Reportagem em Wilkes-Barre, Pensilvânia
Se a votação destas eleições presidenciais norte-americanas se tivesse cingido às pessoas que estão nesta casa de Wilkes-Barre, cidade do nordeste da Pensilvânia, as contas seriam muito mais fáceis. Sem necessidade de calculadora, nem unhas roídas para lá do saudável e de café a rodos. Aqui, a conclusão seria rápida e fácil: Donald Trump teria mais quatro anos na Casa Branca graças a uma maioria de 11 votos contra 2.
Como é seu hábito, Kim Woodrosky juntou na sua casa vários amigos, que vão desde multimilionários que se preparam para fugirem ao frio do inverno num chalet no México a desempregados ou mães solteiras que têm três empregos. Votaram todos em Donald Trump, à exceção de John e Mary Jone — marido e mulher, ambos envolvidos na política autárquica de Wilkes-Barre. Mas, até em relação a estes dois, Kim tem dúvidas. “Vocês não votaram no Biden, não acredito nessa merda!”, diz a dona da casa logo a abrir a noite. “Vai enganar outra!”, volta a insistir. John e Mary Jone insistem que votaram em Biden, mas não é algo de que façam muita gala. “Claramente, estamos em minoria”, diz John. Kim logo ataca: “Não estás nada, eu sei que votaste no Trump, tens é vergonha de admitir”.
Os 12 convidados mais a anfitriã dividem-se pelo andar principal da casa de Kim, repleta de bibelôs e uma decoração vistosa: desde uma cabine telefónica (e a história de como ela foi parar à cozinha de Kim será contada a páginas tantas desta noite eleitoral) até placas onde se podem ler mensagem como “se conhecessem a minha família, compreenderiam”. Nas alturas menos tensas (quando tudo parece correr de feição a Donald Trump) o tema de conversa passa muitas vezes para os vários focos de distração desta casa singular, da decoração ao cão e aos quatro gatos (que, por momentos, foram só três, depois de uma fuga); nas alturas mais tensas (quando o Presidente parece estar a caminho da derrota), todos os olhos ficam ferrados nas televisões: uma na sala, outra na cozinha. Ambas na Fox News, claro.
A noite começou com comida, mas rapidamente passou para o álcool — primeiro, porque sim; depois, por desespero; de seguida, por felicidade; e, finalmente, porque sim, outra vez. No final, todos foram para a cama com a mesma dúvida que guardavam de manhã quando foram votar: quem é que vai vencer as eleições?
18h08
Atrás da bancada da cozinha, James assume o controlo da faca, que usa para cortar queijos e kielbasa, uma salsicha polaca que ele próprio trouxe, em homenagem à origem da sua família. O corte sai-lhe sem grande critério, provavelmente porque, enquanto desempenha essa tarefa, vai olhando para a mesa da cozinha, entrando e saindo da conversa que por ali se vai desenrolando.
“É só Covid, Covid, Covid”, diz James, empresário que trabalha na limpeza de contentores de carga. “Os democratas só sabem falar de Covid. Não querem falar do resto?”
Ali perto, na mesa da cozinha, Barbara e John, os multimilionários desta festa, falam das férias que prepararam para janeiro. “Vamos dois meses para o México para fugirmos ao frio”, diz Barbara, atraindo olhares da mesa. “Aquilo é muito bonito, é, é…”, continua. Ninguém responde.
18h34
Samuel já não está de faca na mão e, numa altura em que já todos comem o queijo e a kielbasa que ele cortou, lança-lhes uma pergunta: “Algumas vez vos ligaram de uma sondagem?”. A resposta chega praticamente em coro um pouco de todo o lado da cozinha. “Não!”, respondem uns. “Nunca!”, dizem outros.
A única exceção é Tom. Com um boné a dizer “Trump 2020” e uma t-shirt onde se lê “Hidin’ From Biden” (“A esconder-me do Biden”, trocadilho com o slogan “Ridin’ With Biden”, da campanha democrata), diz que uma vez recebeu um SMS onde lhe foi pedido que respondesse “R” caso votasse em Donald Trump e “D” se a sua escolha fosse Joe Biden.
