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Ian Gavan/Getty Images

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Afinal, o que é ser precário?

A questão da precariedade voltou a semana passada ao Parlamento, depois da divulgação dos números do emprego e das declarações de António Saraiva, líder da CIP. Afinal, o que é ser precário?

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“Mais vale ter trabalho precário do que desemprego?”

A frase foi proferida por António Saraiva na semana passada e voltou a trazer para cima da mesa a questão da precariedade laboral e da sua relação ou não com o desemprego. As declarações do presidente da CIP, Confederação Empresarial de Portugal, aconteceram após a divulgação dos números do desemprego por parte do Instituo Nacional de Estatística (INE). Os dados revelam que, no último trimestre de 2015, o desemprego recuou 1,3% em relação ao trimestre homólogo de 2014 e apontam para a existência de maior número de contratos a prazo.

Na passada quarta-feira, os comunistas levaram ao Parlamento a discussão sobre medidas de combate à precariedade, em especial na administração pública. No mesmo dia do debate em plenário, António Saraiva reconheceu, em declarações à TSF, que existem “algumas empresas que lamentavelmente não respeitam as regras” relativas à contratação, que se traduzem em “práticas de concorrência desigual”, sobre as quais “a fiscalização deve atuar”.

Quantos precários existem no país?

Os números exatos são difíceis de aferir, até porque a definição de precariedade é vasta. Mas uma das formas de o fazer é através da análise dos números relativos ao tipo de contrato. Segundo os dados disponibilizados pelo INE, no quarto trimestre de 2015 verificou-se um aumento de 2,76% no número de pessoas a trabalhar por conta de outrem (no setor privado). Esta categoria abrange vários tipos de vínculos, incluindo contratos a prazo e contratos de prestação de serviços. No último trimestre de 2015, 18% da população empregada (828 mil pessoas) trabalhava com algum destes vínculos.

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Os contratos com termo cresceram 6,66% entre dezembro de 2014 e dezembro de 2015 e os contratos sem termo cresceram 2,08%, menos de metade. Os contratos sem termo, que dão acesso direto aos quadros das empresas, estão a diminuir em relação aos contratos a prazo.

No último trimestre de 2015, 18% da população empregada (828 mil pessoas) trabalhava com contrato a prazo e contratos de prestação de serviços.

Uma tendência confirmada por José Vieira da Silva, ministro do Trabalho e da Segurança Social, na discussão desta quarta-feira no plenário, deu a conhecer o número de contratos sem termo.

“Apenas 20% de todos os contratos de trabalho celebrados nos últimos três meses foram contratos permanentes, o mesmo se tinha verificado nos três meses anteriores”, afirmou no parlamento no contexto da discussão sobre medidas de combate à precariedade, em especial, na administração pública.

“A precariedade é uma condição”

É difícil distinguir dentro do leque de situações para as quais existem dados – trabalhadores com contratos a prazo, contratos de prestação de serviços a recibos verdes, situações de trabalho temporário ou de subemprego – quais são efetivamente precários, até porque a definição de precariedade não é linear. Marco Marques, da Associação de Combate à Precariedade explicou ao Observador que “a precariedade é uma condição” e não depende apenas do vínculo contratual.

A Associação de Combate à Precariedade define como trabalhador precário, “uma pessoa que está numa relação laboral, no contexto da qual não consegue aceder a uma série de direitos que estariam afetos a essa relação laboral, por exemplo, a estabilidade, a remuneração garantida e periódica, o acesso a uma indemnização quando deixa de estar vinculada e o acesso a um sistema de saúde.”

"Neste momento muitas pessoas estão numa situação no trabalho que definimos como 'porta giratória' entre a precariedade e o desemprego."

A definição de precariedade é tanto mais vaga e complexa quantas as modalidades de contratação, até porque estes critérios não precisam de ser cumulativos. “Muitas vezes são apenas alguns que não estão contemplados”, admite a mesma associação, que considera que neste momento muitas pessoas estão numa “situação no trabalho que definimos como ‘porta giratória’ entre a precariedade e o desemprego. Ou seja, entre uma ou outra situação.”

Embora sejam cada vez mais transversal em termos etários, as situações de precariedade afetam sobretudo os trabalhadores mais jovens, cujos vínculos laborais compreendem situações mais complexas.

“Quando passei a trabalhar a tempo completo, achei mesmo que as coisas iam mudar”

Como o caso de Isabel Videira, licenciada em Gestão de Recursos Humanos, de 35 anos, cuja carreira profissional não encaixa numa definição restrita de precariedade. Em quinze anos, chegou a ter vários contratos, todos em regime de outsourcing. Ou seja, era contratada por empresas intermediárias que forneciam serviços à empresa de telecomunicações onde efetivamente desempenhava funções.

