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O pastor João Araújo, na Branda da Aveleira, um dos locais que ficámos a conhecer na Residência de João Rodrigues, em Melgaço.

O pastor João Araújo, na Branda da Aveleira, um dos locais que ficámos a conhecer na Residência de João Rodrigues, em Melgaço.

A pesca da lampreia, abelhas mansas e o Entrudo de Melgaço. As Residências de João Rodrigues são muito mais do que um restaurante

As Residências de João Rodrigues são uma experiência imersiva pelos hábitos e produtos das regiões do país. Depois de Trás-os-Montes, seguimos o chef até à segunda paragem, Melgaço, no Minho.

“Quando eu morrer, no seu silêncio, o rio chorará por mim. Estou convencido disso”. A ligação do senhor Venâncio às águas do Minho é profunda, não tivesse ele crescido nas suas margens. Começou aos sete anos a acompanhar o pai na arte da pesca, aprendendo tudo sobre a complexa, secular e exclusiva apanha da lampreia nas terras minhotas. “Este ano, está muito mau”, diz-nos momentos antes. Com a época do concorrido ciclóstomo a arrancar a meados de fevereiro, tem sido difícil encontrá-lo e a sua escassez está envolta em mistério — daí os preços a que tem ascendido.

Mas naquela manhã foi possível observar o animal ainda vivo. “Coitadinha”, lamentamos enquanto se contorce. Ficamos a saber que aguenta três horas fora de água. “Não se pode dizer isso, que ela assim não morre”, atira o senhor Venâncio. O à vontade com o animal é grande e propõe-nos que agarremos nele. Tememos a boca através da qual se alimenta do sangue dos outros peixes e que, como uma ventosa, se agarra à mão do experiente pescador. É como se se conhecessem desde sempre, apesar de a lampreia nascer no rio, seguir viagem para o mar para, só sete anos depois, regressar às águas doces onde vai desovar.

A pesca da lampreia no Minho acontece nas pesqueiras, estruturas de pedra muito antigas, do tempo dos romanos, crê-se.

Joana Freitas

É, precisamente, aí que são apanhadas através das pesqueiras, estruturas de pedra construídas ainda no tempo dos romanos, estima-se. Entre Monção e Melgaço existem 690 mas, na margem que corresponde a Portugal (do outro lado, avistamos Espanha), apenas estão 150 ativas. Para quem não sabe, estas estruturas — de uso comunitário e que só existem nesta região — foram construídas de forma a encurralar o peixe: as pedras colocadas acima da água e no leito do rio criam uma espécie de labirinto que encaminha o animal para a rede de pesca, ali colocada de forma estratégica. Nem um pouco mais atrás, nem um pouco mais à frente, nem um pouco mais acima, nem um pouco mais abaixo. Sem a precisão que só os anos de manuseio conferem, corre-se o risco do animal conseguir escapar.

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Foi assim que arrancou a Residência de João Rodrigues, iniciativa integrada no seu Projecto Matéria, que a 18 e 19 de fevereiro, tomou conta de Melgaço, no Minho, depois da estreia em Boticas, em Trás-os-Montes, no mês anterior. Ainda estamos longe da hora do jantar e temos pela frente um dia recheado de aprendizagem. É precisamente esse o intuito. Muito mais do que nos propor um almoço ou o jantar — uma refeição e acabou, ponto final — o antigo chef do Feitoria pretende, com este restaurante itinerante (que vai continuar a percorrer Portugal ao longo dos próximos dez meses) proporcionar aos comensais uma experiência imersiva nas aldeias, vilas ou cidades em que se instala, permitindo o contacto próximo com os produtores, com os produtos, com os hábitos e, sobretudo, com as pessoas que fazem as diferentes regiões do país.

A Residência de João Rodrigues é um restaurante itinerante que está a percorrer o país, inserido no Projecto Matéria.

Joana Freitas

É o que, num dos raros momentos de maior calma, o chef João Rodrigues explica ao Observador. “Entregamo-nos totalmente ao concelho, à cidade que nos acolhe.” E é por isso que, sempre que alguém faz uma reserva numa das duas refeições das Residências, recebe depois um email com sugestões de restaurantes, locais e programas para conhecer e viver aquele local.

Faz sentido até porque é mesmo essa a missão do Projecto Matéria, que fundou dias antes de rebentar a pandemia e ao qual  se tem dedicado em exclusivo deste que deixou a posição de chef executivo do estrelado Feitoria. Sem fins lucrativos, promove, através de várias ações (incluindo esta), os produtores nacionais, cujos princípios das boas práticas agrícolas e produção animal, sempre em respeito pela natureza, se coadunem com os seus. Assim, como resultado de múltiplas incursões que ao longo dos últimos anos foi fazendo pelo país, tem vindo a conhecer de perto quem cuida daquilo que nos vem parar ao prato, aprofundado o conhecimento sobre o que cada região do país nos oferece.