“Mas eu nem respondi, sequer”, diz, numa resposta capaz de desencorajar tantos quanto se dedicam às sondagens políticas neste estado decisivo. “Nem pensar, nunca. Primeiro, não quero que eles depois passem a vida a ligar-me e a mandar-me mensagens. Segundo, não lhes quero dar o gosto de dar a minha opinião. Eles que se enganem outra vez.”
18h49
Entre servir bebidas, pôr pratos e talheres ao dispor dos convidados e pôr comida nos locais apropriados, Kim é de longe a pessoa mais atarefada da casa. James já abandonou definitivamente o seu posto de cortador, tanto que abriu a porta dos fundos e saiu para fumar um charuto. Quando vê a saída entreaberta, Kim grita: “James, fecha a porra da porta!”. Depois, exasperada e com os olhos revirados, diz ao restantes convidados: “Tenho quatro gatos e um cão e este gajo deixa-me a porcaria da porta aberta”.
19h01
Há um minuto, foi anunciado o fecho das urnas em cinco estados, incluindo a Geórgia, território particularmente disputado entre os dois candidatos. Ainda assim não é daquele estado do Sul dos EUA que se fala nesta casa. O tema é agora mais urgente: desapareceu um dos gatos.
“Porra, James, eu avisei-te”, diz-lhe Kim. Ainda com o charuto na mão, James ri-se. Kim responde: “Não tem piada, mexe-te mas é e ajuda-me a encontrá-lo”. Nisto, várias pessoas saem da cozinha para procurar o gato no alpendre da casa. É algures por ali que o encontram, devolvendo-o então ao seu lar numa altura em que a contagem da Fox News dá mais de 60% dos votos na Geórgia para Donald Trump.
19h19
John, o autarca democrata, sai da cozinha e está recostado no canto de um dos sofás da sala, que têm um padrão de zebra. Está de olhos postos na televisão — que, por estar na Fox News, lhe apresenta uma visão dos EUA que geralmente não recebe. “Por altura das eleições, nunca vejo a Fox News, porque é muito enviesada. Mas, fora da época eleitoral. até costumo ver, porque falam de temas interessantes”, diz, diplomático.
No sofá oposto está Tom, que alterna entre a Fox News e a One American News Network, canal à direita da Fox News e que tem merecido vários elogios públicos de Donald Trump. Isso é que o faz quando se quer informar, mas não nega que, com outro fim em vista, chega a ver outros canais liberais. “Vejo a CNN e a MSNBC de vez em quando, só para poder ver o quão enviesados e desconetados da realidade eles são”, diz. “Porque é que eles não falam das coisas que a Fox mostra? Porque é que nunca falam do portátil do filho do Biden e daquilo que encontraram lá?”
Por esta esta altura, John já se foi embora e Tom ficou sem contraditório.
19h32
Fecharam as urnas em estados como a Virgínia Ocidental (foi o estado que mais votou em Donald Trump há quatro anos e por isso a Fox News declara-o como vencedor) e o Ohio (estado fulcral e, para já, sem vencedor claro). Enquanto não há certezas, Barbara lança uma dúvida.
Há quatro anos, nas ruas de algumas das principais cidades dos EUA, várias pessoas, a maior parte jovens, entoaram o seguinte cântico contra Trump: “Não é meu Presidente!”. “E agora o que é que vão fazer se Trump ganhar outra vez?”, perguntou. “Que raio é que vão fazer ao nosso país?”.
19h54
A televisão mostra um centro de contagem de votos em Filadélfia, a maior cidade deste estado e um polo fortemente democrata num estado que, na sua extensão, é maioritariamente republicano. “Ali estão eles a inventar votos, ó para eles a roubar, é só roubar”, diz Chris, lançando dúvidas sobre o processo eleitoral. É a segunda vez que abre a boca esta noite. A primeira foi quando lhe perguntaram “então não trouxeste a tua mulher?”. A resposta, meio envergonhada, foi: “Ela é democrata”.
