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Texto, fotografias e vídeos dos enviados do Observador à Ucrânia, Carlos Diogo Santos e João Porfírio
O marido de Lydmila Serhiivna Kisilova ia fazer 70 anos dentro de um mês e meio. Agora está embrulhado num saco, dentro de um caixão, para ser enterrado. Pela segunda vez. Nas traseiras da morgue de Bucha, nos arredores de Kiev, à vista de quem anda pela unidade hospitalar, são vários os corpos embrulhados naqueles sacos — alguns pretos, a maioria brancos. Tantos que as macas de ferro não chegam para todos e os médicos legistas têm de os empilhar.
Na parte da frente da pequena morgue, um camião frigorífico tem os corpos por identificar — aqueles que mais tarde, depois do exame médico-legal, serão deixados na parte de trás até que chegue a empilhadora que os levará até ao outro camião refrigerador. É um trabalho em cadeia, que conta com o apoio de uma equipa forense da polícia militarizada francesa (Gendarmerie).
O corpo do marido de Lydmila já fez o percurso todo e ela está só à espera de poder levá-lo para o cemitério. Durante toda a manhã da última quarta-feira o crocitar dos corvos era forte e o cheiro do fumo que saía da chaminé do crematório ainda mais e parecia vir mesmo na direção de Aniya Dolit, a psicóloga que está ali à entrada para dar apoio às famílias, sem receber nada por isso.
Tudo o que aconteceu é traumático, desde a forma como as pessoas foram mortas ao que se passou a seguir: “São, em geral, situações de tiro na nuca, ataques com mísseis e tortura”. “Sabe, até as crianças eles matavam a tiro”. E, depois, “os corpos eram enterrados por baixo de árvores, em habitações, ou seja, matavam as pessoas e o enterro era onde desse”.
A lista que é atualizada todos os dias às 15h
Quem ali vai agora é porque recebeu um telefonema, ou apenas para tentar a sorte de encontrar o corpo de alguém desaparecido. As filas vão aumentando perto das 15h, hora a que é feita a atualização diária da lista dos corpos para ali levados nas últimas 24h. “Preciso de saber se o corpo do meu irmão está aqui. No início levaram-no para Vyshorod, mas agora não sei”. Aniya lembra à mulher que acabara de chegar que ainda não são 15h. Mas, ainda assim, depois de alguma insistência, afasta-se para confirmar se tem alguma informação que a conforte.
Mesmo ao lado, está Anatolii, 44 anos, militar fardado, com o filho ao lado. Esperam pelo corpo do tio depois de terem sido contactados pelas autoridades a darem conta de que estaria pronto para ser entregue à família — foi morto a 15 de março, a tiro, na aldeia de Ozera, próximo de Bucha, no sótão da sua casa, provavelmente ao tentar esconder-se.
“Só o encontrámos três semanas depois de ter sido baleado e estava no sótão”. Anatolii só sabe isso, que terá sido baleado, o resto será concluído pelo trabalho dos peritos franceses, enviados precisamente para investigar crimes de guerra. Depois de terem o corpo deverão seguir diretos para o funeral. Tal como Lydmila, que em poucos minutos já chegou à nova ala do cemitério de Bucha onde estão a ser colocados os corpos exumados após a invasão russa — ocupa a berma da estrada interior, onde passam os carros funerários.
Quando os russos chegaram a Bucha ainda “estava claro” e eles começaram por andar pelos quintais, a pé, “vagueavam com o objetivo de roubar”. “Primeiro vandalizavam, eu vi”, conta Lydmila ao Observador.
Viu o marido quando apontou a lanterna à noite
A 4 de março, a reformada de 67 anos estava na cave — que tem entrada pelo quintal — com o marido. Foram para lá por proteção, mas não ouviam barulho no exterior, ninguém tinha ainda partido o gradeamento da moradia com os tanques para ali se instalar e, por isso, Valerii Pitrovich Kizil decidiu sair “para fazer uma chamada”.
Pouco depois, Lydmila ouviu um tiro e quase de seguida um militar russo foi à cave e perguntou quem é que lá estava. A mulher saiu e, antes de responder, perguntou pelo marido. Do outro lado apenas uma insistência: “Quem é que está mais na cave?”. Lydmila cedeu — “eu, sozinha” — e em troca apenas recebeu um aviso: “Então fique aí sentada e não saia, não pode sair!”
