Nota: Este artigo foi originalmente publicado no dia 10 de fevereiro de 2019, a propósito dos 60 anos de Fernando Chalana. É agora recuperado no dia da sua morte.
Em 1984, a Seleção Nacional encerrava um jejum que durava há quase 20 anos: a equipa então orientada por Fernando Cabrita tinha conseguido um inédito apuramento para um Campeonato da Europa e Portugal regressava a uma grande competição de seleções 18 anos depois do Mundial de 1966 e dos magriços. O sorteio ditou que a seleção portuguesa ficasse no Grupo 2, com a RFA de Rummenigge e Völler, a Espanha de Camacho e a também estreante Roménia (que tinha László Bölöni no plantel). A vitória frente aos romenos e os empates com os espanhóis e os alemães garantiram à Seleção Nacional o segundo lugar do grupo e a qualificação para a meia-final. Domergue marcou dois golos, Jordão outros dois e Platini pôs França na final já no prolongamento — Portugal ficava pelo caminho e os franceses seriam campeões europeus ao bater Espanha no derradeiro jogo. Portugal saía do seu primeiro Europeu nas meias-finais, derrotado pela que viria a ser campeã da Europa: mas o balanço final tinha ainda mais que se lhe diga.
No onze ideal do Campeonato da Europa, escolhido pela UEFA, estavam dois jogadores portugueses: Fernando Chalana e João Pinto figuravam ao lado de nomes como Michel Platini, Jean Tigana e Rudi Völler. A equipa estreante, que nunca tinha estado num Campeonato da Europa e cujo único Mundial tinha sido duas décadas antes, tinha dois jogadores entre os onze melhores do torneio. E um deles, o rapaz de cabelo comprido e bigode farto, ombreava com Platini no estatuto de melhor jogador do Euro 1984. A enorme prestação de Chalana ao serviço da Seleção Nacional roubou-o ao Benfica logo nesse verão, voando para França e para o Bordéus — onde passou três temporadas até regressar ao clube da Luz.
Fernando Chalana, além de um símbolo do Benfica, é um símbolo da Seleção Nacional e de um período que parece agora longínquo onde Portugal era estreante num Campeonato da Europa. O pequeno extremo de 1,65 metros e cujo bigode lhe garantiu a alcunha de Astérix foi um exemplo para muitos, um ídolo para outros e um companheiro de equipa memorável para os que o consideravam “demasiado tímido para o mundo do futebol”. Este domingo, Chalana comemora 60 anos. O Observador ouviu antigos colegas, rivais e companheiros de Seleção Nacional que recordam o número dez como “o maior génio”.
Humberto Coelho: “Era um génio”
Humberto Coelho teve um percurso altamente semelhante ao de Fernando Chalana. Ainda que oito anos mais velho do que o extremo, o antigo defesa central jogou sete anos no Benfica e passou depois três temporadas no PSG, em França: à exceção de um curto ano onde fez 22 jogos pelos norte-americanos do Las Vegas Quicksilvers, Humberto Coelho fez o percurso que Chalana havia de fazer anos depois e também regressou à Luz, onde terminou a carreira em 1984. Foi nessa segunda passagem pelo Benfica que o atual vice-presidente da Federação Portuguesa de Futebol se cruzou com Chalana, que se mudou para o Belenenses precisamente na mesma altura em que Humberto Coelho pendurou as botas.
“O Chalana era um génio. Era extraordinário, era um jogador fantástico, fantástico. Tanto com um pé como com o outro, jogava com os dois pés, tinha uma visão de jogo incrível. Foi dos melhores jogadores que vi jogar e com quem joguei. Desequilibrava, era um jogador que desequilibrava”, explica ao Observador o antigo central, que coloca Chalana numa “segunda linha” de nomes maiores do futebol português, logo a seguir aos óbvios três Bola de Ouro portugueses. “Está numa segunda linha de jogadores logo depois do Eusébio, do Figo e do Ronaldo, claro. Exatamente por aquilo que fazia dentro de campo, porque era um jogador espantoso, desequilibrava muito, criava espaços. Lá está, dos melhores que vi”, acrescenta Humberto Coelho.
Nos sete anos que passaram juntos, Coelho garante que Chalana nunca criou “problema nenhum” no balneário e era até “muito tímido”. “Enquanto colega, trabalhava muito e era muito tímido. Ele enquanto pessoa é mesmo muito tímido, acho que até é demasiado tímido para o mundo do futebol. Teve ali azar na vida pessoal e familiar, no início, e isso afeta sempre e acho que afetou o rendimento dele a dada altura. Mas era um colega ótimo, não criava problemas nenhuns e estava sempre pronto a ajudar”, afirma o antigo capitão encarnado, que considera Fernando Chalana um “jogador de eleição”.