19h57
Agora que começou a falar, Chris parece estar lançado. “Já agora, é preciso dizer isto”, começa por dizer, antes de ir ao ponto. Desta vez, o ponto é que Joe Biden efabulou o seu passado em Scranton, cidade próxima desta onde estamos e onde Biden viveu até aos 11 anos. A ligação do democrata é constante — e é raro o discurso de campanha onde o ex-vice-Presidente não refere aquela cidade e como teve ali uma infância passada nas ruas, muitas vezes num ambiente desafiante.
“Onde é que ele vai buscar aquelas histórias de ter andado ali à porrada com os rufias do bairro?”, pergunta, num tom que oscila entre o exaltado e o zombeteiro. “Não havia rufias nenhuns ali, aquilo era um bairro da classe média. E como é que um miúdo de 9 ou 10 anos anda à porrada com rufias?”
20h07
John e Mary preparam-se para sair. A caminho da saída dos últimos dois democratas da casa, outra convidada, Christine, fica surpreendida com a preferência política do casal, que não conhecia. “Vocês são democratas?!”, perguntou. “Mas como é que a Kim tem amigos que…”, diz, deixando a frase por terminar.
20h10
Ainda à mesa da cozinha, discute-se a número dois de Joe Biden, Kamala Harris, e como é possível que o plano seja passá-la a número um rapidamente. A conviçcão de que esse é o plano de Kaméla/Kamila/Kamála (a pronúncia correta do nome da senadora da Califórnia é Ká-mâ-la, mas por aqui ninguém acerta com ela) é partilhada por várias pessoas à mesa.
“A Kaméla é deplorável, é absolutamente nojenta e, pior, é uma socialista”, diz Jolynda, empregada de balcão num bar, que trouxe a filha de 16 anos consigo. Enquanto esta faz os trabalhos de casa no portátil mesmo ao seu lado (a disciplina é psicologia), Jolynda assume: “A Kamila usa a vagina dela para chegar onde quer e, para mim, isso é nojento. Não é algo que eu admita que a minha filha possa ver e tomar como um exemplo a seguir. Tal como a Hillary”. Em alternativa, vê na família Trump e na sua ala feminina o oposto — e, por isso, o recomendável. “Melania e as raparigas Trump, todas, são umas verdadeiras senhoras com classe”, diz. “Vestem-se como mulheres e agem como mulheres.”
20h23
Na ponta oposta à cozinha está o bar. Enfiado a um canto, Chris senta-se por trás daquele balcão de madeira e vai fazendo surgir bebidas à medida que elas são pedidas. Enquanto isso, fala-se de Filadélfia — cidade ímpar na Pensilvânia e, para muitos nesta casa, a prova de muitos exemplos a não seguir.
Um deles é o da violência nas ruas, voltou a acontecer uma semana antes das eleições, na sequência da morte de um afro-americano de 27 anos durante uma ação policial. Depois desse incidente, houve manifestações políticas de um lado da cidade e pilhagens de outro.
“E eram todos negros, não eram?”, pergunta Kim. “Por isso é que votamos em Trump. Ele nunca deixaria que isso acontecesse numa cidade republicana. Nunca.”
20h40
De repente, ouve-se o estrondo de um copo a desfazer-se em vários estilhaços. Os olhos vão todos para Chris, que está agora encolhido com vergonha atrás do bar. “Kim, acho que parti alguma coisa…”, diz. “Como da outra vez.”
Esta “outra vez” foi, precisamente, há quatro anos, quando Kim juntou alguns destes amigos em casa para assistir à noite eleitoral.
“Deixa lá, é só um copo”, disse. “Além de que, da última vez, deu sorte.”
20h55
Primeiro, grandes sorrisos. Depois, grandes preocupações.
A esta hora, a Fox News já aponta 93% de probabilidade para uma vitória a Donald Trump no estado da Flórida — uma peça fundamental da sua vitória de 2016 e uma conquista obrigatória caso queira continuar na Casa Branca.
Há quem festeje com palmas, mas, atrás do bar, Chris assinala esta notícia com ar blasé. “Olha que novidade”, diz com ironia.
