Uma denúncia de um whistleblower das secretas colocou Washington D.C. em polvorosa esta semana. As informações oficiais ainda são poucas: em causa estará uma chamada do Presidente norte-americano, Donald Trump, para um líder internacional, onde terá sido feita uma “promessa” indevida. Mas a imprensa norte-americana começa a ligar os pontos e a apontar na direção de uma investigação já em curso, no Congresso, a alegadas pressões da Casa Branca ao novo Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky. Em causa estará a tentativa de reabrir uma investigação no país a Hunter Biden, filho do candidato democrata à presidência Joe Biden.
Só que nada é assim tão simples. E porquê? Porque a informação oficial é escassa. E a própria comunidade das secretas norte-americanas está dividida sobre se os responsáveis da área são ou não obrigados a divulgar tudo o que sabem sobre esta denúncia anónima aos congressistas que estão a investigar o assunto. O supervisor, o inspetor-geral das secretas Michael Atkinson, considerou que a denúncia é credível e classificou-a como uma matéria de “preocupação urgente”, o que por lei obriga a uma notificação do Congresso. Foi uma espécie de “segunda denúncia”, o que levou o diretor de um escritório de advogados de segurança nacional a classificar todo o caso como “uma matriosca de denúncias”, em declarações ao Politico.
O Presidente diz que toda a situação é “ridícula” e que nunca diria nada de impróprio numa conversa telefónica que sabia estar a ser escutada por outras pessoas. E como é possível saber o que dizia a denúncia em concreto? É impossível saber porque o diretor nacional das secretas, Joseph Maguire, recusou dar informações sobre o caso aos congressistas por considerar que, tratando-se do Presidente, não está a isso obrigado.
Perante um cenário tão confuso, nada como arrumar as ideias. Afinal o que sabe sobre o caso deste whistleblower e o que ainda está por saber?
O que se sabe
Há uma denúncia vinda das secretas que está relacionada com a Ucrânia e que envolve o Presidente
A 12 de agosto foi entregue uma denúncia por um trabalhador das secretas norte-americanas ao seu inspetor-geral, através do mecanismo que existe para proteger os whistleblowers que denunciem irregularidades dentro da administração pública, de forma a poderem fazê-lo legalmente, como noticia o New York Times. Esta quarta-feira, o Washington Post avançou com uma notícia com base em duas fontes: a denúncia estaria relacionada com pelo menos uma conversa que envolveu o Presidente Donald Trump e um líder estrangeiro. Em causa estaria uma “promessa” feita por Trump.
Os dois jornais acrescentariam mais tarde, citando mais fontes anónimas, que o caso estaria relacionado com a Ucrânia e destacaram que Trump falou com Zelensky duas semanas e meia antes de a denúncia ser feita. Nessa chamada, de acordo com o Governo ucraniano, o Presidente terá expressado que seria importante terminar algumas investigações de casos de corrupção ligados aos EUA, “para melhorar rapidamente a imagem da Ucrânia”.
Na quinta-feira, o inspetor-geral Michael Atkinson foi ao Congresso para uma audição à porta fechada sobre o tema. Fontes presentes na reunião explicaram que Atkinson recusou referir-se diretamente ao Presidente, mas assegurou que a denúncia está relacionada com “várias ações” — e, portanto, não apenas com aquele telefonema, depreende-se.
A administração Trump já estava a ser investigada por suspeitas de pressão sobre o Governo ucraniano
Vários comités da Câmara dos Representantes, de maioria democrata, já levam a cabo desde agosto uma investigação ao Governo por suspeitas de pressões sobre Kiev.
A principal suspeita surgiu a propósito da atribuição de armamento ao Governo ucraniano no valor de 250 milhões de dólares, que estava prevista e aprovada pelo Congresso, mas cuja entrega estava a ser retardada pelo Executivo sem justificação aparente. O atraso foi criticado por congressistas de ambos os partidos e, após ser aberta a investigação, a Casa Branca libertou os fundos sem justificação aparente.
