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A noite em que o IRA quase matou Margaret Thatcher

Há 40 anos, uma bomba explodia no Grand Hotel em Brighton, matando cinco pessoas e ferindo mais de 30. O alvo, a primeira-ministra britânica, sobreviveu incólume — dois minutos fizeram a diferença.

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O dia é 15 de setembro, o ano 1984. Por volta do meio-dia, um homem chega à receção do Grand Hotel, um imponente edifício na cidade costeira de Brighton (Reino Unido) e pede um quarto para três noites. Paga logo as 180 libras correspondentes em dinheiro vivo. A rececionista dá-lhe a chave do quarto 629 e entrega-lhe um papel para que preencha com os seus dados. O homem identifica-se como Roy Walsh, de nacionalidade inglesa e com morada em Braxfield Road, Londres.

Os dados são todos falsos. Mas, mais relevante do que isso, é a forma como o homem — que, na verdade, se chama Patrick Magee, é norte-irlandês e passa a vida a saltar entre Londres, Belfast e Dublin — preenche o cartão: escrevinha com a caneta numa mão e evita tocar com os dedos da outra no papel. O objetivo é o de não deixar impressões digitais, porque Magee está no Grand Hotel com uma missão muito clara: a de deixar lá plantada uma bomba que, esperam o homem e a organização que representa, venha a matar a primeira-ministra britânica. Está assim em marcha o plano do IRA, a organização terrorista republicana irlandesa, para assassinar Margaret Thatcher dali a menos de um mês. A bomba rebentará a 12 de outubro, mas Thatcher sobreviverá. Neste momento, contudo, Magee não faz ideia do que vai acontecer.

Nos dias seguintes, o operativo do IRA nascido em Belfast (mas que cresceu em Norwich, Inglaterra, razão pela qual consegue mascarar o carregado sotaque da Irlanda do Norte) almoça no Grand Hotel com outro homem, que, quarenta anos depois, continua por identificar. Passa a maior parte do tempo no quarto, com o papel que pede para “Não incomodar” do lado de fora da porta. Duas mulheres — cujas identidades também permanecem um mistério — visitam-no ao longo desses três dias. Levam-lhe materiais para o fabrico da bomba que está a montar.

O plano do IRA é sofisticado e foi pensado ao pormenor. O explosivo, colocado por trás de um painel na casa-de-banho, tem um contador para explodir apenas no dia 12 de outubro. Está no quarto 629 precisamente porque este fica alguns andares acima da Suite Napoleão, que ocupa os quartos 129 e 130, onde os separatistas pensam que a primeira-ministra ficará alojada dali a umas semanas, durante o Congresso do Partido Conservador, em Brighton. Um engenheiro do IRA estima que, naquele local, a bomba conseguirá fazer colapsar a pesada chaminé do edifício, que, ao ruir, arrastará todos os que estiverem por baixo — uma espécie de “guilhotina”, como descreveu Rory Carroll, autor do livro Killing Thatcher (sem edição em português), a obra mais completa sobre os acontecimentos no Grand Hotel naquele ano de 1984.

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Quando faz o check out, três dias depois, Magee continua a alimentar a dúvida: será que, ao ruir, a chaminé atingirá exatamente Thatcher? É da física — e da sorte — que depende o sucesso desta operação terrorista.

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Margaret Thatcher no salão do Grand Hotel na véspera do atentado

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Pouco tempo depois, na segunda semana de outubro, são postos em marcha os preparativos de segurança para o Congresso dos tories no Grand Hotel. Os quartos são revistados, inclusivamente com cães pisteiros, mas estes não detetam o explosivo. Mais tarde, as autoridades especularão que terá sido porque Magee enrolou a bomba em película aderente, o que terá ajudado a mascarar o cheiro. Pouco depois, chegam Margaret Thatcher e o marido, Denis, que se instalam na Suite Napoleão — a mesma onde os ABBA festejaram na noite em que venceram a Eurovisão, com a famosa canção “Waterloo”.

Na tarde de quarta-feira, já com Thatcher e todos os delegados conservadores a participarem num beberete no salão do Grand Hotel, um telegrama interno da polícia é enviado para as chefias: nele avisa-se que, como o Sinn Féin — o partido político irlandês que mantém ligações ao IRA — terá o seu Congresso (o Provisional Sinn Féin Ard Fheis) em novembro, “os líderes do movimento estarão ansiosos para levar a cabo uma ação militar, a fim de reforçar os ânimos dos apoiantes antes dessa data”. “A nossa avaliação é de que os potenciais alvos militares e políticos devem ser alvo de especial atenção durante estas semanas antes do Ard Fheis”, lê-se no telegrama. Mas não há qualquer reforço especial de segurança no Congresso dos conservadores, nem sequer para a primeira-ministra.

O primeiro dia do evento é dominado por Norman Tebbit, o ministro do Comércio de Thatcher que é considerado por muitos ainda mais implacável do que a Dama de Ferro: “Mais combativo, mais radical, possivelmente mais ambicioso”, resume Rory Carroll em Killing Thatcher. “Os adversários chamavam-lhe uma doninha semi-treinada, o Príncipe das Trevas e pior ainda. Os seus discursos galvanizavam sempre os tories.” Assim acontece neste primeiro dia, com Tebbit — visto por muitos como um possível sucessor de Thatcher — a receber a maior ovação da tarde.

Na noite de quinta-feira, dia 11 de outubro, Thatcher está na Suite Napoleão a preparar o discurso que fará ao Congresso no dia seguinte, quando decide fazer uma pausa para descer ao bar do hotel, onde os tories estão em festa. É recebida com uma adaptação de uma canção de Louis Armstrong, com a banda a entoar “Hello, Maggie, it´s so nice to have you back where you belong”. Bem disposta, cumprimenta os presentes e dá autógrafos.

