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Como robots, podiam ser muito mais do que uma dupla de produtores de música de dança, por isso criaram uma narrativa e desenvolveram um conceito com tentáculos que foram do cinema aos objetos de decoração
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Como robots, podiam ser muito mais do que uma dupla de produtores de música de dança, por isso criaram uma narrativa e desenvolveram um conceito com tentáculos que foram do cinema aos objetos de decoração

Como robots, podiam ser muito mais do que uma dupla de produtores de música de dança, por isso criaram uma narrativa e desenvolveram um conceito com tentáculos que foram do cinema aos objetos de decoração

Afinal os robots sempre tiveram sentimentos: as origens, o sucesso e o legado dos Daft Punk

Os Daft Punk acabaram. No dia em que a dupla francesa o anunciou, Isilda Sanches recorda a primeira vez que os ouviu, o efeito que tiveram sobre a eletrónica (e não só) e como a música vai continuar.

Os Daft Punk não inventaram nada e no entanto são uma das bandas mais influentes dos últimos 20 anos. Não foram os primeiros a vestir-se de robots, os Kraftwerk tinham-se assumido como tal 20 anos antes, tal como muita gente do electro funk, em particular Mandré, que já usava capacete em 1977. House, techno, disco, europop, electro boogie, garage house, toda a música de dança que eles tão bem exploraram, já existia antes, tal como existiam filmes animé e psicadélico-esotéricos (experimentaram com ambos géneros, o primeiro em Interstella 555, o segundo em Cosmorama). Até já havia uma banda sonora original para Tron (assinada por Wendy Carlos) antes de fazerem a deles, para a versão de Tron Legacy, em 2011.

Os Daft Punk não inventaram nada, mas foram tão bons na apropriação, que tudo parece novo e original depois de passar pelos seus dedos. Um toque pessoal que primeiro começou por confundir-se com o french touch, mas depois ganhou autonomia e criou descendência.

O grande feito dos Daft Punk está no nível de concetualização a que chegaram. O processo começou no segundo álbum, Discovery, quando os Daft Punk se assumiram como robots, explicando que no dia 9/09/1999, às 9h09 da manhã, enquanto trabalhavam no estúdio, o sampler explodiu, deixando-os gravemente feridos e desfigurados. Depois de cirurgia reconstrutiva, tinham acordado robots… Este foi o grande golpe dos Daft Punk. Podiam facilmente ter definhado por falta de ideias para fazer frente às expectativas criadas pelo álbum de estreia Homework, mas, ao serem máquinas, podiam agora tomar-se todas as liberdades, além de se elevarem a um outro nível, quase mitológico, de pop stars.

Thomas Bangalter of Daft Punk, Djing, Creamfields, UK, 1998 Guy Manuel Homme de Cristo of Daft Punk, Djing, Creamfields, UK, 1998

Thomas Bangalter e Guy Manuel de Homem Christo, sem farda, enquanto DJs numa edição do festival Creamfields no Reino Unido, em 1998

Universal Images Group via Getty

Como robots, podiam ser muito mais do que uma dupla de produtores de música de dança, por isso criaram uma narrativa e desenvolveram um conceito com tentáculos que foram do cinema aos objetos de decoração. Com capacete e farda, Thomas Bangalter e Guy Manuel de Homem Christo, tornaram-se mega stars, capitalizando na imagem (muito inspirada nos policias de THX 1138, o primeiro filme de George Lucas, realizado em 1971) e exercitando a sua refinada ironia para compilar memórias e comentar os tempos, ao mesmo tempo que se retiravam de cena para, literalmente, observar de fora as reações.

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Depois de 28 anos a fazerem o mundo dançar, os Daft Punk acabaram

Fizeram isso, por exemplo, quando receberam o Grammy de Àlbum do Ano, em 2014, com Random Acess Memories. Na cerimónia, enquanto os robots subiam ao palco, Thomas Bangalter e Guy Manuel de Homem Christo foram filmados entre o público, sentados na plateia a cumprimentar os robots. Mas nessa altura já quase ninguém se lembrava que eles nem sempre tinham usado capacetes, ninguém conhecia de facto os seus rostos, por isso é difícil ter certezas. Isso, obviamente, fazia parte da piada.

