao Oficial Comandante permissão para comparecer no funeral, a expensas minhas e com ou sem escoltai . Acrescentei que, se Thembi já tivesse sido sepultado quando o meu pedido fosse recebido, gostaria de ser autorizado a visitar a sua campa a fim de «colocar a pedra» (ukubek’ilitye), a cerimónia tradicional reservada aos que não estiveram presentes no funeral.
Dez meses antes tinha apresentado um pedido semelhante, quando a minha mãe morreu, e embora nessa ocasião as autoridades tivessem assumido uma atitude rígida e recusado aquilo que eu considerava em qualquer circunstância um pedido razoável, nem por isso deixei de acalentar a esperança vaga de que desta vez a morte tão próxima de duas pessoas de família poderia induzir as autoridades a dar-me a única oportunidade na vida de prestar uma última homenagem a Thembi. No pedido escrito referi expressamente o facto de me ter sido negada a possibilidade de estar junto da campa quando a minha mãe foi sepultada e sublinhei que a aprovação deste pedido seria um gesto generoso da parte deles que muito me sensibilizaria. Chamei a atenção para o facto de ter visto Thembi pela última vez há cinco anos e expressei a minha esperança de que compreenderiam a minha ansiedade para estar presente no funeral.
Sabia perfeitamente que, há 30 anos, os ingleses tinham aprisionado um famoso combatente da liberdade numa das colónias, um homem que mais tarde veio a ser primeiro-ministro, quando o seu país se tornou independente, em 1947. Ele estava na prisão quando a saúde da mulher piorou e se tornou necessário para ele acompanhá-la à Europa para receber tratamento médico.
O imperialismo britânico trouxe sofrimentos e desgraças indizíveis a milhões de pessoas por todo o mundo, e quando se foram embora, os ingleses deixaram atrás de si países saqueados e povos condenados a muitos anos de miséria, fome, doença e analfabetismo. Esse período é um capítulo negro na história britânica, pelo qual muitos historiadores têm justamente censurado a Grã-Bretanha. Por outro lado, os ingleses são amplamente reconhecidos, tanto por amigos como por inimigos, pela sua largueza de vistas e pela abordagem sensível aos problemas humanos, pelo seu profundo respeito pelos homens que estão prontos a sacrificar a vida por uma causa justa. Muitas vezes, no decurso de confrontos políticos com dirigentes de movimentos nacionalistas das suas antigas colónias, foram capazes de tratar os transgressores políticos com humanidade e de lhes prestar auxílio genuíno e substancial sempre que necessário. Assim, quando o político acima referido foi confrontado com o problema da doença da mulher, os ingleses libertaram-no para que pudesse deslocar-se ao estrangeiro. Infelizmente, a mulher morreu depois de chegar à Europa e o homem, angustiado, regressou ao seu país para cumprir o resto da pena. É o que se espera de um governo esclarecido no tratamento dos seus cidadãos e foi assim que o governo britânico reagiu a um pedido formulado em termos compassivos por um opositor político, já lá vão mais de 30 anos.
Tanto no caso da minha falecida mãe como no de Thembi, fui confrontado não com o problema da doença, mas com o da morte. Não pedi autorização para me deslocar ao estrangeiro, mas a outra região do meu país que se encontra sob a vigilância de uma poderosa e experiente Força de Segurança. No caso de Thembi, o meu pedido foi simplesmente ignorado e nem sequer tiveram a gentileza de acusar a sua receção. Um pedido posterior para obter cópias dos relatos da imprensa sobre o acidente fatal foi recusado, e até agora não tenho informações fidedignas sobre a maneira como Thembi morreu. Os meus esforços no sentido de obter os serviços de um advogado para investigar a questão da responsabilidade legal pelo acidente e das possíveis indemnizações daí decorrentes, não tiveram êxito. Não só fui privado de ver pela última vez o meu filho e amigo e orgulho do meu coração, como sou mantido na ignorância de tudo quanto lhe diz respeito.