Às 23h15, regressa à sua suite. Faltam menos de quatro horas para a bomba que Patrick Magee plantou no quarto 629 explodir.

“Crime é crime é crime.” A greve de fome de Bobby Sands e dos outros presos que fez crescer o ódio do IRA a Thatcher

A decisão do IRA de tentar matar Thatcher em 1984 surge na sequência de um crescendo de ataques do grupo em Inglaterra, numa altura em que os conflitos dos Troubles na Irlanda do Norte — que opõem a minoria católica republicana (próxima da Irlanda) aos unionistas protestantes (próximos do governo de Londres) — rugiam com toda a força.

Em 1979, ainda antes de a Dama de Ferro chegar ao poder, o seu aliado Airey Neave morre numa explosão provocada por uma bomba colocada debaixo do carro por outro grupo separatista irlandês. Três meses depois, o Lorde Mountbatten — antigo vice-rei da Índia e amigo próximo da Família Real — é morto por uma bomba do IRA posta no seu barco. Nesse mesmo dia, o grupo irlandês faz outro ataque que mata 18 soldados britânicos em Warrenpoint. Todos os atentados distinguem-se por, ao contrário do habitual, não terem acontecido em território norte-irlandês, mas sim em Inglaterra. Eram parte do trabalho do “Departamento Inglês”, a célula do IRA responsável por levar os Troubles para Inglaterra.

Quando Margaret Thatcher é eleita primeira-ministra, em maio de 1979, o atentado contra Mountbatten ainda não aconteceu. Apesar de na Irlanda do Norte continuarem a morrer dezenas de civis, polícias e soldados há dez anos, os Troubles e aquela região do Reino Unido não estão no topo das preocupações da Dama de Ferro.

Focada na Middle England, Thatcher não presta grande atenção às reivindicações da minoria católica, nem ao descontentamento dos unionistas pró-britânicos. O diplomata David Goodall ilustra o alheamento da conservadora sobre o tema nos primeiros tempos em Downing Street com uma conversa a que assistiu, em que esta sugeriu que a situação talvez se pudesse resolver transferindo todos os católicos para a República da Irlanda, algo a que os irlandeses estariam habituados, disse.

Goodall perguntou-lhe se estaria a pensar no exemplo de [Oliver] Cromwell, referindo-se ao fidalgo que levou a cabo campanhas militares brutais contra os católicos na Irlanda no século XVII, que incluiam a deslocação de católicos do norte para o sul da Irlanda. “Cromwell, claro”, respondeu Thatcher. Segundo Goodall, este respondeu-lhe: “Bem, primeira-ministra, a política de Cromwell ficou conhecida como ‘Para o inferno ou para Connaugt [província irlandesa]’ e deixou uma cicatriz nas relações anglo-irlandesas que ainda hoje não sarou”. Thatcher abandonou a ideia.

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Seria, porém, obrigada a prestar atenção ao tema. É com Thatcher no cargo de primeira-ministra que os Troubles atingem um ponto de tensão máximo. Pouco antes de ser eleita, já os reclusos do IRA na prisão de Maze tinham iniciado protestos por terem perdido oficialmente o estatuto de presos políticos, passando a ser considerados “prisioneiros comuns”. Primeiro, fizeram a “manifestação dos lençóis”, enrolando-se neles como se fossem roupa, por se recusarem a usar o uniforme da prisão; depois, levaram a cabo a “manifestação suja”, sujando as próprias celas com os seus excrementos. Mas o governo trabalhista de James Callaghan não cedeu.

Chegada ao poder, a Dama de Ferro também não. E os protestos intensificam-se. Em 1981, um grupo de prisioneiros ligados ao IRA começa uma greve de fome dentro da Maze. Thatcher mantém-se firme: “Crime é crime é crime”, declara a primeira-ministra. “Não é político. É crime. Não pode haver qualquer estatuto político.”

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Uma das celas da prisão de Maze durante "a manifestação suja"

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Em pleno braço-de-ferro, surge uma oportunidade para os republicanos, com uma eleição inesperada para um lugar de deputado na Irlanda do Norte. O Sinn Féin decide apresentar como candidato Bobby Sands, um dos protagonistas mais mediáticos da greve de fome, cujo estado de saúde se vai degradando. Sands é eleito — e o IRA consolida a sua estratégia conhecida como “Armalite [conhecida fabricante de metralhadoras] e Urnas”, combinando a violência terrorista com a consolidação política. Pouco depois, porém, Sands seria o primeiro a levar a greve de fome até ao fim, mas sem vitória: morre a 5 de maio de 1981 na prisão.

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“O senhor Sands era um criminoso condenado. Foi ele que escolheu privar-se da sua vida”, declarou Thatcher na Câmara dos Comuns. Em privado, a primeira-ministra demonstrava mais humanidade nas cartas trocadas com familiares dos prisioneiros e até dizia admirar a coragem dos grevistas: “É preciso dar algum reconhecimento a estes rapazes do IRA. Que desperdício, que terrível desperdício de vida humana”, chegou mesmo a dizer, revelaria anos mais tarde o seu biógrafo oficial Charles Moore.

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Funerais de Bobby Sands (à esquerda) e Patsy O'Hara (à direita), dois dos membros do IRA que morreram a fazer greve de fome

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Mas nada havia a fazer. Entre os republicanos irlandeses, estava cristalizada a perceção de que a primeira-ministra não era apenas uma adversária política, mas sim uma inimiga da sua causa. “A agonia de Sands — bem como a dos outros grevistas que se lhe seguiram — provocou uma alquimia que transformou a morte em renascimento, um encantamento misterioso que Thatcher nunca percebeu”, resume Rory Carroll, hoje em dia correspondente do The Guardian na República da Irlanda e na Irlanda do Norte.

