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Foi o génio puro, o louco incontrolável, o predestinado contra qualquer plano, programa, teoria, estratégia, preparação

Getty Images

Foi o génio puro, o louco incontrolável, o predestinado contra qualquer plano, programa, teoria, estratégia, preparação

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A última morte de Diego Armando Maradona (1960-2020)

Como o deus-demónio absoluto (1960-2020) nos ensinou a respeitar e a admirar mais os imperfeitos do que os imaculados. A dobrar-nos com mais reverência perante o pecador do que o santo.

Nas próximas horas e nos próximos dias, serão produzidos muitos milhões de textos sobre Diego Armando Maradona. Posts, memes, artigos, perfis, testemunhos, obituários, documentários, entradas de enciclopédia, declarações oficiais, oficiosas, institucionais, políticas, familiares, de antigos companheiros, detratores, amantes, amigos, inimigos, hipócritas. Nada ficará por dizer acerca de uma das vidas mais expostas do último meio século no mundo. Que podemos acrescentar? Nada.

E, porém, todos sentimos a necessidade de dizer alguma coisa porque é impossível ver partir uma das personagens mais marcantes da história da nossa estadia na Terra sem uma palavra, com um simples lamentar de ombros, como se ver morrer um extraterrestre fosse apenas outra quarta-feira qualquer. Não foi. 25 de Novembro passa a ser também o dia em que o 10 desapareceu da numeração.

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Nas televisões, já se vão multiplicando os depoimentos dizendo que ninguém esperava, que nunca ninguém está preparado, mesmo com as notícias do internamento nos últimos dias, da anemia, da depressão, da operação de urgência à cabeça. Permitam-nos discordar. A morte de Maradona era um assunto adiado há mais de 20 anos. Os deuses, por admiração e respeito, foram-no deixando ficar. Só mais um dia, só mais um ano, só mais um clube, só mais uma oportunidade, só mais um escândalo, um emprego, um despedimento, uma relação, uma desintoxicação, uma polémica, um problema de saúde. Mas Diego era há muito figura póstuma a ele mesmo. Deixou a cortina entreaberta depois do fim do espectáculo. Agora, a luz apaga-se. Descansa em paz.

Maradona era a figura capaz de espatifar a feira de aparências em volta com o mesmo à vontade com que partia os rins a sete ou oito belgas ou dez ingleses que lhe saíssem ao caminho

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Para um miúdo que tenha crescido nos anos 80, Maradona foi uma das personalidades mais marcantes não apenas do futebol, mas de toda a nossa educação moral. Chamamos-lhe deus, mas era na verdade o diabo: representava rigorosamente o oposto de tudo o que nos ensinavam que se devia fazer. Era arrogante, mal-educado, quezilento, bebia, drogava-se, ganhava enganando o árbitro e ludibriando as autoridades e gabando-se no fim. Este escriba que vos fala era, então, mais apreciador dum Van Basten, do tipo que fazia as coisas bem, da forma correta, e que, claro, as injustiças do mundo castigaram com lesões gravíssimas que o tiraram, basicamente, do jogo aos 28 anos. Já quando Maradona começou a ser castigado pelo seu comportamento fora das quatro linhas, era apenas justiça a fazer-se, a consequência lógica dos seus atos irrefletidos, de acordo com o nosso catecismo. Era?

A segunda vida de El Dios

O Mundial de 86 e os anos do Nápoles serão, certamente, as recordações mais marcantes para quem acompanhou toda a carreira de Maradona. Mas, para nós, que tínhamos chegado à plateia ligeiramente mais tarde, o momento é o Mundial de 1994, nos Estados Unidos. Maradona já tinha morrido uma vez. Já tinha caído do Olimpo para a desgraça, sido escorraçado do futebol, mandado de volta para a casa de partida e, depois, nem isso. Era o maldito, o drogado, o rico menino pobre que deitara tudo a perder. E, então, nesse tempo de Romários e Bebetos, Baggios e Maldinis, Hagis e Stoichkovs, apareceu uma seleção argentina de sonho, que tinha Redondo e Simeone, Balbo e Batistuta, Caniggia… e Maradona.

Maradona não era o mau, nem o bom, nem certamente um deus. Era um herói trágico. O herói trágico. Destinado a brilhar como um deus e, depois, cair como um homem. Um diabo cheio de talento e coração, quantas vezes melhor do que os puritanos em volta.

Sem que então sequer tivesse clube, mas dono e senhor natural da camisola 10 e da braçadeira de capitão, Maradona foi à América comandar a equipa que jogava o futebol mais apaixonante do torneio, em contraste, por exemplo, com o entediante Brasil de Carlos Alberto Parreira, que se sagraria campeão. Dois grandes jogos, outras tantas vitórias, um golaço e quase engolir uma câmara de televisão depois, saiu de campo sorridente, de braço dado com a enfermeira que o levaria para o controlo anti-doping – ar de consciência mais tranquila impossível. Era a segunda morte de Maradona e ainda não sabíamos. Dias depois, a notícia: tinha acusado positivo e era expulso do Mundial, pedindo desculpas públicas e assumindo toda a responsabilidade, para que a sua seleção não fosse punida e pudesse continuar em prova.

