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Em 1975, quando se encontrou em Helsínquia com o então Presidente dos EUA, Gerald Ford, o líder da União Soviética, Leonid Brejnev, teve uma conversa suspeita com o seu homólogo norte-americano. Era a primeira vez que os líderes daquelas duas potências se encontravam na capital da Finlândia, que esta segunda-feira recebe a muito aguardada cimeira entre Donald Trump e Vladimir Putin. E aquilo que Leonid Brejnev disse a Gerald Ford era tão suspeito que, se fosse Donald Trump a dizê-lo a Vladimir Putin, os seus dias não tardariam a chegar ao fim.
A troca de palavras aconteceu entre os dois presidentes e só o intérprete do líder soviético esteve presente. No final, bateu as notas que tinha tirado da conversa numa máquina de escrever e depois entregou-as a Leonid Brejnev. O líder soviético leu o que tinha à frente e logo rasgou o papel aos pedaços, depositando-os no cinzeiro. Mais tarde, um funcionário da comitiva norte-americana esperou que os soviéticos saíssem da sala e pegou nos papéis, juntando uma a uma as peças daquele puzzle. Dali, resultou esta conversa:
Brejnev: Quero dizer-lhe com confiança e total franqueza que, na liderança soviética, apoiamos a sua reeleição como Presidente. E, da nossa parte, vamos fazer tudo o que pudermos para que isso aconteça.
Ford: Agradeço-lhe por isso. Espero ser eleito e acredito que isso corresponde com o interesse de aprofundar as relações soviéticas e americanas e de um apaziguamento da tensão.
Brejnev: Sim, quanto a isso concordamos que é precisamente assim que deve ser. Infelizmente, no entanto, em público vocês chamam-nos, à União Soviética, de adversários e nas vossas conversas connosco dizem que temos objetivos em comum.
A conversa entre aqueles dois líderes, há mais de quatro décadas, é um apontamento irónico que a História nos deixa, numa altura que o atual Presidente dos EUA é suspeito de ter colaborado com uma alegada operação de intervenção russa nas eleições de 2016. Na última sexta-feira, aliás, o procurador especial Robert Mueller acusou 12 espiões russos de terem pirateado informaticamente a campanha de Hillary Clinton durante aquelas eleições. Informações que as autoridades acreditam terem servido para interferir nas eleições, embora não tenham provas de que tenha afetado de facto o resultado eleitoral.
Esta segunda-feira não será uma estreia. Na verdade, esta será a quarta vez que Vladimir Putin e Donald Trump se encontram, mas será, de qualquer das maneiras, a primeira vez que o fazem numa cimeira bilateral, sem distrações ou contextos alheios às duas nações. E três dias depois da acusação dos 12 espiões russos por parte das autoridades americanas. Ao Observador, nenhum especialista arrisca fazer uma previsão assertiva do resultado deste encontro, que foi anunciado menos de um mês antes da data marcada. “É difícil prever o futuro quando falamos de Donald Trump”, comenta, entre risos, a embaixadora Laura Kennedy, ex-diplomata norte-americana.
No entanto, o mais provável é que quatro temas dominem o encontro entre os dois líderes: Ucrânia e Crimeia; a guerra na Síria e o papel do Irão nela; a competição entre os EUA e a Rússia no mercado energético; e a corrida às armas nucleares. Abordamos cada um deles, ao pormenor, neste texto.
Ucrânia: quanto vale um pedaço de papel da NATO?
No princípio, estava a Ucrânia. Se é um facto que as relações com a Rússia pós-soviética e os EUA nunca foram um mar de rosas, a tensão entre as duas potências ganhou dimensões inéditas no século XXI com a anexação da Crimeia (península com aproximadamente 2,3 milhões de cidadãos), no turbilhão da revolução ucraniana. A anexação de 2014, consumada por um referendo organizado pelos russos, só foi aceite pelos países da esfera de influência de Moscovo. Os restantes, com ênfase para a União Europeia e os EUA, opuseram-se à Rússia, com a imposição de sanções e com uma escalada militar nos países mais a Leste da União, por via da NATO.