É por volta desta altura que o “Departamento Inglês” do IRA começa a discutir a possibilidade de matar Margaret Thatcher, na esperança de que, com Inglaterra abalada nas suas fundações com o assassinato da primeira-ministra, se abrisse uma brecha para a vitória dos separatistas irlandeses. Três anos mais tarde, o plano era colocado em marcha por Patrick Magee no Grand Hotel.

Dois minutos que fizeram a diferença para Thatcher, papéis de Estado a esvoaçar entre os destroços e ministros nus cobertos de poeira. A noite do atentado de Brighton

É hora de regressar à madrugada de 12 de outubro de 1984.

São quase duas da manhã, os trabalhos do Congresso estão encerrados por hoje, e Michael Portillo, um jovem conselheiro do governo de Thatcher, está no bar do Grand Hotel a conversar e a beber com um jornalista que o está a desafiar. “A vossa política é de criação de desemprego. Isso é um facto”, diz-lhe o repórter. Michael chateia-se: “Já estava farto daquele discurso de bêbado baboso e portanto saí do Grand e fui para o meu hotel”, recordaria anos depois. “Talvez tenha sido o aborrecimento que aquele jornalista me provocou a salvar-me a vida.”

Por volta da mesma hora, Margaret Thatcher está na Suite Napoleão a reler e editar o discurso que pretende ler no dia seguinte no Congresso. Às 2h40, decide encerrar o assunto, mas continua a trabalhar noutras matérias. Dez minutos depois, o seu secretário pessoal, Robin Butler, bate-lhe à porta para pedir que reveja um último documento, sobre o Festival de Jardinagem de Liverpool. Thatcher, conhecida workaholic, dá uma vista de olhos rápida no texto e expressa as suas opiniões. Começa depois a arrumar os papéis e vai à casa de banho.

Dois minutos depois, a bomba de Patrick Magee explode com toda a força das suas 15 toneladas. No Pink Coconut, a discoteca perto do hotel onde alguns tories ainda se divertiam, ouve-se perfeitamente o som da explosão por cima da música debitada pelas colunas.

Thatcher, que tinha acabado de sair da casa de banho, ouve o barulho da explosão e um segundo ruído que não identifica de imediato, mas que são partes da estrutura do edifício a caírem. “Soube imediatamente que era uma bomba — talvez duas, uma maior e outra mais pequena —, mas naquele momento não sabia que a explosão tinha acontecido dentro do hotel”, recordaria a primeira-ministra mais tarde. “Vidros das janelas da sala de estar estavam espalhados pela carpete. Mas achei que podia ter sido um carro-bomba a explodir lá fora.”

Nos segundos imediatamente a seguir à explosão, o secretário Robin Butler volta atrás no corredor, de gatas, para ver se a primeira-ministra está bem. Ao entrar na suite diz-lhe para se afastar da janela, com medo dos estilhaços, mas Thatcher — que também está de gatas e descalça — decide levantar-se e entrar na zona do quarto para ver o marido: “Tenho de ver se o Denis está bem”, responde. Ao mesmo tempo, o teto da casa-de-banho da Suite Napoleão começa a colapsar. Um pensamento passa pela cabeça do secretário Butler, como o próprio confessaria ao autor de Killing Thatcher: “Se ela morrer, o que irei dizer à comissão de inquérito?”

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Thatcher não morreu. Dois minutos antes da explosão, que acontece exatamente às 2h54, a Dama de Ferro tinha saído da casa de banho e sentara-se num cadeirão para continuar a ler papéis. Aquilo que a primeira-ministra não sabia é que tinha evitado a morte por dois minutos. Se tivesse demorado mais dois minutos na casa-de-banho, a chaminé que ruiu com a explosão tê-la-ia atingido, por cima do quarto 129 da suite. Mas como Thatcher estava no quarto ao lado, o 130, já a ler a caixa vermelha de documentos oficiais no cadeirão, escapou sem um arranhão.

Vendo que o marido Denis está bem, os Thatcher vestem-se apressadamente para sair do edifício. “Isto foi para mim”, decreta a primeira-ministra ao secretário pessoal. A seguir, sai para a sala contígua onde estão a trabalhar as suas datilógrafas para ver como estão. “Uma delas tinha sentido um choque elétrico feio da fotocopiadora, mas no geral estava bem”, contou Thatcher. “Estavam tão preocupadas com o meu discurso ainda não totalmente datilografado quanto estavam consigo próprias. ‘Está tudo bem’, disseram-me elas, ‘conseguimos acabá-lo’. Uma cópia foi de imediato colocada na minha pasta.”

Assistindo a isto, Butler diz aos Thatcher que têm de seguir de imediato para Downing Street, em Londres, por uma questão de segurança. Thatcher responde-lhe apenas “Eu não me vou embora”.

Enquanto a primeira-ministra finca o pé com o secretário pessoal, começam a chegar ao Grand Hotel os que vêm prestar auxílio. Um dos primeiros polícias a chegar, Paul Parton, recordaria aquilo que viu no edifício junto ao mar: “À medida que nos aproximávamos e o pó começava a assentar, podíamos ver [um polícia] deitado no chão, a ser auxiliado por outros polícias. Pessoas aos gritos nas varandas, alarmes a soar, água a sair de canos perfurados e as pessoas lá em cima. Foi horrífico.”