No dia 6 de setembro recebi um relato sobre os assuntos da minha casa que muito me perturbou. A minha sobrinha Nomfundo, que ainda é adolescente, vive virtualmente sozinha em casa e creio que a senhora que lá costumava ficar depois da detenção de Zami se assustou e se foi embora. Esta indiferença deixou-me atónito e veio reabrir as feridas que as terríveis mãos da morte me infligiram no coração.
A sua mensagem tem de ser vista à luz destes factos, dos obstáculos e das frustrações que me rodeiam. Felizmente, os muitos amigos que tenho, tanto aqui como fora da prisão, cobriram-me de mensagens de compreensão e encorajamento e o pior já passou. Entre essas mensagens conta-se a sua, Nolusapho, mulher dos Amagqunukhwebe, os filhos de Kwane, Cungwa, Pato e Kama. Quero que saiba que muito apreciei a sua maravilhosa mensagem. Embora ainda não tenha tido o privilégio de a conhecer, tenho de si a imagem de alguém que ama genuinamente o seu povo e que coloca sempre a felicidade e o bem-estar dos outros acima do seu. Que tenha conseguido enviar-me essa mensagem apesar do seu estado de saúde e problemas pessoais diz muito mais a seu favor do que quaisquer palavras. Desejo-lhe sinceramente uma recuperação rápida e total.
Muito obrigado pelo encantador cartão de Natal que me enviou, juntamente com Nomazotsho. Muito amor e cumprimentos a Georgina, Nondyebo, Beauty, Squire e Vuyo.
Sinceramente seu,
Nelson”
1 de março de 1981
Para Zindzi Mandela, a filha mais nova
[Escrita com outra letra, censurada a carta original 10.2.81]
“466/64; Nelson Mandela
Minha querida,
A prisão, especialmente para quem se encontra numa cela individual, faculta muitos momentos de reflexão sobre numerosos problemas, demasiados para serem postos no papel. Muitas vezes, quando me levanto na pequena cela ou quanto me estendo na cama, o meu espírito vagueia para longe, a recordar este episódio e aquele erro. Entre estes está o pensamento se nos meus melhores dias fora da prisão terei demonstrado suficiente apreço pelo amor e pela ternura de muitos que me são queridos e que me ajudaram quando era pobre e me debatia com dificuldades.
Um dia destes estava a pensar nos Xhomas, do 46 da 7th Avenue, em Alexandra Township, onde vivi quando cheguei a JHB. Nesse tempo ganhava 2 libras por mês (4 rands) e desse montante tinha de tirar dinheiro para a renda de 13 xelins e 4 dinheiros, mais as passagens de autocarro de 8 dinheiros por dia para ir e vir da cidade. Era difícil, e muitas vezes tive dificuldade em pagar a renda e os bilhetes de autocarro. Mas o senhorio e a mulher eram simpáticos. Não só me deixavam pagar a renda mais tarde como aos domingos me ofereciam um suculento almoço gratuito.
Fiquei também com o reverendo Mabuto, da Igreja Anglicana, no 46 da 8th Avenue, também em Alexandra, e tanto ele como Gogo, como chamávamos com ternura à mulher dele, eram também muito amáveis, embora ela fosse bastante rígida e fizesse questão de que eu só saísse com raparigas de etnia xossa. Embora as minhas ideias políticas ainda estivessem em formação, Healdtown e Fort Hare tinham-me posto em contacto com alunos de outras secções do nosso povo e pelo menos já conseguia pensar para além das linhagens étnicas. Estava decidido a não seguir o conselho dela nesse domínio. Mas tanto ela como o marido desempenharam maravilhosamente o papel de meus pais.
O Sr. Schreiner Baduza, que era de Sterkspruit, vivia como inquilino no 46 da 7th Avenue. Ele e o Sr. J.P. Mngoma, embora fossem muito mais velhos do que eu, especialmente o último, contavam-se entre os meus melhores amigos desse tempo. O Sr. Mngoma era proprietário, e pai da tia Virginia, uma das amigas da mamã. Mais tarde fui apresentado ao Sr. P. Joyana, sogro do irmão do falecido Chefe Jongintaba Mdingi. Era escriturário na Rand Leases Mine. Eu ia lá ao sábado buscar as rações deles – papas grossas de milho, arroz, farinha de milho, carne, amendoins e outros produtos.