Passados quatro anos, é ainda aqui que estamos — mas, depois da cimeira de Donald Trump e Vladimir Putin na segunda-feira, é possível que algo mude na mensagem de Washington D.C. para Moscovo. Nos dias que antecederam a cimeira de Helsínquia, Donald Trump foi chamado a falar várias vezes sobre a situação na Crimeia e em nenhuma delas foi específico.
Sobre a possibilidade de reconhecer aquela península como território da Rússia, ainda antes da cimeira da NATO de 11 e 12 de julho, respondeu: “Veremos”. E, no final da cimeira, admitiu não estar “feliz com o que se está a passar com a Crimeia” — mas sublinhou que a anexação aconteceu porque “o Presidente Obama permitiu que ela acontecesse”. E voltou a não abrir o jogo sobre o futuro. “O que vai acontecer com a Crimeia daqui para a frente é algo que não lhe posso dizer”, respondeu na conferência de imprensa.
A cimeira da NATO foi marcada pela tensão que Donald Trump impôs em grande parte dos restantes 28 membros da aliança militar, instando-os a cumprirem a meta de investimento de 2% do PIB em defesa — um objetivo firmado em 2014, precisamente em reação à presença russa na Ucrânia.
Porém, apesar da animosidade que terá levado Donald Trump a ameaçar com a saída dos EUA da NATO, a declaração conjunta que resultou daquela cimeira dava a entender que, para o conjunto dos 29 membros da aliança militar, nada mudava em relação à Ucrânia, à Crimeia e à Rússia. “Condenamos fortemente a anexação ilegal e ilegítima da Crimeia pela Rússia, que não reconhecemos nem reconheceremos”, lê-se naquele documento.
Além disso, a venda em abril de 2018 do sistema anti-tanque Javelin — que consiste em 210 mísseis e em 37 lançadores, pelos quais a Ucrânia pagou 47 milhões de dólares aos EUA — foi o passo mais concreto que os EUA deram para a defesa da Ucrânia perante a Rússia, desde o rebentar da crise da Crimeia. “Neste aspeto, a administração de Trump e o Pentágono têm sido muito mais úteis à Ucrânia do que a administração de Barack Obama, que demonstrou alguma hesitação no seu tempo”, diz ao Observador Mariana Budjeryn, investigadora do Belfer Center da Universidade de Harvard, nos EUA.
No entanto, atendendo às recentes declarações de Donald Trump, que deixa entender que tudo está em aberto para a cimeira com Vladimir Putin, não é fácil aferir, afinal, que valor tem aquele comunicado conjunto para Washington D.C.
“Existe um estado de nervosismo e medo entre os aliados dos EUA na NATO, porque nada garante que ele não venha a fugir do guião quando se encontrar com Vladimir Putin”, prossegue a analista de Harvard. “Não sabemos até que ponto é que o comunicado da NATO mudaria a hipótese de Trump ir pelas suas próprias vias à frente de Vladimir Putin, já que tem demonstrado que é uma pessoa impulsiva. O risco de isso acontecer perante Putin, que é um negociador experiente, com a escola do KGB, é preocupante.”
A embaixadora Laura Kennedy, antiga diplomata dos EUA cuja carreira passou pela União Soviética, refere que, mesmo que Donald Trump queira levantar as sanções contra a Rússia, o Congresso tratará de repô-las. “O nosso Congresso já deixou bem claro que apoia as sanções e isso é um consenso bipartidário que não vai desaparecer”, diz ao Observador.
Assim, um possível deslize de Donald Trump não levaria, de qualquer modo, a uma alteração do statu quo em torno da questão da Crimeia. Se, por um lado, Vladimir Putin parece inflexível no que toca àquela região, Donald Trump não teria, mesmo que quisesse, capacidade para alterar de um dia para o outro a postura dos EUA nesta questão sem antes falar com o Congresso e com a NATO.