Carlos Perez-Avila, um médico de El Salvador, foi um dos primeiros socorristas a chegar ao local. “Entra-se em piloto automático, faz-se simplesmente o trabalho, cada pessoa é só um paciente”, explicaria anos mais tarde à BBC. Seriam precisas sete horas para perceber que tinha assistido a um ato de terrorismo, quando o líder parlamentar John Wakeham foi retirado dos escombros e alguém deu ao médico um número de telefone que era o do número 10 de Downing Street. “Foi aí que se fez o clique: estas são pessoas muito importantes.”

David Hughes, jornalista do Daily Telegraph, estava em Brighton para cobrir o Congresso, mas alojado noutro hotel, o Metropole. Acordou de um sono profundo com alguém a bater-lhe à porta a dizer para sair, por haver um alerta de bomba. Quando chegou ao lobby, ficou perplexo ao ver ali vários membros do governo, cobertos de poeira. “Rapidamente soube. Menos de uma hora antes, a fachada do Grand Hotel fora destruída por uma bomba. Os retirados foram levados para o Metropole, mas estavam agora a ter de sair novamente por receios de que houvesse outra bomba ali”, contou num artigo publicado 25 anos depois. “Sir Keith Joseph, o ministro da Educação, estava particularmente elegante de pijama e com um robe Paisley. Apertava na mão direita a caixa vermelha ministerial. À medida que a noite avançou, usou-a como banco para se sentar.”

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Imagens da destruição dentro do Grand Hotel

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No Grand Hotel, as caixas vermelhas que contêm os documentos confidenciais do governo estavam espalhadas pelo chão e as folhas de papel que continham voavam pelo ar. Segundo o The Guardian, alguém apanhou o que foi possível e os documentos foram levados por um Land Rover da polícia.

Nem todos os tories que estavam dentro do hotel naquele noite, contudo, escaparam ilesos como Thatcher. O assessor de imprensa Harvey Thomas estava a dormir quando a bomba detonou e, nos primeiros minutos, pensou que estava a sonhar que caía num buraco. Até que percebeu que não era um sonho: “Parecia que estava a cair mais depressa do que os destroços e tive a sensação de que se aterrasse em algo sólido os destroços iam cair em cima de mim”. Acabaria por ficar duas horas e meia soterrado, até ser finalmente resgatado, completamente nu.

O conselheiro Michael Dobbs — mais tarde tornado autor do thriller House of Cards — acordou estremunhado, coberto de poeira, mas fisicamente bem. Saiu pela escada de incêndio e, à medida que descia, foi-se apercebendo da dimensão da explosão, quando se cruzou com um membro do governo agachado, completamente nu, com apenas uma toalha — Dobbs deu-lhe o seu casaco. “Mais abaixo, estava outro político sénior, Sir Jock Bruce-Gardyne, vestido de forma imaculada com um fato de três peças e gravata que gritavam resiliência, um efeito arruinado por duas meias coloridas de cores diferentes. Desde então, passou a ser conhecido como o ‘Jock Uma Meia’.”

No meio do caos, quase todos reagiam com humor. Até os feridos mais graves diziam piadas para lidar com o que pouco antes era inimaginável. Foi o caso dos Tebbits, os sobreviventes mais gravemente afetados pela bomba do Grand Hotel. Norman Tebbit, o “Príncipe das Trevas” do Thatcherismo, ficara completamente soterrado, em completa escuridão, juntamente com a mulher, Margaret. Quando, ao fim de sete horas, foram encontrados e o bombeiro Fred Bishop se aproximou, ela disse-lhe para ir primeiro resgatar o marido. Bishop avaliou rapidamente a situação e dirigiu-se primeiro a Margaret. “Passa-me um colar ortopédico, Stan”, pediu ao colega. “Ele sabe”, pensou Margaret, enfermeira de profissão, que já suspeitava que tinha ficado permanentemente paralisada.

Quando finalmente a conseguiram retirar — e Margaret não sentiu nada  —, foi enrolada num cobertor de alumínio. “Sinto-me como um frango a ser enrolado para ir ao forno”, disse aos bombeiros, que não queriam acreditar na sua capacidade de mandar uma piada naquele momento. O marido não quis ficar atrás: quando chegou ao hospital — com uma omoplata, uma clavícula e várias costelas partidas — e lhe perguntaram se era alérgico a alguma coisa, respondeu secamente: “A bombas”.

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Sobreviventes do ataque a recuperar no hospital

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Nem todos tiveram oportunidade para lidar assim com a tragédia. Eric Taylor (responsável distrital do partido), Jeanne Shattock (mulher de outro responsável local), Muriel Maclean (mulher do líder dos conservadores na Escócia), Roberta Wakeham (mulher do ministro do Tesouro) e Anthony Berry (deputado) morreram na sequência da explosão.

“A vida tem de continuar, como sempre.” O discurso da Dama de Ferro horas depois do atentado

Horas antes, a primeira-ministra já tinha sido colocada a salvo.

Assim que Margaret Thatcher assegurou que o marido e a sua equipa estava bem, começou a preparar-se para sair. O seu motorista, Denis Oliver, foi de imediato à Suite Napoleão e encontrou-a a arrumar os seus papéis, de forma metódica, antes de sair. “Nunca me hei de esquecer. Eu perguntei-lhe ‘Está bem, primeira-ministra?’ e ela disse ‘Sim. Estou espantada que ainda não tivesse acontecido’”.

Às 3h10 da madrugada, apenas 15 minutos depois da bomba explodir, Thatcher já estava a ser retirada do quarto por agentes de segurança. Nos corredores do Grand Hotel, ainda se cruza com uma das primeiras equipas de bombeiros a chegar e diz a um deles “Obrigada por terem vindo”. Quando chega à rua, aqueles que já tinham conseguido sair e que aguardavam para saber notícias respiram de alívio. “A Maggie está a salvo!”, grita alguém.

