Eva Kaili, a agora ex-vice-presidente do Parlamento Europeu — depois de ser destituída do cargo, no sábado —, tornou-se a cara de um dos maiores escândalos de corrupção no seio da instituição comunitária. Kaili, antiga apresentadora de televisão e ex-deputada eleita pelo PASOK para o parlamento grego antes de chegar a Bruxelas, é suspeita da prática dos crimes de branqueamento de capitais, corrupção e de participar numa organização criminosa. com o intuito de fazer lóbi a favor do Qatar. Contudo, não terá agido sozinha: contava com uma extensa rede que integrava membros da sua família, como o pai ou o namorado italiano, que também era assessor no mesmo organismo da União Europeia em que a companheira trabalhava e na qual assumia altas funções desde o início deste ano.
A alegada rede — com impacto em vários países, entre a Bélgica, França e a Grécia — terá sido desmantelada na passada sexta-feira, culminando numa série de detenções a figuras com peso político e técnico no Parlamento Europeu. mas não só: Eva Kaili é o rosto mais reconhecível dessa rede. Foi detida na sexta, com a procuradoria belga a referir-se a às suspeitas de que “membros políticos e/ou estratégicos dentro do Parlamento Europeu receberam largas quantias de dinheiro ou ofertas substanciais para influenciar decisões” dentro do organismo.
Logo a seguir, surgiram novos nomes, reforçando o cenário de uma teia familiar a operar dentro e fora do Parlamento Europeu: além de Kaili, foi também detido o seu companheiro, Francesco Giorgi; o nome de Alexandros Kailis, pai de Eva, também constava da lista de detidos (ainda que viesse a ser libertado mais tarde, ao contrário do que aconteceu com a filha e com o genro, que só esta quarta-feira deverão ficar a saber se ficam em liberdade condicional ou se continuarão detidos enquando a investigação decorre).
Segundo avançaram alguns meios de comunicação europeus, apesar de a vice-presidente do Parlamento Europeu ser o principal rosto da teia familiar, seria Francesco o cabecilha da operação que recolheria subornos em troca de uma operação de limpeza da imagem qatari em Bruxelas — uma versão que as autoridades do país negam em absoluto. Há quase década e meia nos corredores de Bruxelas e Estrasburgo, Francesco Giorgi era atualmente assessor de um outro eurodeputado e dedicava-se às áreas de Política Externa e nos Direitos Humanos.
O companheiro de Eva foi um dos fundadores da Organização Não Governamental (ONG) Fight Impunity e era bastante próximo do atual presidente da instituição — o ex-eurodeputado italiano Pier Antonio Panzeri, que também terá sido detido. Pelo meio, há ainda outra ligação familiar: a mulher de Panzeri, Maria Colleoni, também acabou detida em Itália, tal como a filha do casal, Silvia Panzeri, ambas no âmbito do cumprimento de um mandato de prisão europeu.
Na sequência das buscas realizadas pelas autoridades belgas, a Justiça helénica confiscou os bens detidos pelos vários membros da família envolvidos no caso. Perante a suspeita de que esses bens poderiam ter origem em atos criminosos, as autoridades gregas — em concreto, a Autoridade de Combate Contra o Branqueamento de Capitais de Atenas — determinaram o congelamento dos bens.
Francesco Giorgi: a imobiliária e as acusações de Eva Kaili
Descrito pela correspondente do Corriere della Sera como um homem “bonito”, mas também “ligeiramente arrogante”, Francesco Giorgi já anda pelos corredores do Parlamento Europeu desde fevereiro de 2009. Entusiasta de vela e de pesca, o assessor parlamentar, que se dedicava a temas do Médio Oriente e do Magreb, terá sido quem organizou esta complexa teia.
Ao que apurou a CNN grega, Eva Kaili manifestou-se surpreendida pelas ligações do namorado ao Qatar e disse desconhecer as alegados ações de lóbi que seriam organizadas pelo companheiro a favor do país do Médio Oriente. Garantindo ser inocente, a ex-vice-presidente do Parlamento Europeu salientou que as acusações feitas contra si “caíram do céu”.
Certo é que as autoridades gregas responsáveis por denunciar esquemas de lavagem de dinheiro revelaram, esta segunda-feira, que Eva Kaili e o namorado fundaram uma imobiliária há menos de um mês, associando a criação dessa empresa ao esquema de lavagem de dinheiro proveniente do Qatar. A imobiliária está agora a ser alvo de investigação e foi encerrada por ordem da Autoridade de Combate ao Branqueamento de Capitais grega.