Ivan Timofeev, investigador do think-tank moscovita Russian International Affairs Council, sugere que ambos os presidentes vão manter as suas posições iniciais — e o mundo vai ter de continuar a esperar, nos tempos que se seguem, por desenvolvimentos mais significativos naquela região. “Os dois presidentes vão muito provavelmente concordar em continuar a trabalhar para resolver o problema. Na linguagem da diplomacia, cada um vai ficar a achar o mesmo que já achava”, escreveu ivan Timofeev.
Síria: para falar sobre a Síria com Putin, Trump tem de tirar a senha e esperar
Não há unhas que cheguem para desatar o nó górdio da Síria, cuja guerra civil começou em 2011 e até hoje continua sem fim à vista. Nela já morreram 465 mil pessoas (pelas contas do Observatório Sírio dos Direitos Humanos) e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados aponta para a existência de pelo menos 5,5 milhões de refugiados sírios no estrangeiro e de mais de 6,5 milhões de deslocados dentro do país.
A guerra da Síria ganhou uma nova dimensão em outubro de 2015, quando a Rússia entrou assumidamente no conflito ao lado de Bashar al-Assad para combater o Estado Islâmico e “outros terroristas”, que vão desde grupos jihadistas a milícias da chamada “oposição moderada”.
Em menos de três anos, a intervenção russa na Síria permitiu a Bashar al-Assad recuperar grande parte do território (tornando a derrota dos opositores do regime sírio uma questão de “quando” e não de “se”) e deu a Moscovo a possibilidade de exercer naquela região uma influência que há muito procurava. Além de ser recebido de braços abertos em Damasco, Vladimir Putin é também agora visto com bons olhos pela Turquia — uma relação construída após o pico de tensão que se seguiu ao abate de um avião militar russo pelos turcos. E, nos últimos dias, vários líderes da região fizeram fila para falarem com o Presidente da Rússia no Kremlin. A 25 de junho, o primeiro-ministro do Líbano, Saad Hariri, foi a Moscovo encontrar-se com Vladimir Putin. A 4 de julho, foi a vez do ministro dos Negócios Estrangeiros da Jordânia — sendo que, em fevereiro, o próprio Rei Abdullah II foi à capital russa. Esta quarta-feira, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, fez o mesmo. E, logo no dia a seguir, Vladimir Putin encontrou-se com Ali Akbar Velayati, um dos principais conselheiros do Líder Supremo do Irão, o aiatola Ali Khamenei.
A guerra de todos onde ninguém ganha. Quais são os países que lutam na Síria?
Desta forma, no plano internacional, torna-se claro que, para fazer algo na Síria, há que falar primeiro com Vladimir Putin — algo que Donald Trump saberá muito bem. Tanto que, nas duas vezes em que decidiram atacar alvos de Bashar al-Assad, após o regime ter lançado ataques químicos contra civis (em abril de 2017 e em abril 2018), os EUA avisaram os russos antes de lançarem mísseis sobre a Síria.
A política dos EUA em relação à Síria tem sido marcada por impasses praticamente desde o início da guerra. Começaram no tempo de Barack Obama (que, mesmo depois de definir a ocorrência um ataque químico contra civis como uma “linha vermelha” que o faria atacar Bashar al-Assad, escolheu ficar de fora da Síria) e mantiveram-se no tempo de Donald Trump (que, dias antes de lançar o ataque de abril de 2018, dava a entender que estava na altura dos EUA retirarem o seu apoio aos curdos do YPG e também os seus dois mil soldados ali destacados).
