Por duas vezes, na entrevista que deu à RTP esta segunda-feira, o líder socialista negou que uma maioria sua seja comparável à maioria de Sócrates. Não precisou de dizer o nome do antigo primeiro-ministro que o PS elegeu pela primeira vez com uma maioria absoluta, bastou dizer que em seis anos em funções não teve problemas com a independência da comunicação social ou da justiça e também não teve queixas de Belém.

António Costa apresenta o PS como “referencial de estabilidade”, espera que a esquerda seja penalizada por ter chumbado o seu Orçamento e, com isso, convencida a voltar a uma solução sucedânea da extinta “geringonça”. Mas também diz que o PSD não está excluído de diálogos, “com ou sem maioria”. Já dispara com promessas eleitorais, que passam por aplicar o que cedeu à esquerda com retroativos. Mas para isso terá de ser eleito. Aqui ficam as sete frentes em que Costa aposta para as legislativas que aí vêm — e a porta de saída que pode restar no fim de todas as contas.

Objetivo I: maioria absoluta mas diferente de Sócrates

A maioria absoluta deixou esta segunda-feira de ser um objetivo escondido. É a única saída segura, com o PS a proceder agora ao desarmadilhar de um conceito que soa traumático a alguns portugueses. António Costa faz o apelo — e olhou sempre direto para a câmara quando o fez a partir da residência oficial do primeiro-ministro — ao voto no PS: “Peço aos portugueses que nos deem força para governar de forma estável durante os próximos quatro anos.”

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O que significa isto? Que a maioria absoluta é o resultado preferido. Mas o PS só o conquistou uma vez, em 2005, com José Sócrates, e num contexto político específico, depois da saída de Durão Barroso para a Comissão Europeia. A referência socialista é, assim, não só complicada em termos de contabilização de votos (ver abaixo) como de memória política. A maioria de Sócrates evoca uma governação que terminou envolta em processos na justiça, tensão, acusações de tentativa de controlo da comunicação social e até com o caso das escutas na Presidência da República. É por isso que agora Costa sublinha que hoje existe “um poder judicial independente, uma comunicação social independente e um Presidente da República que controla” a ação governativa. “Claramente não é perigoso”, respondeu quando questionado sobre o poder dessa maioria.

“Não há nenhum Governo que tenha tido uma relação mais correta e solidária com o Presidente da República do que temos tido e sendo de outra família política”, referiu ainda para distanciar a relação do seu Governo socialista com a Presidência de Marcelo, da que o Governo socialista de Sócrates teve com a Presidência de Cavaco.

Além disso, Costa ainda joga a carta das maiorias absolutas que teve na Câmara de Lisboa. “Mesmo com maioria não deixaremos de negociar e dialogar”, disse, justificando-se como os tempos de autarca. “Já governei uma câmara com maioria e sem maioria e o António Costa foi sempre o mesmo. A única coisa que mudou foi a forma como os outros se relacionavam comigo”. E prometeu depois que, caso consiga conquistar a maioria absoluta nas legislativas antecipadas, continuará a dialogar com todos… até com o PSD (ver mais abaixo).

Objetivo II: maioria sem ser absoluta mas quase lá

António Costa e o PS sabem que a maioria absoluta é uma fasquia ainda mais difícil num quadro parlamentar cada vez mais dividido. Assim, a segunda preferência de Costa é sair do dia 30 de janeiro com uma votação “claramente reforçada” no PS, em comparação com 2019, altura em que teve 36,4% dos votos, o que ditou 108 deputados.

“A vontade dos portugueses em 2019 era que a ‘geringonça’ prosseguisse com o PS mais forte, porque isso significa ter um PS moderador”, explicou. Mas agora, “depois destas eleições nada será como dantes”, deixou escapar entre a resposta que dava sobre as relações com a esquerda, que coloca nas mãos dos eleitores. E o que quer dizer com isto: “Ou o PS tem maioria ou a outra hipótese é ser claramente reforçada e isso também implica que os parceiros à esquerda reflitam que se calhar fizeram asneira”.

