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Abusos na Igreja. "Há aqui muito material para investigar”

Em seis meses, a Comissão Independente que estuda os abusos sexuais na Igreja validou 338 denúncias e comunicou 17 ao Ministério Público. Ainda há, porém, poucos casos a chegar do interior do país.

A Comissão Independente criada pela Igreja Católica em Portugal, para fazer um estudo sobre os abusos sexuais na Igreja, já recolheu mais testemunhos do que a comissão que foi criada com o mesmo objetivo em França, se compararmos a dimensão de ambos os países, mas continua sem conseguir chegar ao interior de Portugal — onde o número de denúncias é ainda reduzido. Numa conferência de imprensa para o balanço de seis meses de trabalho, os responsáveis deste grupo de trabalho apelam, assim, às paróquias, assim como aos órgãos autárquicos, como freguesias e até associações locais, para passarem a mensagem e fazerem chegar à Comissão o máximo de casos possível.

Desde janeiro, a comissão validou 338 denúncias de abuso sexual. Mas se as distribuirmos pelo país inteiro e olharmos para o mapa conclui-se que a maior parte se concentra na zona litoral do País, sobretudo nas malhas urbanas junto a Lisboa (75 casos) e Porto (46). Já no interior do país, os casos não chegam a uma dezena por distrito, o que pode ser explicado pelo facto de nestas zonas viver uma população mais idosa e também menos qualificada, como constata a professora Ana Nunes de Almeida, que participou na conferência desta quinta-feira de manhã, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, via zoom. “Temos de arranjar forma de a nossa palavra lá chegar”, advertiu.

“Não queremos mesmo deixá-las de fora”, disse por seu turno o coordenador da Comissão, o pedopsiquiatra Pedro Strecht, que acabou por defender que, para conseguir chegar a estas pessoas, precisam de um suporte mais ativo da Igreja, provavelmente “paróquia a paróquia”, ou através do poder local, pelas autarquias, associações ou instituições de solidariedade social. “Há muitas pessoas a irem à missa”, constatou, — lembrando que este trabalho foi pedido pela própria Igreja e que “não é uma caça às bruxas”, mas uma forma de poder retratar uma realidade que a própria Igreja procura descobrir.

“Cabe à Comissão Independente reforçar que a bom tempo a Igreja Católica Portuguesa decidiu dar este passo decisivo na sua história, em momento decerto considerado fundamental e ainda pioneiro em relação a muitos outros países, dispondo-se a desejar conhecer o que aconteceu no campo dos abusos sexuais a menores levados a cabo por alguns dos seus próprios membros. É inequívoco que os mesmos aconteceram”, disse Strecht.

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Mais de metade das vítimas ainda tem uma vida ativa

Dos números apresentados, quando faltam ainda seis meses para o relatório final deste grupo de trabalho, Ana Nunes de Almeida salientou a idade atual das vítimas. Mais de metade das vítimas de membros do clero em Portugal têm menos de 65 anos, o que significa que estão ainda em idade ativa. “É verdade que os crimes prescreveram, mas há pessoas vivas, sobreviventes destes crimes que têm até 65 anos”, salientou, para mostrar como é viver muitas vezes com este segredo. “Os abusos podem ter sido há muitas décadas, mas estamos longe de estar a lidar com uma população muito idosa”, acrescentou. “Falar destes abusos tem o peso de desenterrar memórias”, diria mais tarde tambémn durante a conferência a cineasta Catarina Vasconcelos, comparando a sua revelação a uma exumação.

“É verdade que os crimes prescreveram, mas há pessoas vivas, sobreviventes destes crimes que têm até 65 anos"
Ana Nunes de Almeida

Ana Nunes de Almeida comparou o trabalho já feito em Portugal com aquele que foi feito em França ao longo de 14 meses. E concluiu — fazendo as contas à população de um país e outro e ao tempo de trabalho desta comissão — que por cá já chegaram mais denúncias do que em França. Por lá “foram feitas 1443 entrevistas num ano e quatro meses”, por cá “ao fim de seis meses temos 336, multiplicando por 6,6 vezes mais que é a população francesa em relação à portuguesa, teríamos mais”, contabilizou.