Sente-se mais rico. “Quando viajas e passas tempo noutros sítios, descobres lugares e pessoas. E quando descobres pessoas aprendes muito sobre uma série de coisas, sobre as quais, muitas vezes, até tinhas uma ideia formada, uma opinião assertiva, que desaparece. Quando vais ao terreno e conheces a realidade de perto deixas de ter essas certezas todas e passas a querer absorver muito mais sobre o que têm para de dizer e ensinar. Isso faz-nos crescer como pessoas e como profissionais também”.

As termas de Melgaço receberam o primeiro jantar da Residência de João Rodrigues.

Joana Freitas

Ainda é de dia e conseguimos observar os coloridos vitrais das termas de Melgaço, onde à noite a grande estrela será o arroz de lampreia, confecionado pelo chef António Loureiro, do A Cozinha (uma estrela Michelin), o convidado especial da primeira das duas refeições da Residência em Melgaço. As mesas e cadeiras, tal como as loiças StudioNeves, vieram de Lisboa e estão distribuídas em torno da fonte com água mineral. A entrada faz-se por uma escadaria que, do cimo, permite observar a beleza daquele local amplo, de teto alto e envidraçado, onde ao cair da noite vão juntar-se 50 pessoas, naquele que é um evento esgotado. A cozinha está, discretamente, instalada na mezzanine. Ocupa mesas feitas de tábuas de madeira apoiadas em cavalaletes, onde há uns quantos bicos de fogão e várias panelas e tábuas. É possível fazer muito, é possível fazer bom, com pouco, prova-nos esta experiência.

Este é, aliás, outro dos pilares das Residências, explica João Rodrigues, que se confessa feliz com o espaço de manobra proporcionado por este estilo de vida mais nómada: “Acima tudo, o que a mim me entusiasma é a sensação de liberdade. Aqui temos de pensar e fazer, dentro dos recursos que temos — e essa é uma das premissas importantes do projeto que é fazer o máximo com o mínimo de recursos possíveis.”

O produtor Prados do Melgaço tem cerca de 400 cabras e é o único produtor de queijo da região; as abelhas Buckfast são mansas e não picam (a pintinha amarela sinaliza a abelha rainha).

Joana Freitas

“Essencial para a lampreia é um bom vinho, um bom azeite, uma boa broa, e boa companhia”

Com o Ssenhor Venâncio, seguimos para casa de José e Durinda Pinheiro. Por ali, o casal vende broas quentes acabadas de sair do forno e lampreias, escaladas com a fascinante mestria do senhor Zé, que incide no ciclóstomo cortes longitudinais de admirável precisão.

Aberta, é então salgada e, sem sangrar, é presa com canas da canavial que, à nossa frente, o antigo marinheiro vai cortando com a facilidade e automatismo que só a repetição e os anos permitem. Segue para o fumeiro, onde fica ao longo de sete dias e onde repousa outra lampreia já fumada, pronta a sair. “Isto desde sair do rio, até chegar ao prato, dá muito trabalho!”, exclama José Pinheiro.

José e Durinda Pinheiro receberam em sua casa os que participaram na Residência, onde provámos broa quente e lampreia fumada e assada.

Joana Freitas

Estamos prestes a provar aquela que, à data e para nós, será a mais saborosa forma de confeção do animal: saída do fumeiro, a lampreia é demolhada ao longo de três horas, para depois ser raspada, apenas na parte da pele e, por fim, esfregada em banha de porco, seguindo então para a grelha. Em poucos minutos, provamo-la, com todos os requisitos cumpridos: “Essencial para a lampreia é um bom vinho, um bom azeite, uma boa broa, e uma boa companhia”. Tudo certo.

À noite, o ciclóstomo chega-nos no famoso arroz, numa versão que ou se ama ou se odeia. Antes, voltamos a provar os queijos Prados de Melgaço, o único produtor da região, fundado por Verónica Soalheiro e Marco de Sousa, que tivemos oportunidade de visitar durante a tarde, convivendo com as mais de 400 cabras, que vivem com música, muito espaço, não assumisse este produtor o compromisso do bem-estar animal. São dóceis e podemos interagir com elas. Pegamos as crias ao colo.

O arroz de lampreia preparado pelo chef António Loureiro foi o grande protagonista do primeiro jantar desta Residência, que aconteceu nas termas de Melgaço.

Joana Freitas

Voltando ao jantar, à tábua juntam-se os as alheiras H2 Douro, o mesmo produtor responsável pela galinha da saborosa canja que chega a seguir. O repasto, com pairing de Daniel Silva, que serviu vários vinhos Quinta do Soalheiro, termina com roscas de Monção e com bucho doce, aqui com o mel das colmeias de Paulo, cujas abelhas conhecemos no dia seguinte. Mas já lá vamos.