É o desejo número dois de Costa: conseguir que BE e PCP saiam penalizados das eleições e, com isso, mais maleáveis a novos entendimentos.

Há retorno com a esquerda?

É complicado. Quando arrancou a entrevista foi logo com uma rajada de responsabilizações para a esquerda, argumentando que o “Governo esteve a negociar até ao último minuto” e que foi ao “limite do limite”. Costa não queria fazer “processo de intenções”, mas fê-lo em pleno quando anotou a “falta de vontade política” de PCP e BE de “viabilizarem o Orçamento na generalidade”. Até traduziu o processo orçamental no Parlamento para explicar que o que a esquerda fez foi não deixar que a proposta do Governo passasse da primeira fase. “A cronologia [das negociações] mostra isso”, garantiu.

Disse ainda que o que foi feito foi “um desperdício de oportunidades”, mas, mesmo assim, não fecha portas. “Há quem olhe para portas e veja fechaduras e há quem olhe e veja a maçaneta. Eu olho mais para a maçaneta do que para a fechadura”. É uma tentativa de dizer que está aberto a tudo, embora com a esquerda não deixe — até quando abre a porta — de esticar o pé: “Eu não escolho a orientação do PCP e do BE. Se optaram por ser partidos de protesto tenho de respeitar.”

O caminho é, como já tinha noticiado o Observador, não hostilizar totalmente a esquerda. “Não vou andar a abrir feridas que importa sarar. Portugal tem de superar esta crise. Eu tenho-os ouvido e não tenho respondido e não vou responder. O país não quer tricas políticas”. Mas a prática mostra que este já não é o trajeto em que o PS confia mais para permanecer no poder.

Costa resumiu mesmo que enquanto em 2019 pediu “o voto aos portugueses para continuar a geringonça”, agora pede “o voto para ter uma solução estável para o PS governar quatro anos”. E a responsabilidade do fim da geringonça atira-a aos parceiros: “Não posso hoje dizer que dou continuidade à ‘geringonça’ quando a direção do PCP diz que não quer mais geringonça e quando Catarina Martins diz todos os dias que é preciso tirar António Costa da liderança do PS para poder haver entendimento à esquerda. Quem manda no PS são os militantes do PS e não Catarina Martins”.

Desvalorização de acordos escritos

Aqui a resposta fica para depois. Para já, o objetivo é que o que as pessoas querem: “Ter certeza e confiança. E a mais certa e segura é ter maioria estável e duradoura do PS”, diz o líder do PS.

E se não houver e se o quadro for semelhante ao atual? Avançar em direção aos parceiros, mas com Costa a desvalorizar a necessidade de acordos escritos, pelo menos por agora. E fá-lo recordando que em 2015 as posições conjuntas assinadas, em separado, com o BE, o PCP e o PEV, não previam a viabilização de orçamentos. O compromisso era o do “exame comum” dos orçamentos.

Ainda assim, os acordos incluíram uma expressão tirada a ferros ao PCP, que era essencial para o então Presidente da República, e que passava pela existência de “uma base institucional bastante para que o PS possa formar governo, apresentar o seu programa de governo, entrar em funções e adotar uma política que assegure uma solução duradoura na perspetiva da legislatura.

Porta aberta ao PSD

Costa arrumou a relação com a direita em quatro pontos. O primeiro — e mais atual — é manter-se à distância e contrapor à reorganização por que passa o PSD por estes dias (com eleições diretas) o seu foco na “governação”.

O segundo foi lembrar que o PSD, “onde teve de decidir se governava ou não, não hesitou em fazer acordos com o Chega. É a única coisa que sabemos”. A colagem ao radicalismo de André Ventura.

O terceiro ponto foi o que trouxe a maior novidade. Quando garantia que dialogaria com ou sem maioria, deixou uma afirmação: “Também não deixaremos de dialogar com o PSD”. O mesmo já tinha sido dito no domingo pelo histórico socialista Manuel Alegre e à tarde, em declarações ao Observador, pelo presidente do partido, Carlos César. À noite, Costa deixou a sua fórmula: “Não fecho a porta a ninguém”.