A primeira-ministra, Denis Thatcher e Cynthia Crawford são colocados dentro de um carro. John Downing, fotojornalista do Daily Express, consegue captar o momento antes de partirem: enquanto o marido e a assessora olham estremunhados para a lente, Margaret mantém-se com um ar estóico de olhar fixo no horizonte. O carro arranca para a esquadra da polícia de Brighton. “O IRA, aqueles sacanas”, comenta Denis Thatcher durante a curta viagem. A primeira-ministra nada diz.

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A fotografia de Thatcher (ao centro) com o marido Denis (à esquerda) e a assessora Cynthia (à direita)

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Chegados à esquadra, vários agentes e conselheiros discutem acaloradamente onde deve a primeira-ministra passar a noite e como a fazer regressar rapidamente a Downing Street. E é então que Margaret Thatcher fala. “Meus senhores, estou aqui há algum tempo a ouvir esta discussão e é preciso tomarem-se decisões. Não me importo que me levem para lá, mas há uma ordem clara: tenho de estar aqui no local do evento novamente às 9h da manhã. Entendido?”

Se restassem dúvidas de que a primeira-ministra tencionava manter o Congresso do Partido Conservador a funcionar normalmente, ela rapidamente as dissipou. Por volta das 4h, saiu para a rua e falou aos jornalistas que ali aguardavam. “Ouve-se falar destas atrocidades, destas bombas, mas nunca achamos que nos vai acontecer a nós”, começa por dizer. “Mas a vida tem de continuar, como sempre”. “O Congresso vai continuar?”, pergunta-lhe John Cole, da BBC. “O Congresso vai continuar. Vai continuar, como sempre”, responde Thatcher.

A primeira-ministra fica assim a dormir na esquadra de Brighton. Quando chega à cama, comenta com Cynthia que o mais provável é “haver algumas mortes”. “Acho que seria bom se fizéssemos uma oração”, diz, antes de se ajoelhar e começar a rezar junto à cama. Depois, deita-se para tentar dormir.

Poucas horas mais tarde, Jennie Dack, que trabalha na loja da Marks & Spencer na Western Road, em Brighton, é acordada com uma chamada: o chefe pede-lhe que vá abrir a loja mais cedo, às 8h da manhã, porque os participantes no Congresso precisam de ir comprar fatos novos antes do evento começar. “Eles andavam por ali de pijama e pareciam fantasmas. Estavam cobertos de poeira e claramente em choque”, disse a funcionária mais tarde ao The Argus.

À mesma hora, Thatcher — já acordada — vai ter com o seu secretário Butler e diz-lhe que os trabalhos do Congresso têm de começar à hora prevista: 9h30. “Não pode estar a falar a sério, aconteceu esta coisa horrível, alguns dos seus colegas mais próximos morreram e estão gravemente feridos… Não vai mesmo avançar com o Congresso como se não tivesse acontecido nada, pois não?”, pergunta-lhe o colega. A primeira-ministra responde-lhe que “esta é a oportunidade para mostrar que o terrorismo não consegue derrotar a democracia”.

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Thatcher durante o discurso perante o Congresso do Partido Conservador, horas depois do atentado

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Thatcher fecha-se depois com outro dos seus secretários, Michael Alison, para rever o discurso. Os dois transformam por completo o texto. Inicialmente muito crítico do Partido Trabalhista, o discurso incluía referências ao líder da oposição, Neil Kinnock, como sendo “uma marioneta” de um partido que se tinha tornado “o inimigo entre nós”. O Labour, dizia Thatcher, era como uma “nuvem negra que larga uma chuva ácida que corrói a liberdade”. Todas essas referências foram expurgadas do texto.

Outro parágrafo, logo no início, é acrescentado. Thatcher entra pontualmente às 9h30 na sala, pela porta principal do centro de congressos, e é recebida com uma enorme ovação. Sobe ao púlpito e começa a ler o discurso, indo direta ao ponto: “O ataque à bomba no Grand Hotel esta madrugada foi, antes de tudo, uma tentativa desumana e indiscriminada de massacrar homens e mulheres inocentes e insuspeitos, que estavam alojados em Brighton para o nosso Congresso Conservador. Os nossos primeiros pensamentos devem estar com os que morreram e com os que estão no hospital a recuperar dos seus ferimentos.”

Depois das primeiras palavras para as vítimas, segue-se a mensagem política. “Esta foi uma tentativa de estropiar o governo democraticamente eleito de Sua Majestade. Essa é a escala da indignação que todos partilhamos e o facto de estarmos aqui agora reunidos — em choque, mas controlados e determinados — é um sinal de que, não só este ataque falhou, como todas as tentativas de destruir a democracia através do terrorismo irão falhar.”

A caça ao homem que termina graças a uma impressão da palma da mão do Chancer

Na manhã de sexta-feira de 12 de outubro de 1984, a maioria dos britânicos acordou com a notícia do atentado e da continuação do Congresso do Partido Conservador. A maioria assistiu ao discurso de Thatcher — incluindo Patrick Magee, enquanto bebia uma cerveja Guinness num pub em Cork, na Irlanda, para onde foi desde que fez check out do Grand Hotel semanas antes. Na noite anterior, só se foi deitar quando teve a certeza que a bomba explodira.

Ao ver o discurso da primeira-ministra pela televisão, Magee percebeu que a sua vida mudara para sempre desde aquele dia. “Os ingleses iam tentar tudo para encontrarem os responsáveis. Eu sabia que o meu nome ia aparecer. Ia passar a vida a olhar por cima do ombro. Eles nunca se iriam esquecer”, desabafou mais tarde, revela o livro de Rory Carroll.