Foram horas sentada sem resposta à única pergunta que tinha: teria o tiro que ouviu acertado no marido? Sabia que não ia aguentar muito tempo sem uma resposta.
“Quando escureceu, saí da cave e andei com a lanterna à procura do meu marido. Encontrei-o morto à entrada de casa. A janela estava partida, eu apontei a luz da lanterna para lá e vi que estava tudo vandalizado”. No interior de casa todas as caixas onde guardava bordados e documentos estavam espalhadas pelo chão, a imagem ainda está muito nítida na sua cabeça: “Não dormi, cobri o meu marido, desci para a cave e fiquei lá até de manhã”.
Tudo estremecia na manhã seguinte
A noite demorou uma eternidade e às 10h já tudo estremecia: “Vieram com o equipamento, com os BTR, destruíram as cercas e os portões e estacionaram os seus BTR nos quintais. O vizinho da frente tem uma casa grande com uma cave enorme e eles fizeram lá uma espécie de quartel-general”.
Nessa altura, Lydmila teve de sair da sua cave. Os soldados russos levaram-na para a cave do vizinho, onde acabaria por ficar vários dias. Naquele dia de manhã continuava sem saber nada da filha, que também vive em Bucha, ao lado da estação de comboios. Eram várias preocupações na sua cabeça. “Nós não sabíamos nada uma da outra”, lembra com os olhos muito brilhantes.
Só horas depois é que a conseguiu avisar que o pai tinha sido morto pelos russos. Era difícil fazer chamadas, não havia rede, e, por isso, teve de esperar.
Russos ajudam a fazer cova 5 dias depois
A filha só conseguiu ir buscá-la, mesmo arriscando, dias depois e só nessa altura é que alguns soldados russos se ofereceram para ajudar a “enterrar o corpo no quintal”, já tinham passado quase 5 dias em que o corpo do marido esteva ali abandonado na entrada de casa. “Pronto… depois coloquei o gorrinho com um buraco do tiro lá na cova”.
Era a primeira vez que estava a enterrar o marido, recorda agora na segunda vez que o faz, enquanto os coveiros do cemitério acabam de tapar a vala na berma da estrada, sob a sua vigilância atenta: “Há aqui um aramezito que é para segurar a fotografia…” A foto de que fala é a mesma do passaporte, que foi revelar para pôr ali, na última morada de Valerii.
Ao lado de Lydmila está a filha e a neta, com uns 4 ou 5 anos, que sem compreender vai apanhando a terra do chão que vai cobrir o avô, como se estivesse a brincar na praia. Foi mais ou menos o que viu a avó fazer minutos antes, num cerimonial que não entendeu. Nas conversas da reformada à beira da sepultura, mais do que a dor da perda, estão a incompreensão desta guerra. E assalta-a ainda o medo de que aquele corpo que agora enterrou não seja o de Valerii, que por algum motivo o tenham trocado depois da identificação.
São muitas as histórias que a antiga operadora eletrónica guarda da vida a dois e que parece querer contar a quem quer que chegue. “Nós vivíamos bem financeiramente e não necessitávamos de nada. Ajudávamos os filhos em tudo, comprámos um apartamento para a nossa filha, construímos uma casa para o nosso filho e nós também tínhamos uma boa casa”. Agora nada disso existe, até a casa da filha ficou totalmente destruída.
O orgulho é tanto, que Lydmila faz questão de dar imagens: “Eu tenho aqui fotografias… mas com a luz é difícil vê-las, talvez. Como a casa era bonita…” “E ele era muito boa pessoa, sabem? Era consciente, responsável. No trabalho, toda gente o respeitava. Todos os colegas tentavam ser amigos dele, falar com ele, respeitavam-no”.
A mãe que andava à volta do frigorífico onde estava o filho
Quando Lydmila saiu da morgue, muitas outras famílias faziam ainda o reconhecimento dos corpos, junto a um pequeno edifício das traseiras. Tudo está padronizado, mas muitas vezes nem os funcionários aguentam as condições e as situações que têm vivido. Mais ou menos ao mesmo tempo que o caixão de Valerii saía, um dos funcionários fugia para trás de um familiar porque o seu estômago não aguentou após ter aberto o saco para a identificação. O cheiro é muito forte e aumenta ainda mais quando as portas do camião frigorífico dos corpos já analisados são abertas.