É noite de se festejar o Carnaval em Melgaço, mas o dia seguinte arranca cedo. Durante a tarde, seguindo a lista de sugestões da Residência, já tínhamos assistido ao desfile e à famosa queima do Entrudo, que terminou com um pôr do sol capaz de ampliar a beleza única das terras minhotas.

A queima do Entrudo foi um dos programas sugeridos pela Residência.

Joana Freitas

A magia da Branda, o caldo de Saramagos e a despedida de Melgaço

“Esta é uma montanha de emoções”, diz Agostinho Alves. Emocionado, contempla a Branda da Aveleira a partir de onde, desde pequeno, guarda as memórias mais felizes.

São dez da manhã, estamos a 1100 metros de altitude, o vento é cortante, a paisagem é desafogada e permite observar as enormes pedras de xisto deste vale glaciar. “É uma história de milhões de anos aqui depositada”, lembra o presidente da Junta de Freguesia de Gave.

João Araújo, pastor há 15 anos, também está connosco e veste uma croça, peça feita de palha grossa, utilizada noutros tempos para proteger contra a chuva, frio e vento da montanha. Observamos algumas das suas vacas de raça Cachena (tem um total de 140), uma das espécies mais pequenas do mundo (não atinge mais de 1 metro e meio de altura).

João Araújo é pastor há 15 anos e tem mais de cem vacas de raça Cachena na Branda da Aveleira.

Joana Freitas

Nesta que é a segunda paragem da Residência, desfrutamos mais tarde, no restaurante O Brandeiro, da refeição de seis momentos preparada por João Rodrigues e que inclui tártaro de vaca cachena biológica da Aveleira; polvo e pimentão (representando aqui a geografia desta região fronteiriça, numa alusão ao Polvo à Galega, da vizinha Galiza); bacalhau, ovo H2Douro e cebola (deliciosa reintrepretação do bacalhau à minhota); o cabrito acabado de sair do forno comunitário e, por fim, pão de ló limão e doce de ovos, com uma bolacha na forma do típico coração minhoto de Viana.

O pairing, novamente a cargo de Daniel, volta a ser uma homenagem à região, aqui com Quinta do Melgaço e, novamente, Quinta do Soalheiro. Para os que a seguir conduzem, há a famosa água mineral de Melgaço.

Tártaro de vaca cachena; uma espécie de Polvo à Galega, a reintrepretação do bacalhau à Minhota e o típico cabrito assado.

Joana Freitas

Antes, o apetite formou-se com atividade física vigorosa, uma longa caminhada na companhia de Agostinho e João Araújo. A cada paragem, falam-nos sobre os costumes da branda, termo que faz referência a estas aldeias em altitude, que antigamente desempenhavam um papel fundamental na transumância: era para aqui que, sazonalmente, os pastores, as suas famílias e os animais se deslocavam na estação mais quente, deixando as inverneiras, as aldeias e os vales onde viviam no inverno e outono.

Durante mais de duas horas, contemplámos o rio Vez; vimos as cardenhas, pequenas casas que outrora abrigavam os pastores no andar de cima e o gado no andar de baixo; e ficámos a conhecer as casas recuperadas, transformadas em alojamento e que, além de preservarem a história deste lugar, hospedam aqueles que a queiram viver.

Dona Maria e as suas netas prepararam a broa e o caldo de saramagos no segundo almoço da Residência. Foi também neste forno comunitário que foi assado o cabrito.

Joana Freitas

Estamos de regresso ao ponto de partida e somos recebidos da melhor forma: no forno comunitário que vive ao lado do restaurante Brandeiro, dona Maria e as suas netas têm ao lume um delicioso caldo de saramagos. Aquece-nos corpo e alma, enquanto, em silêncio, o saboreamos sentados numa pedra glaciar, ao sol. Antes de seguirmos para a mesa, ainda convivemos com as tais abelhas Buckfast de Paulo, que, a cuidar de mais de 300 colmeias, se dedica à apicultura há mais de 30 anos, dando continuidade ao trabalho iniciado por um monge alemão, que há um século criou esta espécie mansa de Melgaço, que não pica.

À mesa vivemos aquele que será o último momento desta riquíssima Residência de João Rodrigues, que em muito depende também do incansável trabalho de bastidores levado a cabo por Vânia Rodrigues, a sua mulher e co-fundadora do Projecto Matéria, e do cozinheiro Fernando Cardoso, companheiro de todas as aventuras. Juntos, lidam com todas as vicissitudes e imprevisibilidades inerentes a um restaurante que faz da sua casa um país inteiro.

Próxima paragem, Douro.

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