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São “três Zés“, como os descreveu uma fonte partidária local ao Observador, todos militantes socialistas, e estão no olho do furacão após a morte de 18 idosos no lar de Reguengos de Monsaraz. No site da autarquia, José Calixto exibe uma lista com os 12 cargos que ocupa, mas omite um deles. O presidente da câmara de Reguengos de Monsaraz, eleito pelo PS, é também presidente da fundação proprietária dona do lar. Por sua vez, a entidade que supervisiona a instituição, o Centro Distrital da Segurança Social de Évora, é presidida por José Ramalho, ex-líder do PS/Estremoz. A Administração Regional de Saúde do Alentejo — a quem também é atribuída responsabilidade no caso — é presidida por José Robalo, antigo deputado municipal do PS no Alandroal. São estes alguns dos nomes que levaram o PSD a falar de “teia de relações partidárias” nas autoridades de saúde e da segurança social no distrito de Évora.
O PSD nacional emitiu um comunicado onde fala em “dimensão insuportável” e captura de cargos no Alentejo por parte do PS. Desfiando o novelo, a ocupação de cargos por militantes do PS vai desde as estruturas regionais até à associação de bombeiros voluntários, passando pela misericórdia ou mesmo por escolas profissionais. Para não falar do clube da terra. “Reguengos não é um concelho, é um Estado socialista ou um regime feudal“, diz um membro da distrital do PSD. Na resposta ao Observador, José Calixto fala em “campanha negra” contra si feita por “pessoas que não estão preocupadas com os idosos nem com o que andámos aqui a passar nos últimos meses“.
Calixto: o presidente por inerência e uma “idónea” do PS
Reguengos de Monsaraz é a única autarquia no distrito de Évora que foi sempre do PS desde o 25 de Abril, rodeada por vizinhos comunistas por todos os lados. Por ser, nos anos 1970, quase uma irredutível aldeia gaulesa em terras comunistas, passou a ser um marco socialista na região.
José Calixto, “filho de famílias humildes”, como o próprio se descreve, apanhou a revolução com dez anos e nos anos seguintes nunca se aproximou das jotas. Mas aos 25 anos, em 1989, como muitos amigos, filiou-se no Partido Socialista. Apesar de ter as quotas em dia e orgulhar-se disso foi para Lisboa trabalhar e fez carreira fora da política.
Até que tudo mudou. Em 2005, José Calixto começou a entrar nas disputas de Reguengos para ajudar um amigo, António Luís Medinas, que queria presidir aos bombeiros da terra. A lista ganhou, o PS — que muitas vezes se confunde com estas instituições naquele município — percebeu que tinha ali um ativo junto da população e já não o largou. Começaria ali a carreira política de Calixto.
Vítor Martelo, presidente desde 1977, teve de sair em 2009 devido à limitação de mandatos e a estrutura escolheu Calixto. Com a força do PS, José Calixto foi eleito presidente da câmara nesse ano, num cargo que ocupa até hoje. Além disso, é também presidente da Assembleia Geral dos Bombeiros, da Mesa da Assembleia Geral do Atlético Sport Club e também, como já foi noticiado, da Fundação Maria Inácia Vogado Perdigão Silva, entidade proprietária do lar onde morreram 18 idosos.
José Calixto é presidente da fundação por inerência, mas não é uma inerência direta. De tal forma que o autarca é presidente do município desde 2009, mas só preside à fundação desde 2018. Os estatutos (que foram alterados em 2009 e 2019) preveem que o Conselho de Administração seja composto pelo presidente da câmara, pelo provedor da Santa Casa da Misericórdia, por um coordenador da Unidade de Saúde Familiar local de Reguengos de Monsaraz e pelo presidente da junta de Reguengos.
O anterior presidente da câmara, o “dinossauro autárquico” Vítor Martelo, não abandonou a presidência da Fundação quando saiu da presidência, uma vez que os cargos de direção são vitalícios. Só há duas formas de substituir membros: por escusa pessoal ou morte. Assim, os membros do Conselho de Administração só saem quando querem. Vítor Martelo lá deu lugar a Calixto, mas das quatro sugestões de inerência estatutárias só duas ocupam efetivamente os cargos.
A secretária da Mesa é Ana Paixão Duarte, presidente da Assembleia Municipal de Reguengos de Monsaraz, eleita nas listas do PS e uma pessoa da confiança de Calixto. Aqui não há qualquer inerência. Foi mesmo uma escolha que recaiu sobre uma camarada de partido. Ao Observador, Calixto explica que Ana Duarte foi escolhida pela Fundação por ser uma “pessoa idónea” e não por ser presidente da Assembleia Municipal. O ponto dois do artigo 11º dos estatutos diz que se as pessoas ali descritas não quiserem ocupar os cargos, pode ser escolhida uma “pessoa da maior consideração e idoneidade, residente no Conselho de Reguengos de Monsaraz“.