“Houve muitos republicanos séniores a dizerem wtf?’”, comentou um responsável norte-americano à Economist, usando a sigla para a expressão que significa qualquer coisa como “mas que raio?”.
Na semana passada, os comités pediram a transcrição da conversa telefónica entre Trump e Zelensky. Seria um elemento de prova, justificaram, para perceber se o atraso na entrega do armamento fez “parte dos esforços do Presidente Trump para coagir o Governo ucraniano a reforçar investigações politicamente motivadas”.
O advogado do Presidente tem estado a fazer lobby junto de Kiev para que investigue o filho de Joe Biden
Ao mesmo tempo que os fundos eram retidos, o antigo mayor de Nova Iorque e advogado de Donald Trump, Rudy Giuliani, continuava a sua campanha de influência junto do Governo ucraniano. O objetivo é o de alertar Zelensky para a “necessidade” de completar duas investigações judiciais: uma a Paul Manafort, ex-diretor de campanha de Trump atualmente a cumprir pena nos EUA por fraude; e outra a Hunter Biden, filho do candidato democrata à presidência Joe Biden.
O primeiro caso diz respeito às ligações irregulares de Manafort a Viktor Yanukovich, antigo Presidente ucraniano, que Giuliani está convicto terem sido plantadas pela campanha de Hillary Clinton para prejudicarem Donald Trump. O segundo está relacionado com o trabalho de Hunter Biden numa empresa de gás ucraniana, que coincidiu com o período em que o seu pai, Joe Biden, era vice-presidente dos EUA e supervisionava a política norte-americana na Ucrânia.
Em agosto, segundo garantem o New York Times e a Economist, Giuliani reuniu-se em Madrid com Andriy Yermak, conselheiro do Presidente ucraniano, para lhe pedir que investigasse estes dois casos. O advogado garante que tomou essa iniciativa como “cidadão privado”, embora a viagem tenha sido do conhecimento do Departamento de Estado.
Esta quinta-feira, em entrevista à CNN, Giuliani começou por negar ter falado sobre o caso de Hunter Biden com as autoridades ucranianas e afirmou ter-se centrado apenas no caso Manafort. Contudo, ao longo do decorrer da conversa, acabou por se contradizer. À pergunta “Então pediu à Ucrânia para investigar Joe Biden?”, o advogado respondeu “É claro que pedi!”.
O filho de Biden trabalhou de facto na Ucrânia quando o pai tinha responsabilidades políticas — mas não há ilegalidade
Hunter Biden trabalhou numa empresa de gás ucraniana, a Burisma, durante o mesmo período em que o seu pai, Joe Biden, foi vice-presidente. Nesse período, como relembra o Axios, Biden chegou a oferecer um pacote de ajuda económica à Ucrânia para aumentar a sua produção de gás.
O New York Times também demonstrou que a Burisma tentava à altura contratar democratas bem colocados junto da administração norte-americana e que a contratação de Hunter Biden preocupou alguns responsáveis no Departamento de Estado à altura.
No entanto, o atual procurador-geral ucraniano, Yuriy Lutsenko, anunciou em maio em entrevista à Bloomberg que não havia provas de qualquer ilegalidade cometida pelos Biden na Ucrânia: “Não temos bases para pensar que houve qualquer irregularidade a partir de 2014 [data de contratação de Hunter]”, afirmou.
Giuliani acusa Joe Biden de ter utilizado o seu poder como vice-presidente para esmagar a investigação, ao pressionar o Governo ucraniano para que demitisse o procurador-geral da altura, Viktor Shokin, que estaria a investigar o caso. O site norte-americano especializado em Direito Just Security relembra, no entanto, que Shokin estava debaixo de fogo por suspeitas de corrupção. Várias organizações e ativistas pediam há muito a sua demissão. “Shokin não acusou sequer nenhum membro do regime de Yanukovich”, apontou em março o especialista do mundo pós-soviético Anders Åslund. Biden mostrou-se favorável também a esse afastamento, à semelhança de outros políticos mundiais, porque poderia servir de sinal em como a Ucrânia estava a tentar combater a corrupção. O Just Security lembra ainda que o sucessor, na entrevista à Bloomberg, relembra que a investigação aberta por Shokin aos Biden estava há muito adormecida.