Mas, logo a seguir, o mesmo canal dá 89% de probabilidades a Joe Biden para ganhar na Carolina do Norte — outro estado que fez parte da combinação vitoriosa de Donald Trump em 2016 e que o Presidente está proibido de perder em 2020. “O Biden está à frente na Carolina do Norte?!”, diz Chris. “Aposto que andaram a distribuir comida gratuita!”
21h02
A Fox News dá o Arizona (outro estado que Donald Trump venceu há quatro anos) a Joe Biden. Joelynda muda imediatamente de expressão — da descontração que tinha até aqui passa à consternação que terá nos próximos momentos.
“Estou a ficar nervosa”, diz. Ao lado, Christine, a desempregada que não acredita que a sua amiga Kim se podia dar com democratas, junta-se-lhe. “Estou muito nervosa”, diz. Nisto, abre a garrafa de vodka que trouxe de propósito para esta noite e despeja-a para dentro de um termo. “Vai já assim, pura.”
21h11
Chris vai embora. Em casa, espera-o a mulher, democrata. “Vou dormir com esta camisola vestida”, disse, a respeito da sua t-shirt vermelha de apoio a Donald Trump.
21h14
Na cozinha, perante a presença invulgar de uma equipa de dois jornalistas portugueses na casa, as perspetivas negativas para Donald Trump levam alguns equacionar uma mudança para o nosso país. “Podemos ir viver todos para Portugal se o Biden ganhar?”, perguntam. Porém, logo perdem a vontade quando são informados dos escalões do IRS e da carga fiscal sobre os rendimentos. “Ah é?”, pergunta Joelynda. “Então é melhor não.”
21h21
Joelynda está a falar com Tom — e, pelo tom, isto é tema recorrente. “Não é que eu acredite nisso, mas, se eu pudesse escolher o marido da minha filha, de certeza que escolhia o teu filho do meio”, diz. A filha, Sammy, está ali mesmo ao lado e faz que não ouve. “O teu filho é um cavalheiro e um excelente agricultor, tenho a certeza de que ele nos podia dar duas cabras para nós fazermos queijo”, continua Joelynda.
“Estou a brincaaaar”, acrescenta logo a seguir, mas, ainda assim, continua a falar do tema. “Arranjávamos duas cabrinhas, que depois procriavam, e ficávamos com mais e mais”. “Podíamos fazer uma série de coisas, tenho a certeza de que o teu filho nos ia ajudar.”
Joelynda ri-se, Tom também, mas Christine já não está para piadas — os resultados parecem não ser de feição a Donald Trump e, por isso, está preocupada. “Ah, queres cabras, é?”, pergunta a Joelynda. “Isso que tu queres é uma comuna. Pronto, é assim: Biden vai ganhar e não vamos ser todos comunistas com as nossas cabrinhas!”
A mesa ri-se, porque sabe que era uma piada. Mas é um riso nervoso, porque sabem que os números estão a ficar complicados para Trump.
21h38
“Odeio este homem”, comenta Joelynda. “Este homem” é Chris Wallace, jornalista da Fox News e moderador do primeiro debate entre Donald Trump e Joe Biden.
Tom responde: “Eu gosto dele”. Joelynda nem quer acreditar. “Gostas dele?!”, diz. “Ele fartou-se de interromper o Trump no debate, não te lembras?”, acrescenta.
Tom parece confuso. Depois, olha para a televisão e esclarece: “Credo, não, claro que não! Estava a pensar noutra pessoa. O Wallace é terrível, está feito com o Biden”.
21h40
Joelynda regressa a Kamala Harris, porque não consegue deixar de pensar na hipótese de a número dois de Joe Biden vir a ser número um num prazo muito curto, caso os democratas vençam. Outro sinal nesse sentido, garante, é o esforço da democrata Nancy Pelosi para criar uma comissão bipartidária para avaliar as capacidades físicas e mentais de um Presidente para servir no cargo — abrindo a possibilidade de a sua remoção ser feita ao abrigo da 25.ª Emenda da Constituição.
“Ela não fez aquilo por causa de Trump, ela fez aquilo por causa de Biden”, diz, defendendo que o plano dos democratas é o de substituir Biden “seis semanas depois de ele tomar posse”. E um indicador nesse sentido é, para Joelynda, uma máscara utilizada por Nancy Pelosi, num padrão composto por várias laranjas.