Isabel Videira é licenciada em Gestão de Recursos Humanos

MICHAEL M. MATIAS /OBSERVADOR

“Ao longo de 15 anos passei por umas cinco ou seis empresas de outsourcing. Inicialmente a troca de empresas era mais frequente, se calhar por trabalhar em ambiente de call center. Os contratos iam terminando e, para não pagarem indemnizações, pediam às pessoas para rescindir os contratos. Mas continuávamos a trabalhar e faziam-nos contratos através de outras empresas”, conta.

Uma situação que atualmente reconhece como precária, uma análise diferente da que fazia quando começou a trabalhar. “Na altura não me chocava muito, era miúda e ainda estava a estudar.” Hoje admite que nunca pensou que isso viesse a pôr em causa a carreira no longo prazo. “Quando passei a trabalhar a tempo completo, achei mesmo que as coisas iam mudar. Passei quinze anos a achar que as coisas iam mudar e nunca mudaram.” O que se alterou foram os planos da sua vida pessoal. “Este tipo de carreira condicionou a minha vida pessoal porque tenho 35 anos e vivo com a minha mãe. Não é uma coisa que estivesse nos meus planos”, reconhece.

"Fui ficando. Como era uma boa empresa e com nome no mercado, tive sempre a expetativa de que as coisas pudessem mudar."
Isabel Videira

O facto de ter trabalhado em regime de outsourcing significa que ganhava “bem menos” do que “era suposto”. Menos do que o valor que a empresa em que exercia funções pagava à empresa intermediária. “[Nós, os trabalhadores] recebemos apenas uma pequena fração desse valor. Com o ordenado que nós ganhávamos era impossível, sozinhos, conseguirmos ter uma vida completamente independente. Não sei como seria se tivesse uma casa para pagar, por exemplo. Ou se tivesse filhos”, admite Isabel Videira.

A grande empresa onde exercia funções foi comprada e uma das medidas tomadas foi o fim dos contratos com os fornecedores de serviços, incluindo aquele que mantinha com a empresa intermediária onde Isabel estava efetiva, que, com a perda do seu principal cliente, entrou em processo de insolvência.

Agora, Isabel Videira procura emprego e sabe bem o que procura. “Quero ser contratada diretamente por uma empresa, isso agora é essencial para mim. Não quero voltar a trabalhar em regime de outsourcing, não quero mesmo, de todo.”

“A precariedade transformou-se numa espécie de modo de vida”

“Cerca de metade dos jovens que têm uma relação com o mundo do trabalho, estão numa situação precária, de contratos a termo ou recibos verdes”, disse ao Observador Renato Carmo, sociólogo do ISCTE–IUL, que estuda há vários anos a questão. Para o especialista, a precariedade é mais importante do que o nível salarial. Porque é uma situação transversal que tem origem na instabilidade laboral, mas que depois tem consequências que ultrapassam o mundo do trabalho.

"A constante das situações destes jovens é a incerteza relativamente ao futuro", afima o sociólo Renato Carmo

D.R.

“Em situações de precariedade, as pessoas podem até ter fases em que têm picos de rendimento e outras em que o rendimento é menor”, explica o sociólogo do Observatório das Desigualdades, e essa oscilação imprevisível nos rendimentos dificulta a definição de planos a longo prazo, como sair de casa dos pais ou constituir família.

"Jovens até aos 30 anos que têm uma situação contratual estável e que não seja a prazo, neste momento são uma minoria. São a exceção e não a regra. Devia ser o oposto."
Renato Carmo

As dificuldades associadas à empregabilidade e à precariedade são especificidades da atual geração jovem. Na geração anterior, as pessoas que eram operárias tinham salários baixos e uma vida dura, mas tinham contratos. Sabiam com o que podiam contar, apesar de tudo”, ressalva Renato Carmo. O sociólogo considera que os jovens entram mais tarde no mercado de trabalho, com rendimentos salariais mais baixos do seria suposto, o que atrasa, adia, ou mesmo impede, planos futuros de vida autónoma. “A precariedade transformou-se numa espécie de modo de vida e isto a prazo terá as suas consequências”.

“As situações prolongam-se no tempo e as pessoas chegam aos 40 anos e continuam neste tipo de situação a prazo”, sem estabilidade profissional ou segurança laboral reforça o investigador.

