894kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

A polémica história do sexo e da Igreja. Como tudo começou e como chegámos aqui

Com o regresso à discussão sobre a abstinência sexual dos recasados no catolicismo, Carlos Maria Bobone escreve sobre o sexo e a Igreja: o que o primeiro reclama e o que a segunda obriga.

Qualquer discussão sobre a Igreja tem sempre dois problemas de fundo. O primeiro é, ao mesmo tempo, o mais cómico e o mais absurdo. As ambições de um lado e de outro da querela estão nitidamente trocadas. De um lado, uma multidão de não crentes, de apóstolos da livre decisão de cada um a respeito da moral, arenga mais sentenças a respeito do comportamento eclesial do que o Levítico; do outro, a Igreja, que se quer Universal, enxofrada por ver as suas instruções particulares escrutinadas em praça pública — — como, mais uma vez, se percebeu na polémica desta semana sobre a posição do cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, em relação à “continência” sexual dos recasados.

Os que se querem preocupar apenas com os seus problemas, peroram sobre os dos outros; os que se preocupam com os males do mundo, querem passar de mansinho, a administrar os seus remédios sem ouvir os protestos dos doentes.

Divorciados, abstinência sexual e Igreja. 8 perguntas para perceber a polémica

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Torna-se, assim, cómica uma discussão que, embora legítima – a pretensão Universal da Igreja pede que os seus problemas interessem a todos os Homens – acaba por se legitimar pelos que a condenam. Isso leva, habitualmente, a discussão para um nível absurdo. Uma série de profetas e biblistas de curso intensivo exigem a “modernização” da Igreja, que se “adapte” aos tempos modernos e abandone as posições “retrógradas”. O fundamento, claro está, nunca trata de purificar a Igreja, ou de a pôr mais de acordo com os ensinamentos de Cristo. Trata-se de uma opinião de conflito, de alguém que julga os valores modernos superiores aos antigos e que por isso qualquer pessoa ou instituição de bem os deve adoptar. Para a maioria destes apóstolos, a posição da Igreja é apenas sintoma de um reaccionarismo incompreensível. A Igreja devia apanhar o passo do mundo, como se fosse o mundo o fundamento dos seus valores.

Ora, o ponto fundamental da discussão está num segundo problema que é habitualmente descurado. As discussões sobre a Igreja tendem, incompreensivelmente, a esquecer Cristo. Isto é, numa discussão com um comunista, não passa pela cabeça de ninguém exigir que o partido abandone a ideia de luta de classes. Isto porque se compreende o fundamental: pedir que o partido abandone a luta de classes é pedir que abandone o comunismo. A discussão passa, assim, por isso mesmo: discutem-se os males ou as virtudes do comunismo, mas não a sua essência.

A Igreja não tem legitimidade para mudar as suas posições porque acredita que não pertence a si própria. A discussão tem assim de partir, antes de mais, daquilo que a modela, não daquilo que ela quer modelar.

Ora, o que acontece com a Igreja é precisamente o contrário. Os contendores nunca exigem que a Igreja abandone o cristianismo; no entanto, tratam-no como se a Igreja pudesse escolhê-lo. É assim em todos os assuntos: a Igreja deve repensar a sua posição sobre o casamento, sobre o aborto, sobre a eutanásia, como se fosse livre de criar a cada momento a sua doutrina. O ponto mais importante para qualquer discussão sobre a Igreja está, assim, em perceber os seus fundamentos: a Igreja acredita na moral de Cristo, e acredita que essa moral foi revelada pela Bíblia e pela tradição da própria Igreja. É possível, assim, discutir a posição da Igreja sobre o sexo, em qualquer das suas vertentes. É espúrio, no entanto, entrar na discussão com ideias de contemporaneidade. A Igreja não tem legitimidade para mudar as suas posições porque acredita que não pertence a si própria. A discussão tem assim de partir, antes de mais, daquilo que a modela, não daquilo que ela quer modelar. A Igreja tem, na Bíblia e na sua tradição, fundamentos para as suas normativas sobre o sexo? Só essa pode ser uma discussão sobre a Igreja que interesse de facto à Igreja.