Comissão Independente tem já validadas 338 denúncias de abuso sexual na Igreja

Vítimas poderão ser mais de 1500

Apesar de salientar que há que ter cuidado na extrapolação dos números, certo é que o “efeito iceberg” nos estudos de abusos sexuais também poderá aplicar-se em proporções idênticas neste caso. O que significa que os números agora divulgados possam ser apenas 20 a 25% do total. Feitas as contas, os números poderão assim atingir as 1500 vítimas, como o Observador noticiou na quarta-feira. Ou talvez mais, acabou por deixar escapar a própria professora ao explicar que ainda se está a discutir na comissão como vão ser contabilizadas as vítimas colaterais apontadas. “Há quem indique um número de pessoas que também eram vítimas, outros dizem muitos, outros dizem entre 50 e 60… Como vamos contabilizar? É um trabalho complexo que exige muita ponderação e critérios e estamos a ponderar quais são” , justificou.

" Poucas devem ser as expectativas quanto ao êxito de uma investigação criminal",
Laborinho Lúcio

Para já os números, não sendo uma amostra representativa da população, apontam algumas conclusões. A maior parte das vítimas (quase 60%) são do sexo masculino e são licenciados. Mais. 61% (191 dos casos) considera-se ainda católico, apesar do trauma vivido. Das perguntas feitas pela comissão foi também possível concluir que a maior parte dos abusos se caracteriza por toque em zonas erógenas do corpo ou beijos, depois por manipulação do órgão sexual. Há agressores comuns nalgumas denúncias e além de padres há também outros membros do clero, como acólitos, e até mulheres, entre os agressores.

Ao longo das cerca de duas horas de conferência de imprensa foram também lidos três depoimentos de vítimas que o autorizaram. O apresentador de televisão Manuel Luís Goucha leu o testemunho anónimo e autorizado de um homem que tem agora 46 anos e que decidiu denunciar os abusos de que foi alvo quando tinha 12 anos por parte de um padre que prestava cuidados de enfermagem. Carolina Patrocínio leu a história de uma mulher que tem agora 50 anos e frequenta consultas de psiquiatria desde os 13. Só há pouco tempo ao ler uma entrevista do jesuíta Hans Zollner percebeu o significado dos pesadelos que a acompanham desde sempre: foi abusada por um padre com obras publicadas quando tinha 12 anos. “Embora dissessem que acreditavam em mim, senti que não acreditavam na totalidade”, diz agora, depois de ter denunciado o caso às hierarquias da Igreja. “É estranho estar a falar no padre X, estive tantas vezes com ele e nunca me apercebi de nada”, chegou a responder-lhe um padre. “Respostas destas são como facadas”, escreveu a vítima. Um terceiro relato foi lido logo no início da conferência pelo padre José Manuel Pereira.

"Embora disserem que acreditavam em mim, senti que não acreditavam na totalidade”
Vítima

Queixas no Ministério Público podem acabar arquivadas

Nenhuma destas denúncias identifica o padre ou mesmo a vítima. Aliás, diz o juiz e ex-ministro da Justiça Laborinho Lúcio, esse anonimato dificulta qualquer investigação criminal que possa ser feita. Segundo o seu discurso (lido por Strecht, porque Laborinho Lúcio está de férias), grande parte dos casos que chegam à Comissão não identificam nem vítima, nem agressor e muito menos o local do crime. Ainda assim, de acordo com algumas revelações e tendo em conta ou que as queixas não prescreveram, ou que os padres apontados continuam no ativo e são potenciais abusadores sexuais, foram entregues à Procuradoria Geral da República já 17 denúncias (apenas uma a mais do que há dois meses, altura em que foram libertados os primeiros números). “Poucas devem ser as expectativas quanto ao êxito de uma investigação criminal”, afirmou num documento escrito lido por Pedro Strecht.