Muito mais tarde, a minha situação financeira melhorou ligeiramente, mas pouco pensei naqueles que tinham estado ao meu lado nos tempos difíceis, e só os visitei uma ou duas vezes. Tanto os Mabutos como os Baduzas vieram mais tarde viver para o Soweto, e estive com os Mabutos em várias ocasiões. Encontrei-me por diversas vezes com os Srs. Joyana e Baduza, mas nem uma vez me lembrei de lhes retribuir as gentilezas. Andavam ambos pelos quarenta e muitos ou cinquenta e poucos anos, o Sr. Baduza era uma figura destacada nos assuntos cívicos do Soweto, e o nosso relacionamento era a esse nível.
Um dia, em princípios de 1953, fiquei muito transtornado quando a Velha Senhora Xhoma, outrora uma mulher bela e muito dinâmica, me apareceu no gabinete de Chancellor House, alquebrada pela idade. O velhote já tinha morrido e ela queria que eu liquidasse as propriedades. Eu mal tinha sabido da doença dele, para não falar na morte e no funeral, um acontecimento que não tinha o direito de ignorar.
Até para a minha Velha Senhora tão amada não tive as atenções que devia ter tido. Raramente lhe escrevia, exceto para tentar convencê-la a vir viver connosco em J.H.B. Há muitos outros exemplos que te podia dar, estes são apenas uma amostra.
A minha detenção por traição em 5/12/56 e o longo processo que se seguiu pioraram a situação. À minha volta, o mundo desmoronou-se literalmente, deixei de ganhar dinheiro, e muitas obrigações não puderam ser honradas. Só a entrada em cena da mamã é que ajudou a pôr um pouco de ordem nos meus assuntos pessoais. Mas até para ela o caos tinha ido demasiado longe para que eu conseguisse recuperar a estabilidade e a vida sem problemas que tinha começado a saborear quando a infelicidade me bateu à porta.
São estas as coisas que me ocupam o espírito quando me recordo dos meus dias na Cidade do Ouro. Contudo, tudo isto se desvanece quando penso na mamã e nos meus filhos, no orgulho e na alegria que me proporcionam. Entre nós temos Nobutho, a bela Mantu, cujo amor e lealdade, visitas, cartas, cartões de Natal e de aniversário são uma parte essencial dos esforços da família para me ajudar a aguentar muitos dos desafios das duas últimas décadas. Nobutho é capricórnio e, segundo os astrólogos, as estrelas do mês passado deixam antever um tempo de felicidade e excitação que aguarda os nativos do capricórnio; vais receber muitas visitas e muitos convites e a tua saúde será excelente. É uma superstição cuidadosamente elaborada e apresentada de modo atraente. Tem fascinado a humanidade desde os primórdios da história, e chegou a guiar os atos de pessoas que nela acreditavam e que acabaram por se distinguir em muitos domínios. Muitos capricórnios devem sentir-se lisonjeados quando leem essas previsões fantasiosas. Mas deixemos as superstições e fechemos esta nota com uma observação baseada em factos. É esta a minha mensagem para ti, minha querida – a tua capacidade para apreciar o amor e a afabilidade dos outros. É uma virtude preciosa, fazer o possível para que os outros se sintam felizes e esqueçam as suas agruras. É uma qualidade que tu e Zeni parecem ter herdado da mamã. O meu desejo é que se venha a aprofundar à medida que vão crescendo, para que mais pessoas possam beneficiar dela. Muito amor para ti, para Oupa e para Zobuhle.
Afetuosamente, Tatav”
De “As Cartas da Prisão de Nelson Mandela”, de Nelson Mandela. Copyright © 2018 by the Estate of Nelson Rolihlahla Mandela and the Nelson Mandela Foundation; publicado em Portugal pela Porto Editora