“O setor terciário tem conhecido uma crescente precarização”

Uma das causas da precariedade no mercado de trabalho nacional tem a ver com a mudança no perfil do emprego, explica Elísio Estanque, professor na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra ao Observador. Esta mudança foi mais rápida do que noutros países e “Portugal é, neste aspeto, um caso raro”. Segundo Manuel Carvalho da Silva, ex-líder da CGTP, o trabalho precário em Portugal atinge níveis semelhantes aos da Polónia, o país que regista, em termos estatísticos, o maior nível de precariedade.

“Passámos de um sistema de emprego sobretudo no setor primário (agricultura) para um sistema de emprego no setor terciário (serviços) nos anos 80”, diz o também investigador no Centro de Estudos Sociais (CES).

Elísio Estanque é professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra

D.R.

Nos anos 70, o setor secundário (indústria) absorveu um grande número de trabalhadores, mas foi um “pico que não se repetiu” — analisa o professor e investigador. A maior parte dos empregos surgiu na área dos serviços, como o comércio e a distribuição, entre outros. Mas “o setor terciário tem conhecido uma crescente precarização”, constata Elísio Estanque.

A crise financeira, a crise da dívida soberana, a crescente flexibilização laboral e o crescimento do desemprego levaram a que a consolidação dos empregos da classe média (tipicamente do terceiro setor) fosse abalada. E os trabalhos que exigem menores qualificações são cada vez menos e o desencontro entre as competências que o mercado laboral procura e as que os jovens têm para oferecer, leva a que muitas vezes estes aceitem empregos ‘abaixo’ das suas qualificações e mais precários.

“Tiro o doutoramento do currículo, para não assustar”

Filipa Pinho, 47 anos, é o exemplo de uma pessoa muito qualificada e com problemas em arranjar emprego não precário. É doutorada em Sociologia e está desempregada, “com uma idade problemática”, como começou por dizer ao Observador. Apesar de ter uma licenciatura, um mestrado e um doutoramento, a carreira profissional de Filipa Pinho não tem sido tão linear como a sua carreira académica.

Filipa Pinho é doutorada em Sociologia pelo ISCTE-IUL

MICHAEL M. MATIAS /OBSERVADOR

“Eu tenho um percurso profissional muito variado. Desde bolseira a biscateira, passando por já ter tido contratos de trabalho a termo certo e sem termo. Já tive de tudo um pouco”, explica. Filipa Pinho começou a trabalhar em 1993, depois de terminar a licenciatura no ISCTE, a fazer investigação científica “numa altura em que trabalhar em ciência era um bocadinho diferente do que é hoje”. Depois dessa experiência profissional inicial, a socióloga prosseguiu a carreira numa publicação de apoio ao consumidor, emprego onde chegou a ter um contrato sem termo. Mas acabou por rescindir com a empresa ao fim de dois anos e meio de contrato.

"Defendi o doutoramento e o sítio onde trabalhava, em vez de me valorizar, propôs-me uma bolsa. Não aceitei."
Filipa Pinho

Trabalhou em empresas de estudos de mercado — com uma das quais chegou a ter contrato a termo — mas decidiu voltar aos bancos da universidade para fazer o mestrado. Com o regresso à universidade, voltou a fazer investigação científica, sempre com vínculos precários. Passou “recibos verdes”, foi bolseira e teve contratos a termo. Pelo meio, Filipa fez o doutoramento e já era doutora quando ficou desempregada.

“Todas as oportunidades que têm surgido, eu tenho aproveitado e continuo a enviar currículos” conta Filipa Pinho. “Não sei se por ter doutoramento as pessoas se assustam e acham que têm que pagar um ordenado muito alto e nem sequer me respondem”, questiona a socióloga. “Acusam a receção e agradecem”, conta Filipa, que já chegou a enviar currículos em que omite o doutoramento, “para não assustar” quem o ler.

Como é que uma pessoa se organiza no decorrer de uma carreira assim? Filipa Pinho chegou a ter um pé-de-meia que gastava nos períodos em que não tinha rendimentos, mas agora são os pais de Filipa Pinho que a ajudam. “Felizmente, e neste caso é felizmente, não tenho filhos, moro sozinha.” Algo que Filipa lamenta. “Queria ter tido filhos, mas estava sempre à espera de uma situação… E ainda gostaria de adotar uma criança”, mas na sua atual situação não considera possível que isso venha a acontecer. “Continuo com esperança de arranjar qualquer coisa, nem que seja para fazer uns biscates, umas coisas”, diz.

“Vou voltar a produzir conhecimento”, conclui Filipa Pinho num tom confiante, “porque é o que eu gosto de fazer, é aquilo para que adquiri competências e tenho capacidade de adaptação a outras áreas”. Mas, da próxima vez, espera não ter de o fazer em condições precárias.

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