Com Discovery, em 2001, quando os robots assumiram a liderança, depois do techno de Detroit e da house de Chicago, os Daft Punk viraram-se para a europop e atreveram-se a usar solos xunga de guitarra, desafiando algumas convicções do underground, onde tinham as raízes, para fazerem pop dançante sem complexos. Ficaram gigantes ao som de “One More Time”, com a voz de Romanthony (um herói house) transformada pelo autotune até ao irreconhecível, e muito perto dos limites do suportável.

Tudo na música dos Daft Punk era excitante e festivo, punk feito com eletrónica, techno cáustico e divertido, house sem vergonha da repetição nem da distorção. Música feita por miúdos de 20 anos para outros miúdos de 20 anos e gente sem idade.

Pessoalmente, apesar de achar fascinante todo o universo que desenvolveram e a forma como conseguiram ser gigantes mantendo-se invisíveis, gosto mais da música dos Daft Punk quando ainda não usavam máscara e estavam apenas fascinados pelos equipamentos, pelos discos na coleção do pai de Bangalter, que tinha sido produtor de disco sound, e pela ideia de fazerem música como os heróis que enumeram em “Teachers”, uma das faixas do álbum de estreia. Gosto mais de “Revolution 909”, “Rollin & Scratchin”, ou “Around The World”, do que de “One More Time”, cuja audição inicial colidiu em mim com a memória trágica de “Believe” de Cher, provocando ondas de choque que só na última década começaram a dissipar-se. Mas não consigo não gostar de Daft Punk.

O meu primeiro contacto com a dupla foi em 1995. Na altura estava na XFM e uma das minhas incumbências era ler a imprensa internacional à procura de discos que pudéssemos depois arranjar no circuito de importação, normalmente através da Bimotor. Já havia internet, mas não tinha música nem vídeo, não era possível ouvir nada antecipadamente, por isso, sobretudo no que diz respeito a nomes novos, tínhamos que confiar no que estava escrito. Não me lembro exatamente o que dizia a primeira crítica que li a “Da Funk”, o segundo single (para mim o primeiro contacto) mas certamente era no NME porque fazia referência a uma outra crítica, no mesmo jornal, a uma anterior versão da banda, com nome Darlin, em que tinha sido usada a expressão “daft punk” para descrever o som mal amanhado.

A verdade é que o nome Daft Punk (qualquer coisa como “punk parvo”) soava bem, e, na fotografia, eles tinham ar de miúdos imberbes com atitude, o que, associado ao entusiasmo que o jornalista mostrava pelo disco, pareceu ser digno de interesse. Acho que o Nuno Carlos, que estava mais atento à música de dança e tinha muitas coisas da Soma, uma editora de techno escocesa, já tinha o primeiro single, “The New Wave”, que era techno puro e duro, mas “Da Funk” era menos escuro e martelado, mais divertido. Lembro-me que as palavras do Ricardo Saló ao ouvir “Da Funk”, que acabámos por arranjar numa compilação, foram qualquer coisa como “mas… é só samples com filtros”. Com o tempo isso revelou-se verdadeiro, mas naquele momento da história e da minha vida, não era particularmente importante. Mal conhecia Barry White, quanto mais ser capaz de identificar a bateria de “I’m Gonna Love You Just A Little Bit More”, distorcida por efeitos.

Indio, Ca– French duo Daft Punk performs at Coachella Valley Music and Arts Festival, Saturday nigh

Os Daft Punk ao vivo em 2006 (aqui em Coachella, nos EUA), na mesma digressão que passou nesse ano pelo festival Sudoeste

Los Angeles Times via Getty Imag

A curiosidade ficou, aguçada pelo facto de um deles ter apelido português. O mistério entretanto resolveu-se, mas só na era da Wikipedia. Guy Manuel de Homem Christo é bisneto de Homem Christo Filho, poeta e nacionalista, alegadamente amigo de Mussolini, e trineto de Francisco Manuel, republicano, jornalista e professor.