Poucas horas depois, o IRA reivindicava o ataque. “A senhora Thatcher vai agora compreender que a Grã-Bretanha não pode ocupar o nosso país e torturar os nossos prisioneiros e alvejar o nosso povo nas nossas ruas e sair incólume”, diz o comunicado. Depois, enfrentando o facto de que o alvo principal — a primeira-ministra — saiu incólume do ataque, os terroristas deixam uma frase a pairar para o futuro: “Hoje tivemos azar, mas lembrem-se que nós só precisamos de ter sorte uma vez. Vocês têm de ter sorte sempre.”

O falhanço de segurança britânico em antecipar o atentado fora enorme. Mas, agora, o sistema iria colocar todo o seu peso num único objetivo: encontrar os responsáveis do IRA pelo atentado. Dez dias depois, o ministro da Administração Interna faz um ponto de situação na Câmara dos Comuns: “A tarefa de recolher pistas sobre a bomba é enorme. Até agora, 31 cestos e 750 caixotes do lixo cheios de destroços foram retirados do local. Duzentos e vinte e oito agentes da polícia estão envolvidos nesta operação. Os ventos fortes e o estado perigoso da estrutura do hotel dificultaram a tarefa”, diz Leon Brittan aos deputados. “Para além disto, mais de 200 agentes da polícia estão envolvidos na investigação.”

A investigação começa pelas provas recolhidas no local do crime. Os funcionários do hotel são todos entrevistados e os investigadores acabam por concluir que a bomba foi colocada no quarto 629 e muito provavelmente por “Roy Walsh” — o nome colocado no cartão de check in por Patrick Magee.

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Uma das poucas fotos de Patrick Magee divulgadas quando foi detido

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Esse cartão acabará por ser analisado por David Tadd, um dos principais especialistas em impressões digitais da Scotland Yard. Em 1984, o processo ainda era moroso e arcaico, envolvendo uma análise química com ninidrina, que precisava de dez dias para reagir e produzir resultados. Mais de um mês depois do atentado, a 13 de novembro, Tadd consegue identificar uma impressão palmar no cartão. Mas, sem ter com que a comparar, o técnico não tem como avançar.

Seria preciso esperar por janeiro para ter novos desenvolvimentos no caso do “Chancer” — a alcunha de Magee (que pode ser traduzida por algo como “Aquele que arrisca”), naquele momento escondido na Irlanda. Nos últimos meses, os agentes da Scotland Yard tinham passado dias e dias a comparar a impressão palmar recolhida por Tadd com registos de suspeitos de serem membros do IRA. Mas foi Stephen Turner, a 17 de janeiro, quem teve o golpe de sorte. Era improvável que fosse um dos registos de Norwich, em Inglaterra, a revelar alguma correspondência; mas foi exatamente assim. Ali estava “Roy Walsh”: na verdade, era Patrick Magee, homem nascido em Belfast que acabaria por ir depois para Norwich, onde teve alguns problemas de delinquência juvenil, antes de regressar à Irlanda do Norte e se entregar à luta política através do IRA.

Identificado o bombista, começa a caça ao homem. Foram mais alguns meses de buscas e vigilância, à medida que Magee e outros membros do “Departamento Inglês” se moviam pelo país, planeando novos atentados do IRA em Inglaterra. Até que, a 22 de junho de 1985, na cidade escocesa de Glasgow, tudo acaba.

“Patrick Magee e o resto da unidade do IRA estavam sentados à mesa da cozinha, na parte do trás do apartamento, a acabar um jantar de batatas, couves e bife. Não ouviram nenhum barulho nas escadas, mas ouviram bater à porta [do prédio]”, relata Rory Carroll em Killing Thatcher. Magee levanta-se, pensando que é o senhorio que vem cobrar a renda. Abre a porta do apartamento e pergunta “Posso ajudar?”. “No chão!”, grita-lhe um dos agentes enquanto outros o agarram e mais polícias entram no apartamento. Nenhum dos membros do IRA oferece resistência.

Magee opta pelo silêncio. Não fala durante os primeiros interrogatórios em Glasgow, nem no julgamento que acaba por ter lugar mais tarde, onde é condenado a 85 penas de prisão perpétuas pelo juiz Boreham, que o classifica como “um homem de crueldade e desumanidade excecionais”. À saída do tribunal, contudo, Patrick Magee ergue um punho e grita em gaélico  “Tiocfaidh ár lá” — “O nosso dia chegará”.

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Patrick Magee (ao centro) à saída da prisão

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O de Patrick Magee chegaria mais cedo do que o próprio pensava. O processo de paz na Irlanda do Norte, concluído através do Acordo de Sexta-Feira Santa de 1999, seria o seu passaporte para a liberdade. O Chancer foi abrangido pela amnistia a todos os presos do IRA (e das milícias unionistas). Ao todo, cumpriu 13 anos de prisão.

Brighton abriu caminho à paz? Difícil dizer. Porque Thatcher era um “camaleão” com a Irlanda do Norte

“O ataque tornou-se um dos grandes ‘E se?’. Se Thatcher estivesse dentro da casa-de-banho da Suite Napoleão ou se a avalanche de destroços tivesse feito outro percurso, ela podia ter morrido. Por uns parcos dois minutos ou uns quantos metros, a História podia ter mudado e com ela o destino da Irlanda do Norte, do Thatcherismo e da Guerra Fria.”

Rory Carroll resume assim no seu livro o grande impacto do atentado de Brighton, que se tornou para sempre matéria rica para os fãs de História alternativa. Se Thatcher tivesse morrido naquela noite, o que teria acontecido?