Há um conflito dentro das secretas sobre se deve ou não ser revelado o conteúdo da denúncia sobre o Presidente
Michael Atkinson, supervisor das secretas, considerou que a denúncia apresentada estava “relacionada com uma das responsabilidades mais significativas e importantes do Diretor Nacional dos Serviços de Informações perante o povo americano”. Mas o Diretor, Joseph Maguire, mesmo não contestando a importância da denúncia, não quis revelá-la ao Congresso, depois de ter consultado o Departamento da Justiça. O Departamento da Justiça tem um entendimento, como revelou a propósito do relatório Mueller, de que suspeitas sobre o Presidente não devem ser judicialmente investigadas.
Os democratas contestam: falam numa decisão “sem precedentes” que não cumpre a lei. “O Diretor tem uma responsabilidade ministerial de partilhar isto com o Congresso, não pode escolher quando partilha e quando não partilha”, acusou Angus King, senador do Maine. Já os especialistas dividem-se. O New York Times cita, por exemplo, responsáveis que consideram legítimo consultar o Departamento da Justiça porque a Casa Branca tem o chamado “privilégio executivo” de poder não querer revelar o que se passa.
Mas também há quem levante dúvidas, a propósito do que aconteceu com o relatório Mueller, quando o procurador-geral William Barr apresentou um relatório inicial que apresentava conclusões ligeiramente diferentes: “Tendo em conta o historial recente do Departamento da Justiça de tentar passar mensagens públicas que parecem escritas pela Casa Branca, é razoável ter preocupações”, apontou David H. Laufman, ex-responsável do Departamento de Segurança Nacional.
Trump nega todas as acusações. A Ucrânia ainda não comentou oficialmente
No Twitter, o Presidente norte-americano já reagiu às suspeitas. “De cada vez que falo ao telefone com um líder estrangeiro, sei que pode haver pessoas de várias agências dos EUA a ouvir, já para não falar das dos outros países. Não há problema! Sabendo disto, alguém é burro o suficiente para achar que eu ia dizer algo inapropriado a um líder estrangeiro num telefonema tão ‘povoado’”, questionou.
No dia seguinte, voltou à carga: reforçou no Twitter e perante os jornalistas que o denunciante em causa tem motivações partidárias e disse não ter tido qualquer conversa “arriscada” com Zelensky.
….Knowing all of this, is anybody dumb enough to believe that I would say something inappropriate with a foreign leader while on such a potentially “heavily populated” call. I would only do what is right anyway, and only do good for the USA!
— Donald J. Trump (@realDonaldTrump) September 19, 2019
Do lado ucraniano, oficialmente ainda não houve qualquer reação por parte do Governo. Mas um conselheiro do ministério da Administração Interna do país, Anton Geraschenko, falou abertamente sobre o tema ao site norte-americano Daily Beast: “Se houver um pedido oficial da administração Trump, iremos olhar para isso”, disse, referindo-se à investigação aos Biden. “Mas por enquanto não há qualquer investigação aberta.” E foi ainda mais longe: “Trump está claramente à procura de kompromat para descredibilizar o seu adversário Biden e para se vingar do que aconteceu ao seu amigo Paul Manafort, que está a cumprir sete anos de prisão”, afirmou, referindo-se à prática herdada dos tempos soviéticos de recolha de material que pode comprometer um adversário político.
Trump e Zelensky irão, em breve, encontrar-se pessoalmente na cimeira das Nações Unidas, que ocorre para a semana.