“Qualquer pessoa que tenha visto o Padrinho sabe que, sempre que aparece uma laranja, morre uma pessoa”, diz. “Ela usou aquela máscara porque quer que o Biden morra.”
21h49
Na Fox News, um jornalista vai analisando os vários cenários em jogo, escolhendo-os num ecrã tátil. Recorrentemente, faz a comparação com as eleições de há quatro anos — o que o leva a referir várias vezes o nome de Hillary Clinton.
Não é um nome que caia bem nesta cozinha. “Porque é que ele tem de estar sempre a falar dela?”, pergunta Tom. “Ela já é passado, ninguém quer saber dela para nada.”
22h00
Joelynda isola-se na sala, longe do resto do grupo, que continua na cozinha. Está no pico das suas preocupações. Afastada da filha e dos amigos, diz-se preocupada com a chegada do comunismo aos EUA. “Não tenho tido uma vida muito fácil. Tive cancro e vivi coisas muito traumáticas. E não quero que a minha filha tenha um futuro como o meu passado”, diz. “Agora, é bem possível que venha o socialismo, que depois leva sempre ao comunismo. Isso assusta-me. Não quero que o governo me diga como é que devo usar o meu dinheiro, não quero ter de ir às compras com um cartão de racionamento. Quero dar à minha filha a comida que eu bem entender.”
22h04
Na cozinha, Christine também está a dar voz ao seu pessimismo. A vitória de Joe Biden parece agora mais certa do que nunca para esta mulher que, até abril, trabalhou para uma empresa de distribuição de comida e que, por força do confinamento, abriu falência. “Por este andar, nunca mais vou poder trabalhar no meu ramo”, diz. “Vou ter de ser empregada de mesa o resto da minha vida e, se entrarmos no caminho do socialismo a todo o gás, vamos ser obrigados a viver da terra, a pescar e a caçar para comer.”
Tom não discorda, mas acrescenta: “Esquece lá isso da caça, porque eles vão tirar-nos as armas”.
22h12
Forma-se uma reviravolta. A emissão da da Fox News foca agora nos vários condados da Pensilvânia e, quando veem os contornos do condado de Luzerne, onde se insere Wilkes-Barre, o grupo festeja com estrondo. Kim bate na mesa com uma felicidade furiosa, Christine passa a beber a sua vodka com gosto e Tom grita “estamos a ganhar!”. Ouvindo toda esta comoção, Joelynda sai do seu torpor do outro lado da parede que separa a cozinha da sala e chega a tempo de ouvir que no condado de Lackawanna, onde se inclui Scranton, a cidade-natal de Joe Biden, Donald Trump vai à frente.
“Foi por causa do comício!”, garante Joelynda, referindo-se ao comício de Donald Trump no aeoporto de Scranton e de Wilkes-Barre na véspera. “Eu fui lá e nunca vi nada assim, na televisão não mostram nem metade do que lá se passa e do sentimento patriótico que abunda ali.”
22h17
Na Fox News, surge a notícia de que, em Filadélfia, foi suspensa a contagem de votos por correspondência e que esta seria retomada apenas às 9h00 desta quarta-feira. Tom não quer acreditar no que está a ouvir. “Deixarem de contar os votos em Filadélfia! Deixaram de contar os votos em Filadélfia”, disse. “É a cidade mais corrupta do mundo!”
22h29
Na televisão, aparece Harris Faulkner, jornalista da Fox News. Kim olha muito compenetrada para o ecrã, até que diz: “Quem é esta? É igualzinha ao meu gato, é igualzinha ao meu gato sem pelo!”. A mesa irrompe em gargalhadas, dúvidas houvesse da sua renovada confiança numa vitória de Donald Trump.
22h42
Tom ainda não está em si. “Filadéfia parou de contar votos! Filadélfia parou de contar votos!”, diz. “Esta merda é inacreditável.”