“PS não exclui, ambiciona mesmo, consensos partidários mais vastos e densos”, avisa Carlos César

O último ponto é que é contra o PSD que concorre nestas legislativas. Costa aposta tudo na bipolarização nestas eleições: “Peço o voto aos portugueses que dirão em quem votam e como votam, quem escolhem e se querem um Governo do PSD ou dar continuidade ao Governo do PS”.

Apelo ao voto do centro político

Está alinhado o argumento para tentar entrar no eleitorado do centro — uma linha que já tinha sido defendida no interior do PS nas reuniões da crise. António Costa diz claramente que não cedeu à “intransigência” da esquerda na negociação do Orçamento: teve de ouvir ” a capacidade de sustentação das empresas”.

“Houve dois pontos que bloquearam a situação”, explicou: a sustentabilidade da Segurança Social e o aumento do salário mínimo nacional proposto pelo PCP para 800 euros já no próximo ano. As empresas, disse Costa, “estão a sair da mais profunda crise” e não era “realista”, neste contexto, “impor um salário mínimo mais elevado”. Era “pôr em perigo a solidez e recuperação das empresas”.

Quanto à Segurança Social, era deitar a perder o que foi recuperado em termos de sustentabilidade e Costa garante que foi essa almofada que permitiu responder com apoios à crise que decorreu da pandemia.

Argumentos moderados para um eleitorado moderado e para parceiros sociais com quem o PS quer manter as pontes.

O trunfo das boas relações com Belém

António Costa garantiu a cada linha que a relação com o Marcelo Rebelo de Sousa saiu sem mácula deste processo de eleições antecipadas. Fez questão de dizer que o Presidente o informou previamente sobre a declaração que ia fazer — e que fez a 13 de outubro — a dizer que ou havia Orçamento viabilizado pelo Parlamento ou dissolveria a Assembleia. Disse também que estudou e informou o chefe de Estado sobre a solução de governar em duodécimos — sem sucesso, como acabou por se ver.

Concordou com a data das eleições e com o sentido de urgência que o Presidente impôs ao processo. Embandeirou com a boa relação — como nenhum outro Governo teve com Belém, disse mesmo — que mantém com Marcelo e isentou-o de responsabilidades na crise política que acabou por sair do processo orçamental falhado. “Não podemos apontar o dedo ao Presidente da República. Só lhe restava escolher a menos má das más soluções”, afirmou.

Como vai Governar com Parlamento dissolvido (e sem escrutínio)

Aqui, Costa dividiu o assunto em três. Há actos proibidos e há outros que são permitidos e, dentro destes, os que não devem ser feitos. O Parlamento será dissolvido, mas o Governo vai manter-se em funções e vai avançar, logo no início do ano que vem, com o aumento do salário mínimo nacional para os 705 euros, com a atualização normal das pensões e ainda com os aumentos, de acordo com a inflação, do salário dos funcionários públicos.

Estes são os actos legislativos permitidos que incluem ainda a possibilidade de o Governo poder decretar um aumento extraordinário das pensões mais baixas (que prometeu começar logo em janeiro, no auge da negociação com a esquerda) ou o aumento das prestações sociais que também estava previsto. Mas estes já não vão avançar e são reconduzidos para a lista de promessas eleitorais do PS. António Costa considera que, com a Assembleia dissolvida, o seu Governo tem “legitimidade política limitada”, por isso vai incluir estas cedências à esquerda no seu programa eleitoral, prometendo que, caso seja eleita, paga tudo com retroativos a janeiro.

Já no que diz respeito a reduzir o IRS e desdobrar os escalões deste imposto, como estava previsto, isso “depende de votação da Assembleia da República”, detalhou, por isso ficam sem efeito e são também atirados para um futuro em que António Costa continue como primeiro-ministro.

A porta é a da saída do PS. António Costa foi claro sobre este cenário: caso não vença as eleições “obviamente” deixará de ser o secretário geral do PS: “Isso significaria abrir um novo ciclo de governação.”