O que falta saber
Quem é o whistleblower
A sua identidade não é conhecida. O ex-agente da CIA e atual advogado especializado Andrew Bakaj confirmou ao New York Times que vai defender o denunciante em causa, mas recusou identificá-lo.
O facto de este whistleblower se manter no anonimato já levou a alguma especulação. O Presidente norte-americano considera que tem “motivações partidárias” e que, mesmo não sabendo quem ele é, já terá ouvido dizer que “isto vem de outro partido”.
Qual foi exatamente a “promessa” de Trump e se é apenas isso que está em causa
A insinuação que começa a desenhar-se é que a “promessa” da chamada telefónica seria no sentido de desbloquear o armamento prometido ao Governo ucraniano, em troca das ditas investigações. Mas não só ainda não está provado que é esse o caso, como há fortes indícios de que a denúncia não se refere apenas ao telefonema. Isso mesmo confirmou o inspetor das secretas na sua audição desta semana.
Também o líder do comité dos Serviços de Informação da Câmara dos Representantes, Adam Schiff, garantiu que o comité irá investigar a fundo o tema porque pode tratar-se de algo “mais sinistro” do que uma simples divergência política.
Falta saber o que está então em causa em concreto e até onde vai o alcance desta denúncia.
Que consequências pode a denúncia ter para Trump
Não é certo, a começar pelo facto de não ser conhecido o conteúdo da denúncia. Mas, a confirmar-se que se tratou do dito pedido, há quem pense que tal não é proibido. O próprio Rudy Giuliani reforçou isso ao longo desta semana, dizendo que “é perfeitamente apropriado que ele peça a um Governo estrangeiro que investigue um crime gigantesco levado a cabo por um ex-vice-presidente”.
De acordo com a lei, para a denúncia ser classificada como “urgente” significa que a chamada telefónica terá incluído atividades relacionadas com os serviços de informação que possam representar má gestão, abuso ou que ponham em perigo a segurança pública. Contudo, relembram os especialistas legais ouvidos pelo New York Times, o Presidente pode discutir atividades relacionadas com as secretas, desclassificar segredos de Estado e conduzir a política externa como muito bem entender.
Outros discordam. O professor de Direito de Harvard Larry Tribe reforça que, com esta política do Departamento da Justiça, é impossível investigar o Presidente e, portanto, ele deve ser retirado do cargo, ou seja, sujeito a um processo de impeachment.
Exactly. And adding Trump’s lawyers’ arguments today that a sitting president cannot be investigated by anyone for any offense until he’s out of office leads to one conclusion only: he must be removed from office. As soon as possible. https://t.co/GemwmJslYY
— Laurence Tribe ???????? ⚖️ (@tribelaw) September 20, 2019
Que consequências pode a denúncia ter para a campanha de Biden
De acordo com as autoridades ucranianas, para já não há nenhuma prova que aponte para ilegalidades ligadas a Biden pai e a Biden filho. Tal não significa, contudo, que não haja outro tipo de irregularidades. Yoshiko M. Herrera, especialista em política da Eurásia, afirmou ao Washington Post que a posição de Hunter Biden na indústria do gás ucraniana, coincidente com o cargo do pai, representou “um conflito de interesses, mesmo não quebrando qualquer lei”. Que impacto pode ter na campanha não é certo.
Quanto às acusações de Giuliani de que Biden tentou demitir o anterior procurador, não parece haver qualquer sustentação para essa afirmação. Mas, como relembrou o Just Security, a repetição da acusação por parte da Casa Branca e da campanha do Presidente Trump pode colar em tempos de campanha eleitoral: “Devido à complexidade do tema e à distância do local, o martelar nos papéis dos Bidens na Ucrânia pode, pelo menos, criar desinformação suficiente para confundir os eleitores americanos sobre o que é verdade e sobre o que não é”, relembram. O impacto que tal pode ter nas aspirações presidenciais de Joe Biden, contudo, ainda está por avaliar.