23h03
Por momentos, os olhos deixam de ir para a televisão e focam-se na decoração da casa de Kim. Na cozinha destaca-se uma cabine telefónica antiga. “As pessoas nunca acreditam, mas o telefone funciona!”, diz. Tanto que pega no telemóvel e liga para aquela cabine, de onde se ouve um trrrriiiiiim à antiga. Joelynda já conhece a história de como é que a cabine foi parar ali, mas, ainda assim, pede a Kim que a repita.
“Estava em Filadélfia, com o meu namorado da altura, que trabalhava nas obras. Ele disse-me que, no sítio onde ele estava a trabalhar, havia uma antiga cabine e eu disse logo que queria levá-la para casa. Mas depois não tinha como levá-la, então liguei ao meu irmão e disse-lhe: ‘Tens de trazer a tua carrinha para Filadélfia'”, conta. “Quando chegámos a casa, não conseguíamos tirar a cabine da carrinha. Então fui a correr buscar dois homens fortes”, continua. “Não perco isto nem por nada!”, disse-lhe um deles, antes de arregaçar mangas.
Quando chega ao final do relato, Joelynda desmancha-se a rir. “Só tu!”, atira-lhe. “Adoro esta história.”
23h07
Outra história que este grupo aprecia é a das eleições de 2016 — e, a esta hora, parece que pode estar prestes a repetir-se. Agora, a Fox News projeta que a Flórida é de Donald Trump. Christine dá conta deste desenvolvimento e diz logo: “Se já temos a Flórida, já ganhámos. Vou-me embora”. E assim veste o casaco, bebe o que lhe resta da vodka no termo e guarda a garrafa num saco. “Vou dormir”, diz, antes de sair porta fora.
23h21
A esta hora, a Fox News dá o Arizona a Joe Biden. “Isto muda a…”, diz Bret Baier, pivot da Fox News. Tom completa-lhe a frase: “… matemática”. Ainda assim, também ele anuncia que se vai embora. “Amanhã trabalho, quer haja Presidente ou não”, diz. Joelynda e a filha aproveitam a boleia de Tom e vão com ele.
Kim fica, enfim, sozinha em casa.
23h27
Ao contrário dos vários amigos que foram saindo da sua casa, Kim não está otimista. Mas também não está pessimista. “Ainda é cedo, ainda é muito cedo”, diz. Mas preocupa-a o facto de tudo poder depender de um estado — a Pensilvânia — e em particular da cidade de Filadélfia. “É uma cidade muito, muito democrata.”
23h49
Na Fox News, as análises que vão surgindo em direto apontam para uma vantagem considerável, embora reversível, de Donald Trump sobre Joe Biden. Tudo isto intercalado com intervenções de Tucker Carlson, célebre apresentador da Fox News e homem próximo de Donald Trump, a partir de outro estúdio.
“Temos de prestar atenção ao realinhamento em curso. O condado de Starr, no Texas, é dos mais pobres do país. Há quatro anos, os democratas ganharam ali por 60 pontos. Agora, Joe Biden ganhou por 5 pontos. Isto diz-nos uma coisa: não é uma questão racial”, diz. “Aquilo a que estamos a assistir é o Partido Republicano a tornar-se no partido de quem vive do seu trabalho.”
Kim olha para tudo isto com a cara dominada pelo sono. Ainda assim, acompanha Tucker Carlson a responder a uma nova questão: “A negócio das sondagens está morto?”. Kim ri-se, Tucker Carlson vai à jugular: “Espero bem que sim e conheço algumas pessoas que deviam ser despedidas.” E depois deixa-lhes um conselho: “Aprendam a fazer alguma coisa de útil, vão aprender a colocar contrapalacado, vão aprender a pintar paredes, qualquer coisa, desde que não estejam aqui a atirar a nossa profissão para a lama”.
00h17
“Ainda é muito cedo”, insiste Kim, sobre os resultados. Mas, ao mesmo tempo, já é muito tarde. Por isso, já sem qualquer um dos seus amigos em casa, decide ir deitar-se. “Vou vestir o meu pijama”, diz, convidando-nos a sair. “Vou enfiar-me na cama, que foi como fiquei a saber que Donald Trump tinha dado cabo da Hillary Clinton há quatro anos. Mas não creio que desta vez seja igual.”
Até ver, sem decisões, não foi mesmo.