Após terminar a carreira, o antigo número 10 do Benfica permaneceu na estrutura do clube encarnado, enquanto adjunto de várias equipas da formação e também enquanto treinador interino da equipa principal, num curto período após a saída de Jose Antonio Camacho. Para Humberto Coelho, o clube “esteve bem” em manter Chalana em inúmeras equipas técnicas, principalmente perto daqueles que melhor aproveitavam aquilo que tinha para ensinar: os jovens. “Ele gostava muito dos jovens e eles gostavam muito dele. E o Benfica — e este presidente [Luís Filipe Vieira] — esteve bem aí, em ajudá-lo, em nunca o deixar sair, mantiveram-no sempre ali. Este presidente foi impecável para o Chalana e depois lucrou com isso, porque ele ensinou muito aos miúdos. Acho que o viam como um exemplo”, acrescentou o antigo central e capitão do Benfica.
Octávio Machado: pará-lo “era como a guerra”
Antes de ser treinador do Salgueiros, adjunto no FC Porto e no Sporting e treinador principal nos dois clubes e ainda diretor-geral da SAD leonina na era Jorge Jesus, Octávio Machado foi jogador dos dragões e do V. Setúbal. Enquanto médio ofensivo, jogou contra Fernando Chalana quando representava o FC Porto e mais tarde, com os sadinos, durante a primeira passagem do extremo pelo Benfica. Para Octávio, a analogia que melhor ilustra o que era para uma equipa adversária tentar parar Chalana é muito simples. “Era como a guerra. O Chalana era imprevisível, era daqueles jogadores difíceis para qualquer adversário. Era muito difícil de controlar. Quando vinha cá fora todo o seu talento era imparável. Então era como a guerra: a estratégia era não deixar que a bola chegasse ao Chalana, cortar as linhas de abastecimento, deixar o atirador isolado, deixar quem fazia a diferença isolado e cortar todas as hipóteses de ele ter acesso à possibilidade de mostrar todo o seu talento”, explica o antigo jogador, internacional pela Seleção Nacional em 20 ocasiões.
Para Octávio, Chalana “marcou uma época” no futebol português e sempre foi dentro de campo exatamente aquilo que é fora das quatro das linhas: “Uma pessoa alegre”. “Tinha essa alegria dentro e fora do campo. Dava-lhe gozo jogar, divertia-se a jogar. O Chalana foi um dos grandes talentos do futebol nacional”, acrescenta o agora comentador televisivo que, tal como Humberto Coelho, coloca o antigo extremo “num patamar onde está Paulo Futre, onde está Rui Costa” — logo a seguir aos inevitáveis Eusébio, Figo e Ronaldo.
O ex-jogador do FC Porto e do V. Setúbal deixa ainda um conselho aos jovens jogadores que queiram vingar no futebol português: “Agarrem em cassetes. Agarrem no Europeu de 1984. Agarrem em cassetes do Chalana e aprendam. Aprendam com ele. É um exemplo para os mais novos se quiserem conhecer alguém que sabia o que era ser controlar, condutor e desequilibrador. Muito bom nas posições e no passe. Aprendam com isso”.
Domingos Paciência: com Futre, Chalana “tinha o melhor pé esquerdo português de sempre”
Domingos Paciência e Fernando Chalana encontraram-se em sentidos contrários. Estava o jovem avançado a começar a despontar no FC Porto, vindo dos juniores dos “dragões”, quando Chalana já não caminhava para novo. Ainda coincidiram em cinco épocas, mas já o “pequeno génio” jogava apenas uma dúzia de partidas por temporada. Estas circunstâncias não ajudaram à memória de Domingos: “Olhe, sinceramente não me lembro se cheguei a jogar contra ele! Mas também não preciso disso para falar sobre o Chalana”, disse-nos ao telefone. Nós concordamos, mas o Observador fez o trabalho de casa e lá fomos ao baú: os dois defrontaram-se em campo apenas uma vez, a 16 de setembro de 1990. O resultado sorriu ao FC Porto de Domingos: 1-0 e… com golo do avançado português. No outro lado, Fernando Chalana saiu ao minuto 58′ e com outra particularidade. Também jogava de azul, o do Belenenses.
Mas como nos disse Domingos, a memória de um jogo contra Chalana não era obrigatória para se lembrar bem dele. Afinal de contas, como esquecer aquele que foi um ídolo para a sua geração? “Ele era um ídolo para todos nós. Eu era miúdo, tinha uns 10 anos, e mesmo sendo do rival já apreciava as suas qualidades. Toda a gente gostava da ‘super-equipa’ do Chalana, em cada jogada ele levantava o estádio”, diz o antigo avançado.
Mas para além do jogo de cintura e da qualidade que Chalana tinha nos pés, havia algo que também atraía os jovens, incluindo Domingos: a posição. “Ele jogava numa posição em que toda a gente gostava de jogar. Os jovens queriam todos ser extremos-esquerdos, também um pouco por causa dele. Dele e do Futre. Naquela posição eram as maiores referências. Excluindo aqui o Cristiano, que é bom jogador por outras qualidades, o Futre e o Chalana têm os melhores pés esquerdos de sempre”.