No entanto, por mais ziguezagues retóricos que possam existir, o interesse estratégico dos EUA naquela guerra continua a ser o mesmo: impedir o crescimento do Irão na região e, assim, salvaguardar a segurança de Israel, maior aliado dos EUA naquela parte do mundo. O Irão (que combate na Síria a favor de Bashar al-Assad) e Israel (que olha para a guerra que tem a Norte com preocupação) têm protagonizado momentos de tensão cada vez mais frequentes na Síria. Em maio, no ponto mais alto desta tendência, Israel acusou o Irão de disparar 20 mísseis para o seu território nos Montes Golã (Teerão negou) e retaliou com um ataque aéreo contra vários alvos iranianos em solo sírio. “Se nós tivermos chuva, eles terão tempestades”, ameaçou então o ministro da Defesa de Israel, Avigdor Lieberman.
Aos EUA (e a Israel) interessa que esta situação não escale mais — e, por isso, é possível que, durante a cimeira de Helsínquia, Donald Trump peça a Vladimir Putin que use a sua influência na Síria para, pelo menos, diminuir a posição do Irão naquele país. “Donald Trump terá em grande consideração as necessidades de Israel”, sublinha a embaixadora Laura Kennedy. “Pode haver um acordo com a Rússia, que resulte na retirada de milícias pró-Irão da fronteira com Israel”, acrescenta, como uma possibilidade de entendimento entre os dois líderes.
Não é claro, porém, até que ponto é que Vladimir Putin quer para já esse desfecho — e, mesmo que o queira, não é líquido que seja capaz de convencer Teerão a sair da Síria. “Há relatos que sugerem que o Presidente Putin está disponível para pressionar o Irão a retirar as suas forças do sudoeste da Síria, junto à fronteira com Israel, de maneira a dar ao Presidente Trump um feito que ele possa reclamar”, escreve Robert Legvold, analista norte-americano especializado nos países da ex-URSS, no site do Valdai Discussion Club, um think-tank russo próximo de Vladimir Putin. “O problema é que o objetivo do s EUA é tirar os Irão de toda a Síria e isso a Rússia não quer, nem consegue cumprir.”
A retirada das milícias pró-iranianas, onde se incluem também os libaneses do Hezbollah, seria de qualquer das maneiras um processo moroso e, acima de tudo, arriscado. Uma vez que o Irão e a Rússia combatem na Síria de forma paralela, sem que as suas missões coincidam geograficamente na maior parte dos casos, a retirada do Irão de uma determinada localização poderia criar um vácuo propício ao ressurgimento de rebeldes.
Certo é que a Rússia quererá sempre ser o último país a sair da Síria, quando um dia a guerra ali terminar. E, em bom rigor, nunca sairá, já que por ali tem duas bases militares — a naval de Tartus, construída em 1971; e a aérea de Khmeimim, em funcionamento desde 2015.
Em maio, o mandatário do Kremlin para a Síria, Aleksander Lavrentiev, deixava claro que o objetivo será que todas as forças externas saiam da Síria — menos a Rússia, claro. “Existem sinais de que estamos numa última fase, porque o Estado Islâmico já está quase derrotado. Esta conversa inclui os americanos, os turcos, o Hezbollah e, claro, os iranianos”, disse. “À medida que a situação estabilizar, além das nossas duas bases, não haverá mais nada.”
Assim, é possível que, ao ouvir a exigência de Donald Trump para que convença os iranianos a saírem da Síria, Vladimir Putin inste o Presidente norte-americano a fazer o mesmo. “É possível deixar a Síria neste momento, porque o objetivo foi combater o Estado Islâmico, que está dizimado. Mas será que é do interesse dos EUA sair da Síria, abrindo mão da pouca influência que ainda têm por ali?”, questiona a embaixadora Laura Kennedy.