Acontece que, em matéria sexual, a tradição se estende muito para lá da Igreja. Claro que há na Bíblia os exemplos da morte espetacular de Onan, fulminado por derramar o seu sémen no chão, ou da sempre citada Sodoma, que dá nome ao pecado em que caiu. Há, também, a frase de Cristo, que é provavelmente a única que aperta taxativamente a lei dos judeus: “não separe o Homem o que Deus uniu”, a ordem que funda a indissolubilidade do casamento, vinda daquele que, em tudo o mais, era tido por um relaxado.

A destruição das cidades de Sodoma e Gomorra, entre fogo e enxofre, numa pintura de John Martin

Os diferentes episódios podiam pedir diferentes discussões. Contudo, a discussão sobre o onanismo, a sodomia, ou o sexo no casamento têm subjacente a mesma ideia. E esta ideia, como dizíamos, estende-se muito para lá da Igreja. Curiosamente, a posição sexual da Igreja deve tanto à Bíblia quanto à filosofia Antiga. É muito antes de Cristo que se começam a ouvir os protestos sérios contra aquilo que será a base da posição da Igreja sobre o sexo: a desordem das paixões. Tanto estóicos como epicuristas, tanto académicos como pitagóricos, percebem as paixões como o estado em que o Homem não se controla a si próprio. Aquele que se deixa dominar pela gula, pela preguiça, ou pela atracção física é aquele que não tem domínio sobre si próprio, que não é livre. A virtude da continência começa, assim, a ser louvada como um dos grandes sinais de força e de Humanidade.

Católicos recasados são aconselhados a abster-se de ter relações sexuais

É próprio dos animais seguirem os seus instintos, é próprio dos fracos sucumbir às suas paixões – tanto que, na literatura grega, o conquistador é sempre uma figura efeminada, fraca, incapaz de se dominar –, e as virtudes da continência, em qualquer aspecto, são incontáveis. Pode mudar o fundamento, mas não muda o método. O epicurista procura o prazer temperado e por isso repudia o excesso, o estóico enseja livrar-se das paixões e por isso também busca a temperança. A vida do Homem continente é a vida daquele que se consegue encontrar por baixo das condicionantes corporais, da multidão de paixões descontroladas que põem o Homem contra si próprio e dominam a sua vontade.

Ora, este tipo de filosofia foi largamente aproveitado pela Igreja. É também este o modo de pensar que se encontra no De Continentia, de Santo Agostinho, ou, sem menções sexuais, no tipo de vida idealizado pelos Padres do Deserto. A sexualidade é vivida de acordo com uma ideia maior de renúncia a todo o tipo de paixões, que escondem o verdadeiro Homem. Cristo, aquele que escolheu a dor da Cruz, que jejuou quarenta dias no deserto, seria o maior modelo deste tipo de vida.

O livro “De Continentia”

A continência, porém, não é a única ideia que a Igreja tem sobre o sexo. Há, na senda do pensamento grego e romano sobre o ordenamento das paixões, uma vontade de ordenar o mundo em relação a Cristo. O sexo, a grande potência criadora do Homem, deve também estar ordenado. Não apenas contido, mas em ordem a qualquer coisa. Desde o princípio, o cristianismo foi tomado como uma opção de vida que pode ser aplicada a todos os momentos da vida. Não se trata apenas de praticar boas acções; as acções vulgares também se podem transformar em acções cristãs. Isto porque, já desde S. Paulo, Cristo não é visto apenas como o melhor dos Homens; é visto como o próprio fundamento da Bondade.

A transformação da humilhante cruz num momento de glória demonstra bem, para os padres da Igreja, o seu poder transformador. O maior milagre de Cristo está precisamente na capacidade de transformar em Bem aquilo que não o era. Os exemplos bíblicos são muitos. Que faz, de facto, o bom ladrão? Não há acção nenhuma que o redima, apenas o poder de Cristo. Ora, isto leva os primeiros cristãos a acreditarem que cada acção pode ser vivida em ordem a Cristo. Não apenas o voluntarismo cívico dos nossos dias, mas mesmo o mais banal, como comer ou dormir. Tudo pode ser transformado em Bem pelo poder de Cristo. Também o sexo pode, assim, ser vivido como uma coisa sagrada, inserida no ideal de vida Cristão.