Ana Paixão Duarte é socióloga e, mesmo entre os funcionários do lar, não lhe são reconhecidas competências para gerir a instituição. O presidente da fundação e da autarquia admite ao Observador que muita da “gestão diária” da instituição passa pela sua presidente da Assembleia Municipal, embora destaque que não é administradora executiva, como se diz na vila, mas sim secretária da mesa e que o cargo “não é remunerado“.
Como nasceu a fundação?
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A Fundação Maria Inácia Vogado Perdigão Silva foi criada em 1961 e acolheu os primeiros idosos a 1 de junho de 1969, um ano depois da morte do seu fundador: Inácio Coelho Perdigão. A origem da instituição, como é explicado na demonstração de resultados, está diretamente ligada à morte da filha, Maria Inácia (que deu nome à fundação), que faleceu de forma prematura, aos 47 anos e sem deixar descendentes.
Embora tenha começado como centro de assistência a idosos, a fundação tem também uma creche e serviços de saúde. A fundação tem hoje uma IPSS (o lar de idosos e centro de dia), um jardim de infância e uma Unidade de Cuidados Continuados.
Para estas valências a fundação recebeu em 2019 cerca de 1,27 milhões de euros em apoios públicos.
Toda a administração da fundação que gere o lar é constituída por militantes e um apoiante público do PS. Outro dos vogais da direção é António José Bico Medinas, que é membro da Comissão Política do PS. Medinas foi presidente da junta de freguesia de Reguengos, mas quando abandonou o cargo em 2013 entendeu que não devia sair. Como os estatutos o permitem, ali continua. Entretanto as suas sucessoras na junta de freguesia de Reguengos, Élia Quintas e Rosa Campaniço, acabaram por nunca tomar o lugar na fundação. Sobre isto Calixto diz apenas ao Observador: “Só tenho uma certeza: no meu caso não será vitalício. Quando deixar de ser presidente de câmara, abandono a Fundação”.
Outro dos vogais é Joaquim Passinhas, que também é membro da Comissão Política do PS e deputado municipal eleito pelas listas do PS. O único que não é militante do PS é o provedor da Santa Casa da Misericórdia de Reguengos de Monsaraz, Manuel Galante, mas apoiou publicamente, ao que o Observador conseguiu apurar, a candidatura autárquica do PS de José Calixto em 2017 e 2013.
A própria Santa Casa da Misericórdia de Reguengos de Monsaraz (SCMRM) é completamente controlada por militantes do PS. Dos restantes seis elementos — além de Manuel Galante — cinco são socialistas. O vice-provedor é Fernando Calixto Quintas, deputado municipal do PS na Assembleia Municipal, eleito numa lista encabeçada por Ana Paixão Duarte. Nuno Miguel Cardoso é outro dos membros da Mesa da Santa Casa e é igualmente membro da bancada do PS no mesmo órgão municipal. O mesmo acontece com João Manuel Amante, que também já fez parte da Assembleia de Freguesia de Monsaraz como eleito do PS. Na direção da SCMRM há ainda Marisa Bento, que é atual vogal do PS na junta de freguesia de Reguengos de Monsaraz. Fora da direção, mas a presidir ao órgão que a fiscaliza, a Mesa da Assembleia Geral, está Jorge Nunes, que é nada mais nada menos que vereador do PS no executivo liderado por José Calixto.
O “Zé das Festas” que criou as ‘Docess’ preside à entidade supervisora do lar
O lar de Reguengos, bem como outras estruturas da Fundação que a detém, deve ser fiscalizado e supervisionado pela Segurança Social. O Centro Distrital da Segurança Social de Évora também é liderado por um socialista: José Ramalho, que foi presidente do PS/Estremoz e foi vereador nesse município do distrito de Évora. Ou seja: o diretor da estrutura é camarada de partido de José Calixto. Sobre se esse facto podia ter levado a Segurança Social a ser menos exigente com a fundação, o autarca de Reguengos de Monsaraz confirmou que tem uma boa relação com José Ramalho e que tiveram de trabalhar juntos em vários projetos. Mas nega que sejam amigos: “O meu círculo de amigos está muito longe de ser o círculo de amigos do partido“.
Quando o PS está no poder, José Ramalho é nomeado para cargos da Segurança Social. Foi assim em 2005 quando foi nomeado durante o governo de José Sócrates diretor do Centro de Emprego de Estremoz, onde ficaria até 2012. Foi assim também 2016, já durante o governo de António Costa, quando foi nomeado diretor do Centro de Emprego de Évora. Ainda durante o primeiro governo do atual primeiro-ministro, José Ramalho subiu a diretor distrital da Segurança Social, a 9 de janeiro de 2018. Não levava dois anos no cargo quando se viu envolvido em polémicas.
José Ramalho — que não respondeu às questões enviadas pelo Observador antes da publicação deste artigo — é conhecido por alguns funcionários da Segurança Social de Évora como o “Zé das Festas”. Há pouco mais de um ano uma investigação da TVI revelava que — ao mesmo tempo que havia atraso no pagamento das prestações sociais — José Ramalho organizava festas na própria Segurança Social. Havia inclusive provas de que o fazia durante o horário de expediente. As festas tinham karaoke e o presidente do centro distrital criou mesmo uma girls band chamada “As Docess” (os dois ésses significam Segurança Social) composta por funcionárias da Segurança Social. Na própria vila de Reguengos de Monsaraz as “Docess” tornaram-se famosas pelas suas atuações. Circularam também vídeos de funcionários a dançarem a música Bamboleo, dos Gipsy Kings.