Mas já não era a mesma argentina. Era uma galinha sem cabeça. Dois jogos sem brilho mais tarde, caíam, com Maradona a chorar na bancada como um bebé. Julgo que, naquele momento, terá apetecido a todas as mulheres do mundo, mesmo às mais moralistas, dar-lhe colo. E a todos os homens, mesmo aos mais penteadinhos dos peneirentos, oferecer-lhe um abraço.

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Muita gente diz que o que retirou Maradona desse Mundial, que poderia ter sido um dos mais belos da história do futebol, foi apenas um medicamento usado para emagrecer e que a FIFA quis fazer dele um caso exemplar. Não importa. Nesse dia, éramos já adolescentes e reorganizámos definitivamente o nosso código moral: Maradona não era o mau, nem o bom, nem certamente um deus. Era um herói trágico. O herói trágico. Destinado a brilhar como um deus e, depois, cair como um homem. Um diabo cheio de talento e coração, quantas vezes melhor do que os puritanos em volta. A figura capaz de espatifar a feira de aparências em volta com o mesmo à vontade com que partia os rins a sete ou oito belgas ou dez ingleses que lhe saíssem ao caminho. Por isso, a nossa memória mais pronta de Maradona será sempre aquela: a do deus imperfeito, o rico menino pobre gritando pela vida para a câmara, depois de uma primeira morte e de, com um petardo do meio da rua, quase furar a rede da seleção da Grécia.

Diego Maradona has died

Estão a ver as centenas de horas de televisão de pretensos entendidos a falarem sobre futebol, blocos, momentos do jogo, entre linhas e afins? O pé esquerdo de Maradona é tudo o que lhes escapa

dpa/picture alliance via Getty I

O louco

Diego Maradona não foi a primeira rock star do futebol. Antes dele já tinha havido, por exemplo, um George Best. Mas, enquanto Best apenas se divertia, Maradona representava uma viagem mais longa, mais sofrida, muito mais simbólica. Como é que aprendemos a amar esse louco egocêntrico fora-de-lei? Ponham os vídeos a correr no You Tube – como poderíamos não amar?

Maradona foi o génio puro, o louco incontrolável, o predestinado contra qualquer plano, programa, teoria, estratégia, preparação. Falámos do cinzentismo do Brasil? E os alemães? Ortodoxos, alinhados como num exército, filhos do amor proibido entre um compêndio de jogadas, uma régua e um esquadro. E os Milans, os Inters, as Juventus, todos os ricos clubes do Norte? E a Inglaterra, derrubada com a mão de Deus e o melhor golo da história do futebol, como se um pequeno argentino pudesse vingar um país inteiro pela humilhação das Malvinas, três anos antes?

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Venham todos os treinos, todos os cursos de formação, todos os ginásios e formas científicas de desenvolver o corpo e a recuperação muscular. Aprendemos a amar a loucura diabólica de Maradona porque reconhecíamos nela o génio puro, inimitável. Estão a ver as centenas de horas de televisão semanal de pretensos entendidos a falarem sobre futebol, blocos, momentos do jogo, entre linhas e afins? O pé esquerdo de Maradona é tudo o que lhes escapa. O pé esquerdo, a gana, a veneta. Hoje, o melhor comentário que podiam fazer era calarem-se todos. Pousarem os óculos e a linguagem comprada em pack. Zip. Nem um pio. Um dia de silêncio nas bancadas do mundo.

Não é por acaso que falhou num clube perfeito como o Barcelona e foi, depois, amado como rei no Nápoles, emblema tantas vezes maldito, associado à Máfia, da cidade caótica, excessiva, punida pelo Vesúvio e sempre renascida, tão à imagem dele.

As últimas encarnações

Com Maradona, aprendemos, portanto, a respeitar e admirar mais os imperfeitos do que os imaculados. A dobrar-nos com mais reverência perante o pecador do que o santo. Não é por acaso que falhou num clube perfeito como o Barcelona e foi, depois, amado como rei no Nápoles, emblema tantas vezes maldito, associado à Máfia, da cidade caótica, excessiva, punida pelo Vesúvio e sempre renascida, tão à imagem dele. Deixa-nos num tempo de filtros de Instagram e puritanos, em que maior crime do que ser pobre é parecer-se pobre, em que o mundo espera de dedo apontado a primeira falha de quem colocou num pedestal para depois, cruelmente, o atirar ao chão.

Nos últimos anos, foi desaparecendo em lento fade out. Numa das últimas vezes que tínhamos ouvido falar dele, veio a Lisboa ver jogar o amigo Pablo Aimar no Estádio da Luz, já lá vai uma década. Do resto não vale a pena falar. Hoje, está de luto o Boca, toda a Argentina, Nápoles, os amantes do futebol e todos os miúdos dos anos 70, 80 e 90 que deixaram crescer os caracóis e tentaram, em vão, ser canhotos. Mas a notícia não é que Diego Armando Maradona morreu – já tinha morrido muitas vezes. Desta vez, o que aconteceu foi isto: Maradona não ressuscitou.

Alexandre Borges é escritor e argumentista

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