O Campeonato do Mundo feminino do passado verão, onde se quebraram todos os recordes de bilhetes vendidos e espectadores de transmissões televisivas, deixou bem claro que o futebol jogado por mulheres está a viver a melhor fase da sua existência. Ano após ano, os números são maiores, as expectativas são maiores e os resultados são maiores – logo, também o dinheiro é cada vez mais.
Neste mês de janeiro, Mayra Ramírez tornou-se a jogadora mais cara de sempre ao mudar-se do Levante para o Chelsea a troco de 450 mil euros mais 50 mil em objetivos variáveis. A avançada colombiana superou o registo de Keira Walsh, que em 2022 custou 470 mil euros ao Barcelona para deixar o Manchester City, e 2023 assistiu a um fenómeno que mudou praticamente todo o top 10 das maiores transferências da história.
Num mercado que está em total e abrupto crescimento, a grande dificuldade tem sido encontrar pontes e contactos dentro de um meio que ainda há poucos anos não tinha agências, agentes ou empresários. O impacto comercial das equipas, porém, tem vindo a provocar um aumento exponencial das receitas dos principais clubes europeus.
Um mundo em mudança onde a mais cara de sempre custou 500 mil euros
Durante muito tempo, até há poucos anos, a larga maioria das transferências no futebol feminino acontecia a custo zero e no final dos contratos das jogadoras. Na verdade, de acordo com dados da FIFA, 85% das 1.555 transferências internacionais que aconteceram em 2022 foram negócios sem valores envolvidos. A tendência, porém, é de óbvia mudança: desde 2021, a proporção de transferências definitivas com acordo financeiro entre dois clubes mais do que duplicou.
Em 2021, as transferências com valores envolvidos significavam apenas 3,5% do bolo internacional. Em 2018, eram uma mera fração. Em 2022, o número chegou aos 7,3%. Dados que ajudam a explicar o facto de 2023 – que inclui a janela de mercado do passado verão, que aconteceu logo depois do Campeonato do Mundo que Espanha conquistou – ter movimentado mais de cinco milhões de euros, um aumento de 84,2% face ao ano anterior. Números que são quase impossíveis de compreender, tendo em conta a realidade monstruosa do futebol masculino, mas que não deixam de espelhar a evolução do panorama feminino.
Uma evolução que ficou espelhada no Global Transfer Report divulgado esta terça-feira pela FIFA, que indica que o ano de 2023 assistiu a um aumento de 20% no número de transferências em comparação com o ano anterior. Adicionalmente, o número de clubes envolvidos em transferências internacionais também cresceu, de 507 em 2022 para 623 em 2023, uma subida de 22,9%. No mesmo estudo, a FIFA associa a tendência positiva à maior profissionalização das atletas, algo que é cada vez mais uma realidade transversal nas principais ligas europeias.
De forma natural, o aumento de todos estes números e todos estes valores tem trazido novos recordes de transferências em praticamente todas as janelas de transferências. Durante algum tempo, a maior transferência de sempre do futebol feminino era Pernille Harder, que em 2020 trocou o Wolfsburgo pelo Chelsea por cerca de 300 mil euros. Em 2022, Keira Walsh custou 470 mil euros ao Barcelona para deixar o Manchester City – e em 2023, as mudanças de Scarlett Camberos, Geyse, Lindsey Horan, Kyra Cooney-Cross e Jill Roord ficaram todas entre os 280 e os 350 mil euros, estabelecendo um novo top 10 mundial no que toca a investimentos no futebol feminino.
No atual de mês de janeiro, contudo, a líder desse mesmo ranking voltou a mudar. Mayra Ramírez, internacional pela Colômbia que esteve no último Mundial, trocou o Levante pelo Chelsea a troco de 450 mil euros fixos mais 50 mil em objetivos variáveis, tornando-se a jogadora mais valiosa de sempre. O negócio da avançada de 24 anos, aliás, tem um dado ainda mais interessante: Mayra Ramírez assinou por quatro temporadas e meia, um contrato longo e duradouro que é cada vez mais uma realidade mas que durante muito tempo era uma raridade no futebol feminino.
Com alguma ironia, porém, aquela que seria a maior transferência de sempre ficou por fazer. No último dia do mercado de inverno de 2023, o Arsenal ofereceu 565 mil euros por Alessia Russo, internacional inglesa que na altura ainda estava no Manchester United. Os red devils recusaram, com a lógica de que precisavam da avançada para a segunda metade da temporada, e Russo acabou mesmo por sair para o Arsenal no fim da época – no final do contrato, a custo zero e sem representar qualquer encaixe financeiro.
Num dado adicional, o fortalecimento das quantias investidas no futebol feminino não se restringe às jogadoras, com o próprio mercado das equipas técnicas a crescer exponencialmente nos últimos anos. Tanto na oferta e na procura – a saída de Sarina Wiegman dos Países Baixos para Inglaterra, por exemplo, de uma campeã europeia para uma futura campeã europeia – como nos salários praticados. Emma Hayes, treinadora que já anunciou que vai deixar o Chelsea no fim da temporada depois de conquistar seis Campeonatos, será a nova selecionadora dos Estados Unidos e vai tornar-se a mais bem paga de sempre, auferindo algo como 1,6 milhões de dólares por ano (o mesmo que o selecionador masculino).
