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“Quem é que abraça o meu corpo”

De Canções (1921)

Quem é que abraça o meu corpo
Na penumbra do meu leito?
Quem é que beija o meu rosto,
Quem é que morde o meu peito?
Quem é que fala da morte
Docemente ao meu ouvido?
— És tu, senhor dos meus olhos,
E sempre no meu sentido

“Anda, vem…, porque te negas”

De Canções (1921)

Anda, vem…, porque te negas,
Carne morena, toda perfume?
Porque te calas,
Porque esmoreces,
Boca vermelha, — rosa de lume?

Se a luz do dia
Te cobre de pejo,
Esperemos a noite presos num beijo.

Dá-me o infinito gozo
De contigo adormecer
Devagarinho, sentindo
O aroma e o calor
Da tua carne, meu amor!

E ouve, mancebo alado:
Entrega-te, sê contente!
— Nem todo o prazer
Tem vileza ou tem pecado!

Anda, vem!… Dá-me o teu corpo
Em troca dos meus desejos…
Tenho saudades da vida!
Tenho saudade dos teus beijos!

“Bebe mais vinho”

De Curiosidades Estéticas (1924)

Bebe mais vinho
E põe
Mais ruge
Na tua boca delgada;
E fuma,
E cai no brocado azul
Desta enorme almofada.

Tens, por vezes,
Um sorriso
Desenhado com tamanha segurança
— Como de quem tudo sonda,
Tudo alcança…

Cigarros? Pronto, amor: — aqui os tens!

Dizes-me adeus? E porquê?

Quando voltas? Quando vens?

“Conversando a sós contigo”

De Piquenas Esculturas (1925)

Conversando a sós contigo,
Desfruto o prazer imenso
De não pensar no que digo
E de dizer o que penso.

E mais uma vez
Afirmo
Sem receio de que seja desmentido:
— A maior felicidade
É ser-se compreendido.

“Venham ver a maravilha”

De Ciúme (1934)

Venham ver a maravilha
Do seu corpo juvenil!

O sol encharca-se de luz,
E o mar de rojo tem rasgos
De luxúria provocante.

Avanço. Procuro olhá-lo
Mais de perto… A luz é tanta
Que tudo em volta cintila
Num clarão largo e difuso…

Anda nu — saltando e rindo,
E sobre a areia da praia
Parece um astro fulgindo.
Procuro olhá-lo; — e os seus olhos,
Amedontrados, recusam
Fixar os meus… — Entristeço…

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Mas nesse olhar fugidio —
Pude ver a eternidade
Do beijo que não mereço.

“Esta música dolente”

De Ciúme (1934)

Esta música dolente
Do tango argentino —
Onde paira,
Esfarrapado,
Aquele beijo sensualíssimo, nervoso,
Trocado no desatino
Da nossa indecisão de amar, —
Esta música batida
Pela tristeza dos ermos,
Agora,
Faz-me chorar.

Deixa-me ouvi-la. Não danço.
Dança com outro. A vida é assim…
Ciúme? Não sei senti-lo.
— Tu tens ciúme de mim?

Trocávamos um beijo apenas
No silêncio de uma tarde
Sentados à beira-mar;
— E um beijo não é bastante
Para dizeres ao mundo
Que sou o teu amante.

Dança com outro.

Podes até envolvê-lo
Na carícia negra
Que tomba das tuas mãos
Quando com elas afagas
Os meus cabelos
E a minha fronte vincada.

Dança com outro.

Eu fico a vê-los e a aplaudir
Os movimentos do teu corpo
— Que mais parece um punhal
Do meu Álcácer-Kibir.

Ciúme? Dançar contigo?
Não vale a pena gritá-lo
Nem vale a pena mostrar-me
A Que encheu hoje o cabaret

— Adeus! A noite vai alta,

E dança, dança com outro.
Mas se acaso te perguntarem quem sou,
Responde: — Não sei quem é.

“Poema de Cinza. À memória de Fernando Pessoa”

Escrito e publicado em 1938, no 3.º aniversário da morte do poeta

Se eu pudesse fazer com que viesses
Todos os dias, como antigamente,
Falar-me nessa lúcida visão —
Estranha, sensualíssima, mordente;
Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses,
Meu pobre e grande e genial artista,
O que tem sido a vida — esta boémia
Coberta de farrapos e de estrelas,
Tristíssima, pedante, e contrafeita,
Desde que estes meus olhos numa névoa
De lágrimas te viram num caixão;
Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses,
Voltávamos à mesma: Tu, lá onde
Os astros e as divinas madrugadas
Noivam na luz eterna de um sorriso;
E eu, por aqui, vadio da descrença,
Tirando o meu chapéu aos homens de juízo…
Isto por cá vai indo como dantes;
O mesmo arremelgado idiotismo
Nuns senhores que tu já conhecias
— Autênticos patifes bem falantes…
E a mesma intriga: as horas, os minutos,
As noites sempre iguais, os mesmos dias,
Tudo igual! Acordando e adormecendo
Na mesma cor, do mesmo lado, sempre
O mesmo ar e em tudo a mesma posição
De condenados, hirtos, a viver —
Sem estímulo, sem fé, sem convicção…
Poetas, escutai-me: transformemos
A nossa natural angústia de pensar —
Num cântico de sonho!, e junto dele,
Do camarada raro que lembramos,
Fiquemos uns momentos a cantar!

*Poemas retirados da edição mais recente da poesia de António Botto, publicada em 2018 pela Assírio & Alvim