Nunca teremos uma resposta a essa pergunta. Mas temos resposta sobre o que aconteceu. Porque o impacto de Brighton nos destinos da Irlanda do Norte e do Reino Unido pode ter sido maior do que parece à primeira vista.

A noite de 12 de outubro de 1984 só entra para a História, em primeiro lugar, porque um homem que tinha poder para travar a operação não o fez. Gerry Adams, o líder do Sinn Féin que todos sabiam ser o cérebro do IRA — apesar de ainda hoje o negar —, não vetou o atentado, apesar dos riscos. Por um lado, ele próprio temia ser desafiado internamente se desse uma aparência de fraqueza, numa altura em que já enfrentava alguns críticos. Por outro, Adams já olhava duas jogadas à frente e não queria colocar em risco a estratégia de politização do movimento face à luta armada. A decisão acabou por ser favorável por duas razões, como resume Carroll: “Primeiro: o ataque iria aplacar os militaristas. Segundo: enquanto o IRA se mantivesse no negócio de matar, era melhor fazê-lo em Inglaterra, onde o Sinn Féin não ia a votos.”

Menos de um mês mais tarde, na conferência anual do Sinn Féin, Gerry Adams fala sobre o atentado no seu discurso, qualificando de “hipócritas” os que definem o atentado como “um ataque à democracia”. E não apresenta qualquer remorso: “Todas as mortes e fatalidades na Irlanda ou na Grã-Bretanha como resultado da guerra são tristes sintomas do nosso problema britânico e a explosão de Brighton foi um resultado inevitável da presença britânica neste país. Longe de ser um golpe contra a democracia, foi um golpe pela democracia.”

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Gerry Adams era o líder do partido Sinn Féin. Nunca confirmou o seu envolvimento no IRA, mas é apontado por várias testemunhas como tendo sido o líder efetivo da organização terrorista

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Thatcher tornara-se nos últimos anos a epítome daquilo que o IRA via como colonialismo inglês e os líderes republicanos estavam prontos a cavalgar essa onda. Mas o ressentimento do movimento aplicava-se a todo o establishment de Londres — afinal, sete anos antes de Brighton, Patrick Magee foi à mesma cidade avaliar o Congresso do Partido Trabalhista para estudar a possibilidade de realizar ali um atentado.

Mas, ao ter falhado, o atentado contra Thatcher acabou por ter alguns efeitos contrários ao desejado pelo IRA. O antigo conselheiro Michael Dobbs chama-lhe “a ironia suprema”. Em 1983, Thatcher terá confessado a um dos seus conselheiros, John Coles, que estava a pensar não se recandidatar nas eleições seguintes. O ataque ao Grand Hotel pode ter servido de combustível para a Dama de Ferro continuar. “O IRA tentou destruí-la. Em vez disso, ajudou a criá-la. A História tece-se em fios tão delicados”, nota Dobbs.

É tudo uma questão de interpretação da História, é claro. Da mesma forma que nunca teremos a certeza do verdadeiro impacto que o ataque teve nas negociações com o governo de Dublin, que já decorriam secretamente à altura do atentado. Inicialmente, a informação que chega pelos documentos desclassificados do governo britânico é de que Brighton terá servido para tornar Thatcher mais reticente a alcançar um acordo com os irlandeses sobre a Irlanda do Norte. “Estamos num mundo diferente depois da bomba de Brighton e devemos proceder devagar”, escreve a certa altura a primeira-ministra, que diz temer a aparência de que Londres foi “bombardeado até à concessão”.

Nos meses seguintes, Thatcher mantém mão firme contra o IRA, permitindo o assassinato de membros da organização que estavam a preparar um atentado em Gibraltar, por exemplo. Mas não avança com nenhuma expedição punitiva de grande escala, como alguns na Irlanda do Norte antecipavam.

E manteve as negociações com Dublin de pé. Não por ideologia ou convicção, mas sobretudo por razões pragmáticas — “Não podemos continuar a gastar recursos em massa de dinheiro e homens num só lugar”, afirmou a certa altura. Em 1985, um ano depois do ataque no Grand Hotel, Thatcher e o primeiro-ministro Garret FitzGerald assinavam o Acordo Anglo-Irlandês, que dava mais poderes a Dublin na questão da Irlanda do Norte. Estava aberto um caminho que os sucessores John Major e Tony Blair explorariam até à paz.

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Margaret Thatcher e Garret Fitzgerald na assinatura do Acordo Anglo-Irlandês de 1985

PA Images via Getty Images

No que diz respeito à Irlanda, resume o historiador irlandês John Bowman, Thatcher era “um camaleão”. Talvez nunca saberemos o seu completo estado de espírito face ao “problema” da Irlanda do Norte. A mulher que deixou Bobby Sands e os restantes grevistas morrerem de fome, sem ceder a negociações, foi a mesma que, segundo várias fontes, abriu um canal de comunicação secreto com o IRA em 1986 — dois anos depois do atentado de Brighton.

Rory Carroll resumiu o paradoxo numa entrevista que deu a propósito do seu livro: “Thatcher respondeu ao ataque de forma muito comedida, numa altura em que os tabloides lhe pediam enforcamentos”, disse o jornalista. “Ela fez muitas coisas pelas quais lhe deve ser dado crédito, mas hoje em dia ainda é vista como uma espécie de ogre pela História irlandesa.”

Viver com o peso do ataque de Brighton, quarenta anos depois

Hoje em dia, o Grand Hotel de Brighton foi renovado. O quarto onde Patrick Magee montou uma bomba durante três dias já não é o 629. E, como relembra o Irish Times, a única menção ao atentado está numa pequena placa no lobby onde se assinalam “os feridos e os que perderam a vida a 12 de outubro de 1984 durante o Congresso do Partido Conservador”.