Os membros da comissão durante o primeiro balanço dos números

Leonardo Negrão

Pedro Strecht lembrou também que apesar de terem garantido às vítimas o seu anonimato, não têm de deixar no anonimato informações sobre os suspeitos e os locais dos crimes, pelo que é essa informação que comunicam às autoridades. E, apesar de serem para já apenas 17 as queixas, o psiquiatra Daniel Sampaio, também na conferência, avisa: “Há aqui muito material para investigar”.

"A cultura do silêncio protege o agressor"
Daniel Sampaio

O acesso aos arquivos secretos e o trabalho das comissões diocesanas

Depois da polémica do acesso aos arquivos secretos da Igreja, que teve que ir à consideração do Vaticano, a comissão está agora preparada para avançar para a análise deste material. Strecht diz mesmo que já foi enviado às dioceses o método de trabalho que o historiador Francisco Azevedo Mendes quer seguir. E que essa análise estará feita até novembro, para depois se preparar o relatório final. Segundo o Vaticano, o acesso a estes arquivos terá que ser dado pelo bispo de cada diocese. “Do ponto de vista físico é preciso que alguém abra a sala e localize os arquivos”, justificou Strecht, que não considera esta condição um impedimento ou uma restrição para aceder a documentos que podem ter eventuais relatos de abusos e a forma como a Igreja lidou com eles desde os anos 50.

Igreja. Comissão Independente estima terem existido acima de 1500 vítimas de abuso sexual

A comissão também já pediu a todas as comissões diocesanas, mandadas criar há já dois anos em todas as dioceses para tratar casos de abuso sexual, o número e as circunstâncias dos casos que ali chegaram. O pedido foi enviado no início de junho e até agora já responderam cinco das 21 dioceses. A comissão também está a entrevistar todos os bispos responsáveis pelas dioceses, faltando apenas um. “Não entrevistámos por nossa indisponibilidade”, justificou Ana Almeida. Foi também lançado um desafio aos responsáveis de três congregações.

As denúncias têm chegado à comissão por carta, por e-mail ou por telefone. Desde 11 de janeiro de 2022 , a linha aberta (00351 917 110 000), que funciona entre as 10h e as 20h e que está a cargo de uma psicóloga e de uma assistente social já atendeu 241 telefonemas, 83 dos quais foram vítimas de abuso. Das chamadas, 101 vieram de pessoas do sexo feminino e 140 do sexo masculino. Foram também atendidas via zoom 26 pessoas, 21 das quais foram vítimas e cinco quiseram colaborar no estudo. Duas pessoas pediram para ser ouvidas novamente.

A comissão reitera que o seu papel não é fornecer acompanhamento psicológico ou psiquiátrico às vítimas, mas Daniel Sampaio deixou esta quinta-feira claro que não abandona as vítimas. Falando do tema dos abusos sexuais de uma forma mais abrangente por ser “uma questão muito importante das sociedades atuais”, Sampaio lembra que os estudos concluem que há uma prevalência entre os 164 e os 197 casos em mil, no sexo feminino, e de 86 e 88 por mil de abusos sexuais no sexo masculino. Uma realidade que nos abusos sexuais na Igreja se inverte, com mais vítimas do sexo masculino.

“A cultura do silêncio protege o agressor”, lembra, apelando à denúncia e pedindo mesmo à Igreja que se  preocupe “com dispositivos disponíveis para saúde mental”, assim como a sociedade em geral. “É preciso em Portugal uma atenção à saúde mental. Deve ser criada uma estrutura com psicólogos e psiquiatras com conhecimento nesta matéria. O trabalho é essencial que continue além da comissão”, advertiu. “Ao contrário do que disse um bispo recentemente, a nossa amostra mostra que o confessionário não foi um lugar seguro”, rematou Sampaio.

Segundo ele, 60% das crianças que foram violentadas revelam sintomas graves de psicopatologia (perturbações psicológicas, ansiedade, depressões). Da amostra que a comissão aferiu há um grupo de vítimas “muito perturbado com sintomas depressivos e de ansiedade com marcadas alterações na sua vida intima e sexual”, um segundo grupo de pessoas que têm ao longo de toda a sua vida problemas de auto-regulação emocional e um terceiro grupo com menos dificuldades, embora mantenha o trauma o que se revela sobretudo quando o recorda.

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