O pai apanhado com uma mala com 650 mil euros
Alexandros Kailis não ocupou nenhum cargo no Parlamento Europeu, mas também é suspeito de estar envolvido nesta teia familiar. Engenheiro mecânico que ocupou um cargo de relevo na administração pública — foi ex-diretor-geral de Transportes e Comunicações da região da Macedónia Central —, o pai de Eva Kaili foi apanhado em flagrante pelas autoridades na passada sexta-feira.
A polícia belga deteve-o quando se preparava para fugir para a Grécia. Tinha na sua posse uma mala com um recheio de 600 mil euros em dinheiro, alegadamente provenientes do esquema de corrupção em que está envolvida a filha e as autoridades qataris.
Não foi o único montante descoberto relacionado com o Qatargate, na sequência das buscas em residências e nos escritórios do edifício que acolhe o hemiciclo e os gabinetes dos deputados em Estrasburgo. De acordo a Euronews, a polícia belga encontrou mais 150 mil euros em malas de luxo no apartamento de Eva Kaili e do namorado em Bruxelas. O mesmo valor foi encontrado num apartamento de um eurodeputado na capital belga.
Feitas as contas, até ao momento, foram descobertos 900 mil euros suspeitos de relacionados com o escândalo do “Qatargate”.
A “dor” da irmã — e cujos bens também foram apreendidos
A família de Eva Kaili tinha-se mantido em silêncio até esta segunda-feira, dia em que a irmã decidiu pronunciar-se. Citada pela imprensa grega, Mantalena Kaili disse tratar-se de uma “situação dolorosa e inédita”. “Conhecendo a moral e a personalidade da minha irmã, não consigo acreditar nas acusações que lhe são veiculadas. Não correspondem à realidade.”
“A justiça julgará e respeitaremos a sua decisão”, afirmou ainda Mantalena Kaili, pedindo “respeito” pelo bom-nome da irmã, assim como o “apoio dos cidadãos gregos”.
Não obstante, a Justiça grega também apreendeu os bens de Mantalena Kaili, diretora-executiva da ELONtech — uma organização não governamental, com sede em Bruxelas, focada no impacto das leis aplicadas às novas tecnologias na sociedade, como é o caso das cripmoedas. Até ao momento, as autoridades não relacionaram o nome da irmã de Eva Kaili com o Qatargate.
As investigações vão agora prosseguir com duas garantias dadas pela presidente do Parlamento Europeu: a primeira, garantiu Roberta Metsola, é que a organização “não está a atirar nada para debaixo do tapete”; a segunda garantia é a de que “não haverá impunidade” para os possíveis culpados.
As ondas de choque de um dos maiores escândalos de sempre na política europeia
As primeiras notícias foram conhecidas ainda na sexta-feira, quando à informação das detenções se foi somando um e outro nome de suspeitos envolvidos no “Qatargate”. Três dias depois, o centro da política da União Europeia ainda fervilhava com os impactos da detenção de Eva Kaili, dos seus familiares e da implicação de outros nomes — com maior ou menor grau de participação — no alegado esquema de lobbying do país do Médio Oriente. E com a reação dos principais dirigentes europeus.
Um “ataque” à “democracia europeia”, reagiu Roberta Metsola já esta segunda-feira. Entre a tentativa de estancar eventuais aproveitamentos políticos deste caso e a missão de mostrar total colaboração com a investigação judicial em curso, a presidente do Parlamento Europeu assumiu estar a viver “os dias mais longos” da sua carreira política.
E, apesar de garantir estar a medir cada palavra em nome da presunção da inocência de todos os envolvidos, Metsola acusou os “atores malignos” envolvidos no escândalo de “instrumentalizar indivíduos e membros [da instituição] para os seus planos malévolos”. Contudo, acredita, “os seus planos falharam”. E, já numa mensagem para dentro do hemiciclo europeu, concluiu: “Não haverá impunidade.”
Numa altura em que Eva Kaili já tinha sido suspensa preventivamente das suas funções como vice-presidente do Parlamento Europeu, e depois de ser afastada do grupo político dos Socialistas e Democratas europeus, também a presidente do Conselho Europeu disse estarem em causa suspeitas “muito graves” contra um das mais altas figuras da política europeia.
“As alegações contra a vice-presidente do Parlamento Europeu suscitam a maior preocupação, são muito graves. Está em causa a confiança das pessoas nas nossas instituições. E esta confiança nas nossas instituições exige elevados padrões de independência e integridade”, sustentou Ursula von der Leyen, lembrando a sua própria proposta, apresentada em março deste ano, para “a criação de um órgão de ética independente que abranja todas as instituições da União Europeia”.
“É uma questão de transparência, de regras muito claras, e todas as instituições europeias devem obedecer às mesmas regras que estabelecermos”, defendeu von der Leyen.