Durante algum tempo, os Daft Punk foram só mais um nome com uma ou duas músicas engraçadas, mas o french touch, o movimento de música de dança que estava crescer em França na segunda metade dos anos 90, feito com nomes como Dimitri From Paris, Saint Germain ou Laurent Garnier, já ocupava muito tempo de antena na XFM e tudo o que era francês era ouvido com atenção. Quando Homework, o álbum de estreia de Thomas Bangalter e Guy Manuel de Homem Christo, foi editado, estava tudo pronto para os Daft Punk tomarem conta.

A XFM fechou em agosto de 1997, pouco depois da edição de Homework, já não sentiu diretamente o efeito, mas ainda fez parte dele, lançando as primeiras sementes. Nesse ano, o processo de conversão à música de dança estava no auge, também em Portugal. As origens estavam na revolução acid house de finais dos anos 80 mas, desde o início dos anos 90, com discos como Screamadelica dos Primal Scream, Blue Lines, dos Massive Attack, dubnbasswithmyheadman dos Underworld e outros, que era consistente e, progressivamente, conquistava os adeptos de rock. 1997 foi um ano particularmente decisivo nesse aspecto, com discos como Dig Your Own Hole dos Chemical Brothers e The Fat Of The Land dos Prodigy a quebrarem os preconceitos dos rockers, habitualmente avessos a soltar-se numa pista de dança.

O efeito de Homework foi semelhante, mas era mais radical porque mergulhava mais fundo nas raízes da música de dança, fornecendo um combustível único, mistura de acid house, techno, disco, electro funk, tudo trabalhado com filtros e repetição. Não tardou muito, toda a gente fazia headbanging ao som de “Rock’n’Roll”, provavelmente porque ninguém sabia que outra coisa fazer.

Os Daft Punk não só marcaram uma época como captaram o seu espírito: na desumanização do indivíduo que avançou, não tanto para a forma robótica, mas para identidades digitais, na digitalização da música e da informação e muito particularmente na máxima “Harder Better Faster Stronger”.

Tudo na música dos Daft Punk era excitante e festivo, punk feito com eletrónica, techno cáustico e divertido, house sem vergonha da repetição nem da distorção. Música feita por miúdos de 20 anos para outros miúdos de 20 anos e gente sem idade. Mais de duas décadas depois, Homework continua um dos discos bandeira dos anos 90 e da música de dança. É de Homework, e também de Discovery, que descende a geração maximal e nu rave que manteve a França no mapa musical, já no séc XXI, com editoras como a Kitsuné ou Ed Banger (editora de Pedro Winter, que foi manager dos Daft Punk na altura do primeiro álbum), e bandas como Justice ou Boys Noize.

Não podemos dizer que os Daft Punk declaram o seu fim no pico de carreira, longe disso. Na verdade, ao longo de 28 anos, lançaram apenas 4 álbuns de originais e uma banda sonora, cultivando mais o mistério do que a actividade musical. Aliás, nada garante que este seja de facto o fim. James Murphy também anunciou o fim do LCD Soundsystem 2011 e em 2018 tinham novo álbum. Seja qual for o futuro de Thomas Bangalter e Guy Manuel de Homem Christo (não parece que seja com máscara), a sua marca na música está bem vincada.

Os Daft Punk não só marcaram uma época como captaram o seu espírito: na desumanização do indivíduo que avançou, não tanto para a forma robótica, mas para identidades digitais, na digitalização da música e da informação e muito particularmente na máxima “Harder Better Faster Stronger”, uma das canções de Discovery, que parece resumir a aceleração, urgência e todo um rol de necessidades extravagantes que parecem comandar as nossas vidas humanas.

Os robots afinal tinham sentimentos, eram “human after all”.

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