O processo traumático foi além das execuções, continuou com as exumações. “Os corpos foram desenterrados, para os especialistas analisarem e concluírem a causa da morte, documentar o crime e só depois entregar o corpo aos familiares”, explica Aniya Dolit: “Era muito difícil nos primeiros dias, pois foram recolhidos muitos corpos. Muitas pessoas, familiares, não entendiam o que estavam a acontecer”.
A psicóloga nem consegue dar números certos de corpos, porque estão sempre a mudar, mas na última quarta-feira existiam “119 corpos não instalados”: “Estão sempre a trazer e a trazer. Tentam distribuir os corpos por várias morgues para os especialistas poderem analisar e tirar conclusões”.
Todos os casos têm histórias muito fortes, mas há alguns que marcaram definitivamente esta profissional, como o de uma mãe que foi morta com o filho menor e uma outra de que ainda hoje lhe custa falar: “Houve uma situação… morreu uma criança de 5 anos, e quando a mãe soube que o corpo estava armazenado nesta câmara frigorífica, começou a andar às voltas, não conseguia sair dali.”
“Queriam a destruição de um povo”
“Isto não é guerra, isto é genocídio”, diz Aniya enquanto vai tirando dúvidas às pessoas que vão chegando. Os números são, de facto, expressivos — já foram encontrados e exumados em Bucha mais de quatro centenas de corpos (117 estavam numa vala comum atrás da igreja que António Guterres visitou esta quinta-feira), o que significa praticamente um terço do total de pessoas mortas na região de Kiev. Do que tem visto, a psicóloga não tem dúvidas de que se pretendia “a destruição de um povo”: “Eles disparavam contra os homens, contra as mulheres, contra as crianças. Eles não combatiam com pessoas armadas sequer, eles combatiam com pessoas que nem tinham armas”.
Todos os dias quem ali trabalha tenta que sejam levantados aproximadamente 15 a 20 corpos, um trabalho muito difícil, dado que há apenas dois patologistas. E a cada família é preciso dar um acompanhamento específico: “A primeira etapa da ajuda psicológica é a consulta da situação de crise”, depois “é necessário dar curtas, simples e claras instruções”. E mais, conta, “é preciso questionar a pessoa se a podemos abraçar. Eu obviamente digo que sou psicóloga, que estou aqui para os ajudar”.
Inicialmente, as pessoas chamadas para identificar o corpo de um familiar que não sabiam ter morrido “começam a deprimir e a questionar ‘como? porque é que é assim connosco?’. Estas questões não têm resposta, nos primeiros momentos é necessário auto-preservar-se”.
Todos os corpos encontrados em Bucha são enviados para estas instalações e depois, consoante as disponibilidades, são levados para outras morgues não muito distantes.
O pai e o padrasto foram encontrados de “mãos atadas”
Igor Gavrilyuk, 24 anos, foi lá na última quarta-feira de manhã para fazer o reconhecimento do pai e do padrinho. No caso dele, já sabia que tinham morrido. Foram mortos a 13 de março, quando a cidade estava sob domínio russo, e os seus corpos foram encontrado com “as mãos estavam atadas”, conta ao Observador.
O jovem funcionário dos Serviços de Segurança ucranianos soube que o pai tinha morrido quando “os invasores russos foram expulsos, no dia 3 de abril”, e ele conseguiu “voltar para casa” — estava fora da cidade quando tudo aconteceu. “Foram baleados. A 12 de março, os vizinhos ainda os viram, pela última vez, e trouxeram-lhes comida. A 13 de março um vizinho já os viu mortos”, recorda.
Apesar de as mortes já terem sido há mais de um mês, Igor tenta racionalizar e perceber o tempo que o processo leva. Está na morgue com um rapaz mais novo e uma mulher com mais idade, familiares que pediram para não falar, e mantém sempre um ar calmo. “Como o meu pai não morreu de problemas naturais, teve de haver um exame médico forense”, diz enquanto encolhe os ombros, para logo rematar: “Isto é crime, tem de ser registado.”