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A primeira Isabel de Inglaterra deu o seu nome a uma era de esplendor e tumulto, em que floresceu uma das grandes figuras da cultura universal, William Shakespeare, e os ingleses se celebrizaram pelas façanhas marítimas que anunciavam o Império. Governou, contra ventos e marés, 44 anos. Não teve filhos – era a “Rainha Virgem”.
Isabel II subiu ao trono em 1952 para reinar sobre a “apagada e vil tristeza” de uma Grã-Bretanha que mais do que ter ganho parecia ter perdido a guerra – e cujo Império se começava a desfazer. Com a segunda Isabel fechava-se de certa maneira um ciclo iniciado pela primeira. Poucos anos antes, a Coroa perdera uma das suas mais rutilantes joias: a Índia era independente desde 1947. A segunda Isabel recebeu a notícia de que herdara o trono quando estava em “missão de soberania” no Quénia, uma das restantes joias do seu tesouro que o vento em breve acabaria por dispersar.
O Rei – ou a Rainha – era já, de qualquer modo, mais um adereço que um poder. É certo que Isabel II é Rainha do Reino Unidos, do Canadá, da Austrália e da Nova Zelândia (bem como de 12 minúsculos países que entretanto se tornaram independentes, género Belize e Papua Nova Guiné). Mas nunca foi tão verdade a fórmula da monarquia parlamentarista: o Rei reina mas não governa. Transcorrido um punhado de séculos, tornou-se imperativo constitucional a enganadora divisa de Isabel I: “vejo e calo”.
Isabel II reina há 65 anos. É já o mais longo reinado da monarquia inglesa. Teve filhos e tem netos, cujo principal papel – na senda da irmã Margarida – parece ser o de lhe causar arrelias e alimentar a imprensa “cor-de-rosa” e a indústria da cerâmica para turistas. Quanto mais irrelevante do ponto de vista político e até simbólico, mais a Família Real inglesa parece interessar a televisão e o cinema, num catálogo que já é vasto e em que a “petite histoire” predomina e chega ao ponto um tanto incomodativo de se transformar numa verdadeira intrusão na intimidade de pessoas vivas e respeitáveis – e no caso da Rainha, pelo menos, reconhecidamente valorosas, sérias e patrióticas no desempenho das suas funções. Nestes dez anos de reinado – como nos seguintes, até hoje, só contam verdadeiramente, em relação aos royals, os dramas pessoais. Uma forma de “reality show” – que é uma terminal democratização da realeza — e que surge bem retratado na série “The Crown”, da Netflix, que agora chega à segunda temporada.
1956. Uma nova realidade internacional
Na primeira década do seu reinado, a Rainha Isabel I teve sempre Parlamentos e Primeiros-Ministros do Partido Conservador. O primeiro destes foi Churchill, o vencedor da guerra deposto ainda ela não tinha acabado, eleito para o cargo de novo em 1951, depois de um breve eclipse em que governou o Partido Trabalhista; seguiram-se-lhe os indistintos Anthony Eden, Harold Macmillan e Alec Douglas-Home. A Rainha, como manda a Lei, leu os respetivos discursos com a mesma estoica falta de convicção que usará para ler os discursos dos Trabalhistas. Faz figura de papagaio coroado dos governos.
Três anos depois da sua entronização, a crise do Suez soava o dobre a finados do mundo a que já se chamou “eurocêntrico”. Num filme chamado “The Ploughman’s Lunch” (em Portugal, “A Verdade dos Factos” , 1983) são recuperados filmes de actualidades cinematográficas dessa época, cuja democrática grandiloquência patrioteira – comparável à das Actualités Françaises que os nossos cinemas exibiam à época – deixa muito atrás a mais mal-amada das propagandas cinematográficas do Estado Novo.
[o trailer de “A Verdade dos Factos”:]
Os factos da nova realidade internacional do pós-guerra foram, porém, mais teimosos do que as farroncas anglo-francesas. Dien Bien Phu, na Indochina, fora um severo aviso. O diktat norte-americano no Suez selou a redução da França e da Grã-Bretanha ao seu novo estatuto de potências de segunda ordem. Os políticos engoliram em seco. A Rainha limitou-se a reinar – sabe-se lá com quantas lágrimas privadas, as únicas que se lhe consentem (mais recentemente exigem-se-lhe, em certas ocasiões escolhidas pelo “sentimento popular”, lágrimas públicas – mas isso é outra história).
Foi nesse ano, também, que se estreou a peça “Look back in anger” de John Osborne. A virulência proletária desses angry young men que marcaram culturalmente esse tempo ganha hoje especial actualidade, na era dos chamados “populismos”: foi, em grande parte, uma revolta “popular” contra a decadência e descaracterização de uma Grã-Bretanha que fora grande e inglesa: There are no causes anymore, lamenta o protagonista. “Já não há causas.” I must say – diz o mesmo Jimmy Porter – it’s pretty dreary living in the American Age — unless you’re an American, of course.
