O ataque desta terça-feira no Centro Ismaili de Lisboa, que provocou pelo menos dois mortos e deixou várias pessoas feridas, volta a colocar os holofotes sobre esta restrita e influente comunidade muçulmana que em 2018 instalou a sua sede mundial na capital portuguesa. Afinal, quem são e em que acreditam os Ismailis? E qual a relação desta comunidade com Portugal?

Sede mundial em Portugal e uma comunidade com 10 mil membros

Em Portugal, haverá menos de dez mil Ismailis, que representam uma minoria até dentro das minorias religiosas presentes no país. Ainda assim, esta comunidade específica desenvolveu, ao longo dos últimos anos, uma relação particular com o país — que levou mesmo o príncipe Aga Khan, atual imã dos Ismailis, a implementar em Lisboa a sede mundial desta corrente religiosa, ou seja, o Imamato Ismaili.

Como com a maioria dos muçulmanos presentes em Portugal, a origem desta comunidade no país remonta ao pós-25 de Abril e à chegada dos retornados vindos das antigas colónias — especialmente dos oriundos de Moçambique e da herança indiana.

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Ismailis: a fé que chegou a Portugal via Moçambique. Malik e Cheinaz fizeram o percurso contrário

Ao contrário dos movimentos migratórios mais recentes noutros países na Europa, a entrada do Islão em Portugal não ficou marcada por momentos de tensão cultural — uma vez que os retornados entraram no país justamente com a nacionalidade portuguesa. Atualmente, a comunidade islâmica em Portugal é considerada um exemplo de diálogo inter-religioso a nível europeu.

No caso concreto da comunidade Ismaili, o atual imã, o Aga Khan IV, assinou em 2015 um protocolo com o Estado português para a instalação da sede global do Imamato Ismaili em Lisboa. O Imamato foi formalmente inaugurado em 2018 no antigo Palácio Henrique de Mendonça, em Lisboa, onde agora funciona.

À semelhança do que acontece, por exemplo, com a Santa Sé (que tem sede no Estado da Cidade do Vaticano), o Imamato Ismaili é uma entidade supranacional, “com personalidade jurídica e capacidade para agir em relações nacionais e internacionais“, embora não governe qualquer território.

A fé, a fortuna e o poder de Aga Khan e dos ismaelitas que vão ter sede em Lisboa

Karim Aga Khan, o atual imã dos Ismailis, é um dos homens mais ricos do mundo, com uma fortuna pessoal avaliada em mais de 800 milhões de euros, embora tenha sempre rejeitado ser classificado com empresário.

No mundo secular, Aga Khan é sobretudo conhecido pela Rede Aga Khan para o Desenvolvimento (AKDN), uma rede global com atividade em mais de 30 países e focada no desenvolvimento económico, social e cultural — que também tem enormes lucros devido a uma intensa atividade comercial, incluindo hotéis de luxo, banca e aviação, que a rede garante serem investidos nos projetos de desenvolvimento.

Em Portugal, a comunidade Ismaili tem tido uma relação de grande proximidade com o Estado. Em 2018, participando numa cerimónia no Centro Ismaili, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, lembrou como a comunidade “soube integrar-se” no país e “afirmar sempre os valores da dignidade da pessoa, dos direitos humanos, do pluralismo, da diferença, da tolerância, da compreensão, da diversidade”.

“Vindos de Goa, uns, de Moçambique, outros, com o processo de colonização aqui se fixaram, há décadas, trazendo consigo uma vida cheia de valores, cheia de pujança, cheia de vontade de contribuir para a construção de Portugal”, disse, na altura, Marcelo Rebelo de Sousa, sublinhando que o próprio Centro Ismaili constituía “um símbolo, material e ao mesmo tempo imaterial, desse processo enriquecedor na sociedade portuguesa“.

Marcelo apontava também as “obras sociais comunitárias constantes, por todo o país, a olhar, sobretudo, para a juventude e para os idosos” e as bolsas escolares que Aga Khan deu às crianças vítimas dos incêndios de 2017.

As origens dos ismaelitas, há 1500 anos

Para compreender a origem da comunidade Ismaili é necessário recuar pelo menos a 632, ano da morte do profeta Maomé, e à disputa então surgida no seio da comunidade islâmica em torno da sucessão do profeta na liderança dos muçulmanos.

Sem indicações claras deixadas pelo profeta sobre quem lhe devia suceder, duas escolas de pensamento surgiram: a de que o sucessor devia ser escolhido por consenso entre a comunidade e a de que a sucessão de Maomé estava reservada aos seus familiares. É nesse momento histórico fundacional — sobre o qual pode ler extensamente neste artigo do Observador — que se situa a grande divisão muçulmana entre sunitas (o ramo maioritário e considerado mais ortodoxo) e xiitas (o ramo dos defensores de Ali, primo de Maomé, como sucessor do profeta).

Xiitas e sunitas. Catorze séculos da grande divisão do Islão

Atualmente, dos perto de 2 mil milhões de muçulmanos que existem em todo o mundo, estima-se que cerca de 85% sejam sunitas e 15% xiitas. Também em Portugal, a maioria dos muçulmanos — uma comunidade que tem sido estimada em cerca de 50 mil pessoas — também pertencem à corrente sunita, que tem as suas principais autoridades mundiais no Egipto e na Arábia Saudita, enquanto a corrente xiita, fortemente baseada no Irão.

É dentro da corrente xiita do Islão que podemos encontrar os Ismailis — uma escola do Islão moderado que se conta entre as três escolas teológicas do xiismo. As outras duas são a corrente dos doze imãs (que segue a linha dos doze imãs sucessivos após a morte do profeta) e os Zaiditas (uma linha minoritária que diverge da primeira corrente no quinto imã da sucessão).

Os Ismailis — ou Ismaelitas — também resultam de uma divisão na linha sucessória dos imãs, mas têm a particularidade de acreditar que a sucessão de imãs continua desde Maomé até aos dias de hoje.

Na altura das divisões dentro da corrente xiita, “os Ismailis puseram a sua lealdade do filho mais velho do imã Jafar as-Sadiq, Ismael, de que deriva o seu nome”, explica a comunidade Ismaili na sua página oficial. “Os Ismailis continuam a acreditar na linha do Imamato em sucessão hereditária contínua, desde Ismael até Sua Alteza o Aga Khan, que é o atual e 49.º Imã, em linha de descendência direta do Profeta Maomé.”

Atualmente, segundo o Imamato Ismaili, existem entre 12 e 15 milhões de Ismailis espalhados por todo o mundo, em 25 países diferentes em praticamente todos os continentes.