Uma parte significativa do financiamento da Fundação que detém o lar de Reguengos onde morreram 18 idosos vem da Segurança Social: 682,8 mil euros, que correspondem a 53% dos mais de 1,2 milhões de euros de subsídios. Os apoios públicos fazem com que a Segurança Social tenha o dever de fiscalizar aquela instituição.
O próprio José Ramalho veio substituir uma militante do PSD, já que o governo de Passos escolheu Sónia Ramos, que era presidente da distrital de Évora do PSD. O atual diretor distrital da Segurança Social viu-se envolvido em outras polémicas, noticiadas pela imprensa local, tendo mesmo sido constituído arguido num processo em que era suspeito de fazer uso indevido de documentos do município do Alandroal, executivo liderado pelo PS.
Um dirigente do PSD disse ao Observador que acredita que a ministra do Trabalho e da Segurança Social não agiu de forma mais rápida e assertiva em Reguengos de Monsaraz precisamente para “proteger todos estes seus correligionários de partido”.
O terceiro ‘Zé’: o Robalo que até o PSD nomeou é acusado de pressionar médicos
O médico José Robalo foi nomeado subdiretor-geral de saúde no tempo de José Sócrates (em abril de 2005, onde ficou até outubro de 2011). Antigo deputado municipal do PS no concelho do Alandroal, Robalo sobreviveu ao governo de Passos em cargos de chefia e conseguiu que o então ministro da Saúde Paulo Macedo o nomeasse presidente da ARS Alentejo. As estruturas locais dos partidos estão tão habituadas à dança de cadeiras entre os partidos (quando o governo muda, muda a cor das estruturas regionais entre PS, PSD e CDS) que a nomeação de Robalo por Paulo Macedo provocou uma pequena revolta na distrital do PSD em 2011.
O presidente da distrital de Évora do PSD da altura, António Costa da Silva, disse em 2011 que a escolha do socialista “causou estranheza dentro do partido” quando havia “outras opções qualificadas” para o cargo.
Os anos passaram e agora o PSD esqueceu-se que foi o governo de Passos que nomeou para o cargo e que uma das vogais de Robalo na ARS (Paula Marques) foi candidata na lista escolhida por Rui Rio nas últimas eleições europeias, em maio de 2019. Mas não é só o PSD a apontar falhas a José Robalo na gestão do caso do lar de Reguengos. A Ordem dos Médicos denunciou que os profissionais que se recusaram a prestar cuidados aos utentes do lar foram ameaçados pelo presidente da ARS Alentejo que os quis obrigar a fazê-lo.
A ARS também financia e está diretamente envolvida com a Fundação Maria Inácia Vogado Perdigão Silva, uma vez que existe uma Unidade de Cuidados Continuados para convalescença e de longa duração.
Os bombeiros que também são cor-de-rosa e uma fundação familiar
E se as ligações ao lar se ficam por aqui, José Calixto pertence ainda a outras instituições. Desde logo é presidente da Assembleia Geral dos Bombeiros Voluntários de Reguengos, que também tem militantes do PS no topo. Desde logo a presidente dos bombeiros é Esmeralda Fama, que faz parte do executivo da junta de freguesia de Reguengos de Monsaraz eleita pelo PS. O vice-presidente dos bombeiros é nada mais, nada menos que o chefe de gabinete de José Calixto, Pedro Carvalho. Por sua vez, Pedro Carvalho é ainda presidente de outra associação: a Secção de Motorismo de Reguengos de Monsaraz.
Mas o que se passa em Reguengos é apenas um novelo que — se se começar a puxar a ponta — vai dar a Évora e a outras fundações do distrito. Desde logo o mesmo José Calixto é presidente do Conselho Fiscal da Fundação Alentejo, que detém instituições de ensino como escolas profissionais. O outro membro do Conselho Fiscal é o presidente da câmara de Viana do Alentejo, Bernardino Pinto.
A mesma Fundação Alentejo (proprietária da EPRAL, Escola Profissional da Região Alentejo) é há muitos anos presidida pela antiga governadora civil do PS em Évora, Fernanda Ramos. Além de ter vários socialistas nos órgãos sociais, a Fundação Alentejo — que recebe várias subvenções públicas e fundos comunitários — tem também familiares da presidente. O vice-presidente da Fundação é o filho da presidente, Cláudio Carvalho Ramos, e uma das vogais efetivas é a filha da antiga governadora civil, Sofia Alexandra. Perante isto, um dirigente do PSD disse ao Observador: “O PS é assim. É mais famílias. Nós, no PSD, muitas vezes, com pena minha, também fazemos destas, mas vamos mais pelos interesses de empresas, económicos, etc. O PS é mais famílias”.