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FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

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Abdul chegou a Portugal com feridas abertas e a calma do Centro Ismaili ruiu quando pegou numa faca

Abdul perdeu a mulher no campo de refugiados, chegou a Portugal com três filhos menores. Esta terça-feira, esfaqueou duas mulheres, uma delas que tratava do seu processo de naturalização.

Moisés serviu dois cafés a Farana Sadrudin e Mariana Jadaugy, como, aliás, faz todos os dias. Eram clientes habituais e passavam sempre por ali, o café mesmo em frente ao Centro Ismaili, em Lisboa, antes de começarem mais um dia de trabalho. A manhã desta terça-feira não foi diferente: “Senhor Moisés, um café, por favor.” Depois, atravessaram a estrada e dirigiram-se à sala 21, o gabinete onde tratavam dos processos de naturalização de quem chega a Portugal, muitos vindos de campos de refugiados e que chegam à Europa para fugir das condições miseráveis dos seus países de origem.

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Na sala ao lado, decorriam as aulas. Como acontece também todos os dias. É que aqui, no Centro Ismaili, não se trata apenas de burocracias, como os vistos. Dão-se aulas de português e de costura e há apoio social, com a doação de comida e roupa. As aulas de português começam, todos os dias, às dez da manhã e terminam antes da hora de almoço, às 13h. Mas essa rotina foi quebrada esta terça-feira. No meio do silêncio, e sob as cúpulas inspiradas no Mosteiro dos Jerónimos, a aula de português não chegou ao fim. Entre os cerca de 15 alunos estava Abdul Bashir, afegão que chegou a Portugal há pouco mais de um ano. Abdul estava a aprender a língua, tinha aulas de costura e era uma visita constante do centro. O irmão de uma das suas colegas conta ao Observador que, poucos minutos antes de a aula começar, o homem terá recebido uma chamada. A chamada terá deixado Abdul exaltado. Ninguém anteviu o que ia acontecer de seguida.

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Entre as mesas e cadeiras da sala, Abdul ter-se-á lançado na direção do professor de português e atacou-o. “Não faças isso, por favor”, terão gritado os alunos que saíram de umas das salas ao lado e que tentavam agarrá-lo. Mas este engenheiro informático, que ainda não completou 30 anos, não ouvia ninguém. Pegou numa faca “enorme” — não é claro se já a trazia consigo, se só teve acesso à arma nesse momento — e encostou-a à sua garganta, ameaçando matar-se, contou outra das testemunhas no local. O professor ficou ferido, mas fora de perigo — foi depois levado para o Hospital de Santa Maria, que fica a poucos metros do edifício. Terá sido o professor, contam familiares de quem estava na sala, a dar o primeiro alerta às autoridades, às 10h57, marcando o 112.

Mas quando foi dado este primeiro alerta, já Abdul tinha saído da sala. Estava desorientado. E foi nesse momento que, ainda de faca na mão, terá encontrado Farana Sadrudin e Mariana Jadaugy. Esfaqueou-as e as duas assistentes sociais acabaram por morrer dentro daquele edifício. “Há sangue por todo o lado naquela sala”, relatou outra das testemunhas.

Um carro patrulha por perto e um segundo para parar Abdul

Pouco depois de a faca de Adbul ficar coberta de sangue, o 112 recebeu o alerta: estava um homem descontrolado a esfaquear pessoas no Centro Ismaili. E bastou um minuto para um primeiro carro patrulha da PSP, com dois agentes, chegar à porta do edifício. Logo a seguir, surge o segundo carro, onde seguia um dos agentes que acabou por disparar contra a perna de Abdul, imobilizando-o. Antes, foi dada ordem para que o atacante largasse a faca. Abdul não respeitou a ordem e atacou os agentes, sempre de faca na mão. Um deles tirou a arma do coldre, apontou às pernas e disparou. O atacante estava imobilizado.

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Fontes da PSP consideram que a reação, tendo em conta o tempo, foi “ajustada”, especialmente pelo “potencial de gravidade do incidente”. E sublinham aquilo que consideram fundamental para o caso: “Desde o ataque ao Charlie Hebdo, os atentados na Europa e com a questão dos tiroteios nos EUA, a PSP foi fazendo formações para preparar polícias para este tipo de reação.”

“Percebeu-se que não se pode esperar pelo reforço policial. Quem chega primeiro tem de eliminar a ameaça, tem de tomar as decisões no momento certo. Há vidas que se perdem enquanto se espera por mais reforços”, acrescentaram. E consideram que houve “celeridade” na resposta; que o agente, sob pressão, tomou uma “boa decisão em ter disparado para a perna”.