O que indigna, na maior parte das vezes, os não-crentes, é a discrepância entre o ideal de vida apregoado pela Igreja e a rigidez da sua doutrina. Teoricamente, o tal “ideal de vida cristão” tem o amor como premissa base. No entanto, parece haver uma indiferença fria por parte da Igreja em relação a esse mesmo amor nas mais variadas formas. O caso dos recasados, como um simples caso de dois namorados em paixão camiliana, visto com reservas pela Igreja, choca com a compreensão habitual que temos do amor.

A ideia dos impulsos sexuais reprimidos, que representariam um fundo verdadeiro e mais natural do Homem, parece o avesso da teoria antropológica greco-cristã. O sexo, transformado no momento decisivo da identidade humana, não tolera intromissões nem restrições e passa a ser visto como a forma mais íntima e profunda de liberdade.

Ora, isto acontece porque a compreensão que a Igreja tem do amor é completamente diferente daquela que nos é dada pelos sentidos. A diferença entre Eros, o amor romântico, e Agape, o amor como é referido nas cartas de S. Paulo, já foi sobejamente dissecada pelos filólogos. O essencial da discussão está, porém, na ideia eclesial do amor como mandamento. Isto é, para a Igreja, destinada a cumprir uma ordem muito clara – “ Amai-vos uns aos outros” – o amor é um mandamento. Ora, só se dá uma ordem em relação a algo que possa ou não ser obedecido. O amor é percebido como uma escolha, não como algo que acontece.

Há, no amor cristão, um sentido ético. Pode-se amar independentemente das paixões, e até mesmo ao arrepio delas. O amor, tomado em conjunto com a ideia de ser Cristo o fundamento do Bem, é que permite perceber a indissolubilidade do casamento, ou a aparente indiferença em relação a todo o tipo de paixões. A Igreja sabe que elas existem, mas não é em relação a elas que o sexo deve estar ordenado. O amor humano é acima de tudo ético e sagrado, o sacramento está acima das paixões e representa o verdadeiro espírito do amor cristão: um amor acima de tudo ético e livre, livre a ponto de dispensar as paixões.

A verdadeira mudança neste estado de espírito foi bastante tardia. Claro que já há uns pós sentimentais no romantismo que comoveram a sociedade; no entanto, a burguesia oitocentista, ajudada também por um certo pragmatismo económico, ainda percebe, embora de maneiras ínvias, o amor como escolha e até como abnegação. A revolução freudiana, porém, deu um fortíssimo golpe na compreensão social dos pontos de vista da Igreja. A ideia dos impulsos sexuais reprimidos, que representariam um fundo verdadeiro e mais natural do Homem, parece o avesso da teoria antropológica greco-cristã. O sexo, transformado no momento decisivo da identidade humana, não tolera intromissões nem restrições e passa a ser visto como a forma mais íntima e profunda de liberdade.

A sacralização do sexo torna-o, assim, o principal elemento de conflito entre duas visões opostas do mundo. A sexualidade torna-se de tal forma a obsessão moderna que, mesmo a Igreja, acantonada numa visão odiada pelo mundo contemporâneo, tem dificuldade em lidar com os estilhaços deste mundo. O romance de David Lodge Até onde é que se pode ir?, sobre um grupo de católicos interessados em saber, como o próprio título indica, até onde é que se pode ir no sexo antes do casamento – e que claramente não leram Santo Afonso Maria Ligório, ou teriam respostas pormenorizadas à pergunta – demonstra até que ponto o sexo se tornou matéria capital dentro da própria Igreja.

“Até onde se pode ir”, de David Lodge (Asa)

Para lá dos pontos específicos de doutrina e casuística, a posição da Igreja sobre o sexo assenta nestes pressupostos. O amor é ético e activo antes de passional, e é definido por Cristo, não pelos nossos sentimentos. A continência não é um castigo, mas sim uma virtude que permite ao Homem vencer aquilo que não controla. Que depois o barulho entorpeça a doutrina, que se confunda a História com a Filosofia, ou que o medo do mundo leve a umas tibiezas e a uns floreios dialéticos, ou que a misericórdia e a compaixão protejam as cabeças dos bicos mais agressivos, já é outra conversa.

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.