Nunca saberemos ao certo o impacto concreto do atentado de Brighton na História, mas sabemos o impacto que teve nos que sobreviveram a ele. A começar por Thatcher, que, nos meses depois do ataque, sempre que dormia fora de casa colocava na mesa de cabeceira uma lanterna, por lhe fazer lembrar as luzes do Grand Hotel, que se mantiveram acesas depois da explosão. No seu diário pessoal, agora do conhecimento público, a entrada sobre aquele dia diz apenas “Bomba”. Só dois dias depois do ataque, durante a missa, a primeira-ministra parece ter absorvido o destino a que escapou: “À medida que o sol entrava pelos vitrais, pensei: ‘Não era suposto eu ter visto este dia’”, contou numa carta a um colega do partido, mais tarde. O seu marido, Denis, ofereceu-lhe pouco tempo depois um relógio, com uma pequena nota onde escreveu “Cada minuto é precioso”.

O bombista, Patrick Magee, também se debate ainda hoje com as consequências dos seus atos. Nos primeiros anos depois da paz, continuou a dizer que, apesar de preferir que ninguém tivesse morrido, aquele foi um ato de guerra em resposta a outros atos de guerra dos ingleses. Nunca revelou detalhes da operação, como quem foram os seus colaboradores.

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Patrick Magee

PA Images via Getty Images

O seu discurso suavizou-se, porém, ao longo dos anos. Sobretudo desde que duas das vítimas estabeleceram contacto com ele. Primeiro foi Harvey Thomas, o assessor de imprensa que esteve quase três horas soterrado nas ruínas do Grand Hotel, que lhe escreveu um ano antes de Magee sair da prisão. “A Bíblia diz ‘Ama os teus inimigos, ama os que te odeiam’. Achei que, como cristão, devia fazer isso”, justificou Thomas na carta. “Fiquei sensibilizado”, reconheceria o Chancer mais tarde. “Pensei ‘O tipo é genuíno, acredita no que diz’. Nunca procurei o perdão e nunca o farei.”

O verdadeiro ponto de viragem deu-se, contudo, já em liberdade, quando Patrick Magee conheceu Jo Berry, filha do deputado Anthony Berry, uma das cinco vítimas mortais de Brighton. “Lamento ter matado o teu pai”, disse-lhe Magee no final desse primeiro encontro. “Fico contente por teres sido tu”, respondeu ela. Uma resposta críptica que abriu um processo de reconciliação entre os dois, que hoje em dia dão palestras por todo o Reino Unido a falar sobre a importância de ultrapassar a desumanização da guerra e do terrorismo e de alcançar o perdão.

Nem todos, é claro, têm a mesma postura de Thomas e Berry. O antigo ministro Norman Tebbit, cuja mulher ficou para o resto da vida tetraplégica, repetiu uma e outra vez que nunca perdoaria Magee. “Ele não se arrepende, portanto não pode ser perdoado”, disse o antigo ministro leal a Thatcher — cujas ambições políticas de vir a ser primeiro-ministro morreram naquela noite de 12 de outubro. Em 1987, Tebbit decidiu abandonar a vida política, para se dedicar inteiramente à mulher.

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Norman Tebbit no Congresso do Partido Conservador de 1984

Sygma via Getty Images

Magee diz compreender as palavras do antigo ministro: “Não esperava que [Tebbit] dissesse outra coisa.” Margaret, paralisada até ter morrido em 2020, é a vítima que parece provocar ao bombista de Brighton maior arrependimento: “A mulher ficou numa cadeira de rodas todos aqueles anos, é inevitável que se tenha um arrependimento profundo sobre isso. É claro que tenho”, chegou a admitir.

Norman Tebbit e Patrick Magee nunca se sentarão frente a frente para um processo de reconciliação pessoal, como aconteceu com Jo Berry. Talvez porque o ponto de partida de cada um é demasiado distante do do outro; talvez porque as feridas são demasiado profundas para poderem ser saradas.

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Norman Tebbitt em frente ao Grand Hotel (à esquerda) e Jo Berry com Patrick Magee (à direita)

PA Images via Getty Images

Os dois, porém, mesmo sendo tão diferentes, preveem um futuro exatamente igual para a Irlanda do Norte. As voltas da História — ou do acaso — têm dessas coisas.

Em 2021, Patrick Magee decretou que o futuro da Irlanda do Norte será o da integração na República da Irlanda — “é o resultado natural”, resumiu. O Acordo de Paz prevê que seja convocado um referendo na Irlanda do Norte sobre essa perspetiva se houver a perceção de que a opinião dos norte-irlandeses pode ter mudado. Em 2022, o Sinn Féin foi pela primeira vez na sua História o partido mais votado nas eleições regionais.

Norman Tebbit concorda que, mais tarde ou mais cedo, isso acabará por acontecer, como admitiu numa entrevista em 2022. Só que, ao contrário do membro do IRA, considera que uma “Irlanda unida” representaria um desastre para o Reino Unido. “Que efeito terá isso no nacionalismo escocês e no galês? O Rei Carlos III acabará por ser apenas rei de Inglaterra? Os meus bisnetos irão crescer numa Inglaterra instável e procurar segurança num país europeu?”, questionou-se.

Norman Tebbit, o sobrevivente de Brighton que abdicou da carreira política pela mulher, uma Margaret mutilada pela “guilhotina” que tinha outra Margaret como alvo, tem um último desabafo sobre a Irlanda do Norte — a insignificante Irlanda do Norte que pode acabar por definir o futuro de todo o Reino, numa História que ainda está a ser escrita. “Estou contente por estar nos meus noventa e não nos meus cinquenta”, diz.

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