Num artigo na Foreign Affairs, Jennifer Cafarella, diretora de Intelligence Planning do Institute For the Study of War, escreveu sobre a importância de os EUA não saírem da guerra na Síria. “O Irão e a Rússia vão poder usar a Síria como uma rampa de lançamento para as suas agressões internacionais”, advertiu a investigadora. “A capacidade de Vladimir Putin projetar a sua força a partir da Síria vai ajudá-lo a desgastar a aliança da NATO e a debilitar a ordem mundial liderada pelos EUA, vai permitir-lhe explorar os diferendos entre os EUA e os seu aliados e parceiros.” E também refere as vantagens que o Irão pode obter no caso de uma saída dos EUA: “O Irão está a estabelecer bases e a criar proxies na Síria para conseguir abrir uma segunda frente contra Israel numa guerra futura. Israel não vai permitir isto e pode escalar a situação para uma operação de terreno no Sul da Síria, como prevenção”.
Como já é hábito, Donald Trump, também na questão da Síria, escusou-se a entrar em pormenores. Quando lhe perguntaram sobre os curdos naquele país (os EUA apoiam militarmente as milícias do YPG, no Norte), o Presidente dos EUA foi esquivo e ignorou o tema. E, na única ocasião em que referiu a Síria, deixou claro que, na verdade, quem dá as cartas é mesmo Vladimir Putin: “Como sabem, vou encontrar-me com o Presidente Putin na segunda-feira e eu acho que vamos para aquela reunião sem esperar grande coisa. Vamos querer saber da Síria”.
Energia: o jogo duplo dos EUA
Se é certo que é o dinheiro que faz o mundo girar, não é menos acertado dizer que é a energia que faz muito dinheiro girar pelo mundo. Será, por isso, um dos temas certos em cima da mesa na cimeira de Helsínquia — e, ao contrário do que pode acontecer com o tema da Ucrânia e da Síria, e apesar de os interesses da Rússia e dos EUA entrarem em conflito também aqui, há entendimentos possíveis entre as duas partes.
Donald Trump tem pedido várias vezes que a produção de petróleo aumentasse. Desta forma, os EUA conseguiriam atingir dois objetivos com apenas um gesto. Primeiro porque, ao aumentar a produção de petróleo, os preços baixariam — e assim os EUA poderiam comprá-lo a um preço mais baixo à Arábia Saudita, aliado dos EUA e maior potência petrolífera do mundo. Depois, porque o Irão, terceiro maior produtor mundial, veria os seus rendimentos do petróleo a cair a pique, com as sanções impostas pelos EUA — que afastaria países como os da UE de comprarem petróleo iraniano. “O nosso objetivo é aumentar a pressão contra o regime iraniano ao reduzir para zero os seus rendimentos de vendas de crude”, disse o diretor de estratégia do Departamento de Estado dos EUA, Brian Hook, no início de julho.
Da parte da Rússia, também é visto com bons olhos um aumento da produção de petróleo — algo que já está a acontecer, embora de forma tímida. Embora não possa vender o seu petróleo a países da UE ou aos EUA, fruto das sanções aplicadas após a anexação da Crimeia, a Rússia tem a ganhar internamente com uma queda do preço do petróleo. “Moscovo tem as suas razões para prevenir uma subida dos preços do petróleo. Os preços altos do petróleo tornam mais difícil ao Governo prevenir a valorização do rublo, o que seria mau para a economia russa”, escreve Amy Myers Jaffe, especialista em geopolítica energética, no blogue do think-tank Council on Foreign Relations, dos EUA.
Assim, em benefício próprio e em detrimento do Irão, a Rússia pode chegar a um entendimento fácil com os EUA para ajudar a baixar os preços do petróleo — dando uma prova de que, no que toca a entendimentos com Teerão, o que acontece na Síria não sai mesmo da Síria.
No entanto, nem tudo será fácil no que toca à discussão do tema da energia. Antes, durante e depois da cimeira da NATO, Donald Trump referiu várias vezes a construção do Nord Stream 2, gasoduto que a Rússia está a construir até à Alemanha e que pode mais do que duplicar a atual transferência de 55 mil milhões de metros cúbicos de gás natural que o Nord Stream original já proporciona. Está previsto o Nord Stream 2 ter a sua construção terminada entre o fim de 2019 e o início de 2020 — mas, até lá, Donald Trump tratará de colocar tantos obstáculos quanto puder ao sucesso daquela operação.