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Depois dos carros de patrulha, chegaram as equipas especializadas da PSP. Aliás, fontes desta força de segurança ouvidas pelo Observador admitem que, quando as equipas de intervenção rápida chegaram ao edifício, ainda se admitia a hipótese de haver mais do que um suspeito, daí que tenham sido acionadas outras unidades superiores. “Normalmente, pensa-se sempre o pior e, quando se viu que era alguém que andava a esfaquear pessoas, pensou-se exatamente assim”, explicou um dos agentes, esclarecendo que “há uma equipa sempre de prevenção”, e que apenas é “acionada em casos planeados ou quando se considera que há uma grande suspeita ou perigo de ser algo mais complexo”. Foi isso mesmo que acabou por acontecer.

A PSP acionou unidades até ao quarto grau, mas quando estas chegaram ao Centro Ismaili — Equipas de Prevenção e Reação Imediata da PSP (EPRI) e a Unidade Especial de Polícia (UEP) — a situação estava “resolvida” e o homem imobilizado.

A assistente social de 24 anos e a gerente “extraordinária” de 49 anos: as vítimas do ataque no Centro Ismaili

Depois do tiro, Abdul foi transportado para o Hospital de São José, onde deu entrada nas urgências e foi imediatamente encaminhado para o bloco cirúrgico.

Mariana Jadaugy tratava do processo de Abdul, que fugiu do Afeganistão e passou pelo campo de refugiados de Lesbos

Enquanto Abdul permanecia no bloco cirúrgico do São José, as cerca de 15 pessoas que estavam dentro do Centro Ismaili no momento do ataque não puderam sair. Aliás, os agentes da Unidade Especial de Polícia garantiram que ninguém entrava nem ninguém saía daquele espaço. Do lado de fora, havia apenas olhares perdidos de quem, em silêncio, tentava perceber o que se passava.

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Mas as informações iam chegando. Um telefonema, umas mensagens trocadas e, perto da hora de almoço, já Carlos Santos, do departamento de manutenção do Centro Ismaili, sabia quem era o homem que matou as duas funcionárias. “É do Afeganistão, vive em Odivelas, esteve num campo de refugiados e vive com os três filhos. A mulher morreu lá no campo de refugiados. Nunca ouvi nada sobre problemas com ele. Nunca. É engenheiro. Agora, o problema são as crianças”, resumiu ao Observador este homem, que trabalha ali há 19 anos.

O campo a que Carlos Santos se refere é o de Lesbos, na Grécia, e, tal como todos os outros, é caracterizado pela falta de condições em que ficam os refugiados que ali chegam vindos do norte de África e, mais longe, do continente asiático — como Abdul. Chegou a Portugal, depois de fugir do Afeganistão, com três filhos menores — têm agora nove, sete e quatro anos — para cuidar e foi o próprio quem deu mais detalhes da sua vida num vídeo publicado na conta de Youtube da organização Red SOS Refugiados Europa.

“As minhas condições de vida são muito difíceis.” Abdul Bashir publicou vídeo a pedir ajuda após perder a mulher num incêndio em Lesbos

A 17 de outubro de 2021, na altura com 27 anos, este afegão estava ainda na Grécia e contava que a sua mulher tinha morrido, nove meses antes, na sequência de um incêndio que deflagrou dentro do campo de refugiados. “As minhas condições de vida são muito difíceis”, desabafava no vídeo. Abdul dizia ainda que “sabe escrever um e-mail“, fala “inglês” e é “licenciado em engenharia de telecomunicações”. Apesar disso, não conseguia respostas do Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). “Comuniquei os meus problemas muitas vezes por e-mail, fax e telefone ao gabinete de asilo, ao ACNUR”, garantia. Mas “toda a gente me disse para esperar”.

A 17 de outubro de 2021, na altura com 27 anos, este afegão estava ainda na Grécia e contava que a sua mulher morreu na sequência de um incêndio que deflagrou dentro do campo de refugiados. "As minhas condições de vida são muito difíceis"

Da Grécia, Abdul conseguiu chegar a Portugal nesse mesmo mês, já com estatuto de refugiado. Chegou “muito traumatizado”, apurou o Observador, e contava com a ajuda da associação Focus, que tem a sede da organização no Centro Ismaili e que garantia que a sua família tinha um teto. E era aqui, no Centro Ismaili, que o afegão passava o dia inteiro — entre aulas de português, aulas de costura e uma perspetiva de trocar Lisboa pela região Norte do país, onde iria trabalhar numa fábrica de confeções.

Entre aulas, o afegão tinha um processo de naturalização em curso. E era precisamente Mariana Jadaugy, com 24 anos, quem “tinha em mãos o processo de naturalização” de Abdul, segundo apurou o Observador junto a um dos familiares da jovem, que chegaram à porta principal do Centro Ismaili logo ao início da tarde, assim que receberam a notícia.