Emma Hayes, a treinadora mais bem paga do mundo que quer ressuscitar os Estados Unidos
Entrar no mercado, fazer contactos, encontrar passaportes: o caso da ProEleven
A forma como o mercado de transferências feminino tem mudado, porém, não se prende apenas com os valores envolvidos. Aliás, o aumento de negócios com valores envolvidos tem sido uma verdadeira consequência da entrada das agências, dos agentes e dos empresários em ação. Durante muito tempo, numa fase ainda muito amadora do futebol feminino, as jogadoras geriam as próprias carreiras em conjunto com as famílias e os clubes que representavam ou queriam representar. Atualmente, qualquer jogadora profissional tem um representante.
Em Portugal, e num mundo onde ainda quase tudo parece por explorar no que toca à existência de agentes e à própria rede de contactos no mercado feminino, os últimos meses trouxeram uma novidade que vai agitar o panorama. No início do mês, a Teammate Football Management e a ProEleven Football Management anunciaram uma parceria. Ou seja, a única agência portuguesa exclusivamente dedicada ao futebol feminino juntou forças a uma das principais agências de futebol portuguesas, abrindo a porta desta última a um mercado que estava por explorar.
“A ProEleven dá as boas-vindas à nossa agência da Teammate Football Management. Acredito que juntos, aproveitando o know how da Raquel Sampaio no mundo do futebol feminino e em parceria com a nossa experiência no mercado nacional e internacional, poderemos fomentar o desenvolvimento de um setor em grande expansão e que tem de caminhar, necessariamente, para um processo de grande profissionalismo”, disse Carlos Gonçalves, dono da ProEleven e agente FIFA, na altura.
Em resumo, a ProEleven – tal como muitas outras agências europeias nos últimos anos – entendeu que precisava essencialmente de um passaporte de entrada de um mundo que ainda desconhecia. E esse passaporte foi a Teammate, um portefólio de 30 jogadoras e treinadoras nacionais e estrangeiras e uma influência que no verão deu origem à transferência de Ágata Filipa do Servette para o FC Fleury 91, o primeiro negócio em que uma jogadora portuguesa saiu para uma das principais ligas europeias a troco de dinheiro (40 mil euros).
No atual mercado de inverno e sem grandes surpresas, as principais movimentações nacionais apareceram a partir do Benfica e do Sporting. As encarnadas contrataram Chandra Davidson, avançada canadiana que estava no Fortuna Sittard e que em Portugal já representou Torreense e Sporting, e as leoas anunciaram Brittany Raphino, avançada internacional Sub-23 pelos EUA que atuava na Universidade de Brown.
58% das receitas do futebol feminino vem das parcerias comerciais. Em Portugal, Benfica está numa realidade à parte
No meio de tudo isto, a certeza é só uma: o dinheiro tem de vir de algum lado. E o dinheiro está a aparecer. Um estudo recente da Deloitte analisou a temporada 2022/23 de 15 clubes europeus – de Inglaterra, Espanha, França, Alemanha, Itália e Portugal – e concluiu que a receita média do futebol feminino chegou aos 4,3 milhões de euros. Ou seja, um crescimento de 61% em relação a 2021/22.
O aumento explica-se essencialmente com a crescente e consistente comercialização das equipas femininas –assim como com o sucesso de grandes eventos de massas, como foi o caso do último Campeonato do Mundo. As parcerias comerciais têm-se tornado o grande abono de família do futebol feminino, num movimento transversal que abre as portas aos jogos nos maiores estádios do mundo que normalmente só recebem as equipas masculinas e às transmissões televisivas cada vez mais frequentes que atraem novos públicos.
Em média, de acordo com este estudo, as receitas comerciais representaram 58% das receitas totais dos clubes analisados, seguindo-se a bilhética (22%) e as transmissões televisivas (20%). Sem qualquer tipo de surpresa, o Barcelona surge no topo desta lista: o clube espanhol encaixou quase 14 milhões de euros exclusivamente com o futebol feminino, sendo que 8,5 milhões dizem respeito a questões comerciais. O Benfica, o único clube português incluído, teve receitas a rondar os 1,5 milhões – ficando à frente de Everton, Juventus e West Ham e ligeiramente atrás do Liverpool.
Com base nestes dados, no aumento do interesse do público e do impacto comercial, a Deloitte estima que o futebol seja a modalidade feminina mais valiosa e dominante de 2024, almejando receitas globais que podem chegar aos 500 milhões de euros. “Falamos muitas vezes do futebol feminino como uma startup, mas temos de pensar de forma diferente. O grande ponto de atração do futebol feminino é uma base de fãs que ainda não foi explorada. Mas estamos a ver maior compreensão em relação a isso, com mais parceiros a quererem trabalhar com o futebol feminino, algo que obviamente leva a um crescimento das receitas comerciais”, explicou Amy Clarke, uma das responsáveis pelo estudo, ao The Athletic.
Em resumo, o truque para estimular a dimensão financeira do futebol feminino é perceber que não é apenas futebol. É futebol feminino – não num ponto de vista desportivo, mas num ponto de vista comercial. “Temos de reconhecer que precisamos de sustentabilidade financeira e boa gestão. A introdução de uma maior regulação financeira no futebol feminino será importante para desenhar a sustentabilidade financeira daqui para a frente. E isso tem de ser feito à medida do desporto feminino: garantir que os clubes estão a reinvestir em infraestrutura e formação para ter a certeza de que tudo isto é sustentável”, acrescenta Amy Clarke.