Para Donald Trump, é difícil aceitar que a Alemanha receba a cooperação dos EUA na NATO para se defender da Rússia e que, ao mesmo tempo, Berlim esteja a ajudar a construir um gasoduto que lhe vai trazer gás natural mais barato, proporcionando um bom negócio a Moscovo. O Presidente dos EUA vê aqui uma desfeita da Alemanha, acusando-a de estar “capturada” pela Rússia. Também a União Europeia tem procurado demover Berlim desta jogada — sem efeito, para já.
O funcionamento do Nord Stream levaria ainda a uma possível quebra de rendimentos da Ucrânia, que perderia pelo menos 2 mil milhões de dólares por ano com a queda das tarifas de trânsito de gás natural entre a Rússia e o resto da Europa. Angela Merkel já disse que pretende minimizar estes efeitos, mas ainda não entrou em pormenores quanto à maneira de lá chegar.
Certo é que Donald Trump quer que nem a Alemanha nem a Rússia cheguem a lado nenhum com o Nord Stream 2. Até porque, escreve Igor Yushkov, especialista russo em energia, no site do Russian Internacional Affairs Council, os EUA querem aproximar-se da Rússia como potência exportadora de gás. “Nos últimos anos houve mudanças significativas no mercado global do gás, com os EUA a passarem de importador de gás para exportador de gás. Este facto é extremamente importante para entender a posição americana no Nord Stream 2”, escreveu o analista russo.
O objetivo dos EUA será o de garantir que a Rússia uma limitação do gás natural da Rússia e assim subir os preços — algo que tenta fazer com o bloqueio do Nord Stream 2, e que conseguiu atingir, de facto, ao convencer a Bulgária a não avançar com o South Stream, mas que não chegou a tempo de impedir na Turquia, que neste momento já constrói com a Rússia o Turk Stream.
Ao mesmo tempo, garantindo que os preços do gás natural ficam altos na consequência de um travão à Rússia, os EUA estarão assim em melhores condições para vender o seu próprio gás em mercados onde questões logísticas obrigam a que o preço seja sempre elevado. Como, por exemplo, a UE.
No final de 2017, os EUA eram o sexto maior exportador de gás natural liquefeito para a UE, segundo números da Comissão Europeia, com 4% do mercado. À frente, estavam a Noruega e o Peru (7% cada um), Argélia (17%), Nigéria (19%) e Qatar (41%).
Esta quarta-feira, o comissário europeu para a Energia, Maroš Šefčovič, anunciou que, numa reunião com os EUA no Conselho de Energia, foi acordado um aumento das importações para a UE de gás natural liquefeito vindo dos EUA. “Um novo mercado e um novo fornecedor de gás natural liquefeito seria para a Europa uma verdadeira mudança no nosso esforço de diversificação energética e de fortalecer a segurança energética na Europa”, disse, esta segunda-feira.
The rise of the #LNG market, and namely additional LNG supplies from the US, could be a real game-changer in our diversification efforts. With @SecretaryPerry after the #EUUSEnergyCouncil, agreed both sides have homework to do. This would be a win-win! @EUintheUS @ENERGY @US2EU pic.twitter.com/EIUQaVxudI
— Maroš Šefčovič???????? (@MarosSefcovic) July 12, 2018
Armas nucleares: acreditará Trump em Putin ou é só bluff?
“Não é bluff.”
Foi desta forma que Vladimir Putin resumiu ao que queria chegar quando apresentou, no início de março, a poucas semanas das eleições presidenciais onde foi eleito para um quarto mandato, o novo míssil nuclear desenvolvido pela Rússia. Trata-se do RS-28 Sarmat, que Vladimir Putin apresentou com recurso a um vídeo, que demonstrava as várias trajetórias possíveis deste míssil, capaz de atingir qualquer parte do mundo de forma imprevisível e “invencível”.