Entre aulas, o afegão tinha um processo de naturalização em curso. E era precisamente Mariana Jadaugy, com 24 anos, quem "tinha em mãos o processo de naturalização" de Abdul, segundo apurou o Observador junto a um dos familiares da jovem, que chegaram à porta principal do Centro Ismaili logo ao início da tarde, assim que receberam a notícia.

Mariana Jadaugy era membro da comunidade Ismaili, mas o trabalho na fundação Focus era recente. Tinha chegado ali há pouco mais de um ano, em fevereiro de 2022, e os familiares garantiram que nunca tiveram “conhecimento de quaisquer ameaças” por parte de Abdul ou de outra pessoa. Esta jovem, licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais, pela Universidade Nova de Lisboa, e com um mestrado em Ciências Sociais e Desenvolvimento no ISEG, ajudava os refugiados na reconstrução das suas vidas. “Orientação à chegada, obtenção de estatuto legal, acesso a benefícios da assistência social” eram apenas algumas das suas funções na fundação.

Ao seu lado, também na fundação Focus, trabalhava Farana Sadrudin. Com 49 anos, engenheira informática, era “a responsável para a fundação nesta parceria de trazer pessoas para Portugal”, apurou o Observador. A mesma fonte descreveu também Farana Sadrudin como uma pessoa muito proativa e que “estava sempre à espera de oportunidades, parcerias e protocolos”. “Era uma pessoa que queria mudar as coisas e que queria fazê-lo de forma correta”, acrescentou.

A descendência direta do profeta Maomé, a sede mundial em Lisboa e os 10 mil membros no país. Quem são os Ismailis?

Farana Sadrudin era a responsável por “acompanhar e monitorizar” os refugiados, principalmente no que dizia respeito à parte logística: por exemplo, diz a mesma fonte ao Observador, a mulher de 49 anos “ia ver casas” para os migrantes viverem. “Fazia um trabalho extraordinário, era uma pessoa extraordinária, estava sempre a tentar ajudar toda a gente. Tentava fazer todas as articulações com entidades públicas e empresas.”

“De um ato isolado não é possível retirar generalizações”

Assim que chegou a notícia sobre a morte de Farana Sadrudin e de Mariana Jadaugy, as primeiras informações davam conta de um homem afegão que matou duas mulheres num centro muçulmano. Mas a hipótese de terrorismo foi imediatamente afastada, com vários membros do Governo a pronunciarem-se sobre o assunto.

Aliás, além das palavras, já ao final do dia, ainda os cadáveres não tinham sido retirados do local, o Presidente da República e o presidente da Câmara de Lisboa foram até ao Centro Ismaili. Para Marcelo, é claro que este foi um “ato isolado” com motivações “psicologicamente isoladas”, “num determinado quadro pessoal e familiar”, de uma pessoa que era “apoiada” e “conhecida” no centro.

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“Não queria ir mais longe, mas há pessoas que, na vida, num determinado momento, são determinadas por motivos pessoais e reagem de uma determinada maneira. Mas nada justifica um ato criminoso como este”, acrescentou. “De um ato isolado não é possível retirar generalizações.”

"As pessoas que têm estes contextos de guerra têm de ser muito acompanhadas do ponto de vista da saúde mental. Estes ataques têm que ver com pessoas com feridas abertas. Tem a ver com questão de saúde mental. Qualquer pessoa que venha de um teatro de guerra, vem com feridas abertas. O que acontece numa ponta do mundo, não fica só nessa ponta do mundo."
Faranaz Keshavjee, especialista em Estudos Islâmicos

E é também nesta linha que Faranaz Keshavjee, especialista em Estudos Islâmicos, defende que esta “foi uma situação muito, muito infeliz” e que alerta para o pouco cuidado que é dado à saúde mental de quem chega de um campo de refugiados e de quem passou por episódios traumáticos. “As pessoas que têm estes contextos de guerra têm de ser muito acompanhadas do ponto de vista da saúde mental. Estes ataques têm que ver com pessoas com feridas abertas. É preciso que o Governo, em conjunto com as organizações, criem estruturas fortes e coesas para evitar que isto aconteça”, explicou.

Faranaz Keshavjee dedica-se à questão dos refugiados há cerca de duas décadas e diz que tem “vindo a perceber que estes não são assuntos que têm que ver com a crença, nem com a religião”. “Têm a ver com questão de saúde mental. Qualquer pessoa que venha de um teatro de guerra, vem com feridas abertas. O que acontece numa ponta do mundo não fica só nessa ponta do mundo.”

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