1960. “Swinging” realeza
A Grã-Bretanha, esquecidos os apertos económicos do pós-guerra, entrava nos swinging sixties, em que a Princesa Margarida deu o exemplo da nova liberdade de costumes (nova, comparada com quê?) e foi aquilo a que os inimigos de qualquer instituição tradicional costumam chamar interesseiramente uma “lufada de ar fresco”. A Netflix já indicou que na segunda temporada de “The Crown” a “controversa Princesa Margarida encontrará um novo amante” e alicia-nos com a exploração da steamy relationship, a “escaldante relação”, entre os dois. O Príncipe herdeiro, Carlos, tem 12 anos. Vêm longe os tempos tormentosos em que a sua boda e separação farão as delícias da crescente coscuvilhice geral sobre a vida das “pessoas reais”.
Em 1957, o Gana assumira a independência. Com todas as conhecidas vantagens que se seguiram, o povo ganês deixava de ser súbdito de Sua Majestade para passar a ser súbdito do Presidente Kwame N’Krumá. Era o princípio do processo de descolonização das possessões britânicas em África. Em 1960, o Primeiro-Ministro britânico Harold Macmillan, recém-eleito, proferiu na África do Sul o famoso discurso dos “ventos de mudança”:
“O vento da mudança está a soprar através de todo o continente e, quer gostemos quer não, este crescimento da consciência nacional é um facto político. Temos de o aceitar como um facto e as nossas políticas nacionais devem ter isto em conta.”
[o discurso completo de Harold Macmillan na cidade do cabo, a 3 de fevereiro de 1960:]
Todos os “nacionalismos” são iguais mas – é sempre bom ter presente – há sempre uns mais iguais que os outros. Diz-se em Inglaterra que “onde há vontade há sempre uma maneira”. O facto é que não havia vontade.
É o ano, também, em que se forma o conjunto dos Beatles, os “guedelhudos” (pobres guedelhudos!) que se tornaram um símbolo de uma Inglaterra rejuvenescida e de uns novos “tempos modernos”. Mas um par de anos antes um aristocrático publicista que se atrevera a escrever que a Rainha estava “out of touch” – pouco sintonizada com os novos tempos – ainda foi esbofeteado em público por um popular indignado. Havia respeito.
E Ela? Via e calava, que remédio.
1963. Umas quantas traições
Foi o ano da morte de John Kennedy. Na Grã-Bretanha, foi o ano em que, menos cruentamente, foi passada a certidão de óbito político a John Profumo, ex-Ministro da Defesa do governo de Sua Majestade. “Morreu” às mãos de uma “modelo”, “amiga – na frase de Fernão Lopes a respeito de uma senhora do seu tempo – de fazer o bem a quem lho pedia”. Tinham tido uma breve relação “consensual”, embora, para Profumo, extraconjugal. Mas Christine Keeler tinha 19 anos (morreu sta semana, aos 75), amizades peculiares e, sobretudo, gabava-se de se deitar também com Eugene Ivanov, adido naval adjunto na Embaixada da União Soviética. E estava-se em plena Guerra Fria.
De resto, a primeira década do reinado de Isabel II transcorreu nos anos mais ásperos desse confronto. (A crise dos mísseis entre os Estados Unidos e a União Soviética deu-se em 1962.) E o mesmo ano de 1963 ficou marcado pela fuga para Moscovo e definitivo desmascaramento de um dos mais relevantes e bem-sucedidos agentes dos serviços secretos soviéticos: Kim Philby. Philby, que recebeu a Ordem de Lenine em 1965, chegara a alcançar uma posição de grande destaque nos serviços ingleses.
Criado no “climate of treason” marxista dos anos trinta nos meios académicos mais emproados da Grã-Bretanha, fazia parte dos famigerados “cinco de Cambridge”, como foram mais tarde conhecidos. (Tiveram direito, também, a uma série de televisão, “Cambridge Spies”, de 2003, e a história está muito presente no filme de De Niro “O bom pastor”). Donald Maclean e Guy Burgess dois dos elos mais fracos desse grupo tinham fugido de Inglaterra, bastante antes, alertados por Philby. Um dos outros cinco, identificado mais tarde, ainda nos anos 60, mas só publicamente denunciado já no tempo de Margaret Thatcher, tinha entrada franca na Casa Real: (Sir, até 1979) Anthony Blunt, Surveyor of the Queen’s Pictures de 1945 a 1972. O primeiro grande êxito de Le Carré, depois cronista emérito desses tempos, O espião que saiu do frio, foi publicado também em 1963.
1964. E agora os trabalhistas
Em 1964 acabou o longo e titubeante consulado conservador pós-Churchill. Os Trabalhistas ganharam as eleições, por pouco. As Trade Unions ainda tinham algum poder (como observou o jornalista conservador Peregrine Worsthorne, é fácil saber quem manda realmente: é de quem ninguém se atreve a fazer troça publicamente; o filme “I’m All Right Jack” (“Simpático Idiota”), assinado pelos irmãos Boulting, com a sua suave sátira do mundo sindical, fez levantar em 1959 alguns sobrolhos.) Harold Wilson, com o seu cachimbo e fama de intelectual foi eleito Primeiro-Ministro – e a Rainha lá leu o discurso dele.
Video et taceo.