A mensagem tinha dois destinatários óbvios: a UE e, acima de tudo, os EUA: “Quero dizer o seguinte a todos os que nos últimos 15 anos têm alimentado a corrida às armas nucleares e aplicaram sanções ilegais com o objetivo de impedir o desenvolvimento do nosso país, incluindo no campo militar: tudo o que vocês queriam impedir com as vossas políticas acabou de acontecer. Falharam e não conseguiram controlar a Rússia”.
Será com estas palavras a ecoar na memória que Donald Trump vai sentar-se com Vladimir Putin em Helsínquia — e será precisamente por estas palavras que os dois líderes procurarão, de alguma forma, chegar a um entendimento que, à falta de possibilidade de um ponto final, coloque pelo menos um ponto e vírgula na atual corrida às armas nucleares entre os EUA e a Rússia.
Não é uma questão de somenos. De acordo com o Stockholm International Peace Research Institute, os EUA e a Rússia detêm 92% das armas nucleares de todo o mundo e cada um acusa o outro de não cumprir o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermédio (INF, na sigla inglesa, assinado em 1987), que proíbe os mísseis nucleares ou balísticos com um alcance de 500 a 5500 quilómetros. Há, porém, um acordo que os dois ainda respeitam: o New START, de 2010. E é a esse acordo que a maior parte dos especialistas esperam que os dois líderes se agarrem, renovando-o já me 2018, em vez de esperarem pela aproximação da sua data de expiração, em 2021.
O acordo New START foi assinado entre o Presidente Barack Obama e o Presidente Dimitri Medvedev em 2010, altura em que as relações entre os dois países atravessavam um momento de acalmia. Naquela altura, ficou estabelecido que até 2021 os dois países se comprometeriam a não ter mais do 1550 armas nucleares prontas a serem usadas. E é por baixo dessa fasquia que continuam, oito anos depois. Em fevereiro de 2018, a Rússia declarava ter 1444 ogivas nucleares disponíveis para uso imediato, ao passo que os EUA contavam da sua parte 1350.
Tanto da parte de Vladimir Putin como do lado de Donald Trump, parece haver disponibilidade para renovar este acordo já na cimeira de Helsínquia — apesar de o Presidente dos EUA já ter dito que o New START é apenas “mais um dos maus negócios da administração Obama”.
“Renovar o New START seria um bom sinal para o qual Donald Trump não precisa sequer da aprovação do Senado e que para a Europa seria um sinal de tranquilidade”, sublinha a embaixadora Laura Kennedy. “Claro que ele já disse que este tratado é mau e que é da responsabilidade de Barack Obama, mas neste momento é preciso que haja uma conversa franca e informada, com recurso aos especialistas e entendidos no tema.”
Mariana Budjeryn refere que, numa altura de “elevadas tensões entre os dois países”, seria, à partida, “muito difícil” que da cimeira de Helsínquia resultasse uma extensão do New START. “Putin vai exigir concessões em troca em temas como a Ucrânia e a Síria e não é óbvio que Donald Trump possa responder-lhe como ele quer”, diz a investigadora de Harvard.
Já Adlan Margoev, diretor do programa para a Não-Proliferação da Rússia, do think-tank russo PIR Center, refere que, apesar de ter componentes técnicos, o tema das armas nucleares é “acima de tudo político”. “Claro que há sempre partes técnicas a resolver, mas, quando os especialistas de cada lado se sentarem frente a frente e falarem sobre as questões mais técnicas, haverá sempre medidas políticas a tomar para desanuviar a situação”, diz ao Observador.
Ainda assim, este investigador russo não acredita que haja um desfecho claro neste tema já na cimeira de Helsínquia. “É preciso moderar as expectativas”, alerta. “Mas já será um bom sinal que os presidentes falem a este nível para que, em ocasiões futuras, este processo demonstre que tem sustentabilidade e permita a realização de outras cimeiras.”