As qualidades do “pequeno genial” não ficam, contudo, presas num dos seus pés. Tal como os restantes entrevistados, Domingos não foge à regra. Para ele, Chalana era um craque não só dentro do campo: “Não passei muito tempo com ele fora do relvado, mas no tempo que passei, já como treinador, sempre o vi como uma personalidade muito tranquila, super calma, muito humilde e de trato afável”. Uma prova de classe de quem foi colega como jogador e treinador.
Augusto Inácio: “Se jogasse agora, estaria num gigante europeu!”
Augusto Inácio poderia ser muito bem o derradeiro adversário de Chalana: um era lateral, o outro era extremo; um jogou no FC Porto e no Sporting, o outro no Benfica. Uma rivalidade perfeita que foi posta em campo por várias vezes. “Sei que defrontei esse pequeno génio algumas vezes. Não sei quantas, mas foram várias”. Entre os três grandes, foram treze. Enquanto esteve no Benfica, Chalana defrontou Inácio por 13 vezes enquanto este jogava pelos outros dois rivais. No final, “Chalanix” levou a melhor, com sete vitórias contra uma do defesa. Em golos foi mais renhido, com o benfiquista a marcar dois tentos em jogos frente a Inácio, e, ao contrário, o defesa a marcar um golo. Uma rivalidade que era sempre posta de lado fora do campo, ou na Seleção Nacional.
“Como pessoa é excelente, só tenho coisas boas a dizer. Foi um bom companheiro e acima de tudo um bom amigo, quando joguei com ele na Seleção”, diz Inácio. Uma pessoa amistosa e que era o oposto ao que mostrava no relvado quando estava fora dele: “Na altura era uma pessoa muito tímida, muito calada, sempre no seu cantinho. Até o sentido de humor era reservado. Mas notava-se que era uma pessoa que se queria dar bem com toda a gente e que nunca criava confusões. Por isso é que toda a gente gostava muito do Chalana”.
A admiração de Augusto Inácio pelo amigo não fica por aqui. Apesar de ter jogado nos rivais, não há dificuldade nenhuma em reconhecer as qualidades do antigo adversário. Aliás, nem foi preciso pedirmos licença ao atual treinador do CD Aves para nos falar do “pequeno genial”: “Espera lá, espera lá, primeiro há que ver aqui uma coisa. Quem era o Chalana? Sabes quem era? Era um grande génio! Um grande jogador, de classe internacional! Era desconcertante, fintava para dentro, para fora, com uma finta de corpo muito boa. Era daqueles jogadores que tinham de ser marcados muito em cima, porque se ele se virasse de frente para o defesa, marcava a diferença”.
Para o treinador, a qualidade de Chalana era tal, que, se jogasse agora, estaria no topo do futebol. “Não tenho a menor dúvida de que se jogasse agora estaria no Top 5 ou Top 10 do futebol mundial. Mas é que não tenho dúvidas nenhumas. Um jogador que jogava como ele era dos melhores fosse nesta geração ou noutra qualquer. Aliás, até acho que se ele jogasse agora ainda seria melhor”, disse Augusto Inácio.
Não se sabe e nunca se saberá quanto valeria Chalana nos tempos de hoje. O certo é que, ao serviço dos Girondins de Bordéus, a sua única aventura no estrangeiro, o “Canhotinho”, como também era chamado, recebia cerca de 210 contos — pouco mais de 1000€ — por cada minuto que fez nos relvados franceses. A sua transferência para os gauleses, diz-se, terá mesmo sido preponderante para o Benfica ter construído o famoso “terceiro anel” da Luz.
Nuno Gomes: “Ele parecia mais um colega nosso do que nosso treinador”
Nuno Gomes é dos poucos que jogadores que teve a sorte — ou, dadas as circunstâncias, o azar — de ser treinado por Fernando Chalana. Estávamos na época 2007/2008. Março, reta final da temporada. Depois do empate a dois na Luz frente ao União de Leiria, José António Camacho demite-se. O novo desafio era quem escolher para assumir a equipa nos dois meses restantes de competição, ainda com os oitavos-de-final da antiga Taça UEFA e uma meia-final da Taça de Portugal pela frente. O escolhido foi o então adjunto Fernando Chalana. Os resultados não foram os melhores: a Taça UEFA acabou pelas mãos do Getafe, na Taça de Portugal o Benfica foi goleado pelo Sporting no histórico 5-3 de Alvalade, e no campeonato, as águias acabaram em 4º lugar, fora da Liga dos Campeões. Mas nem isso mancha os bons momentos que Nuno e a equipa passaram com o treinador Chalana, que se esforçou ao máximo para inverter as coisas.
“O Chalana mais parecia um colega nosso do que o nosso treinador. Sentiamo-nos à vontade e percebíamos que quem estava ali à nossa frente tinha sido um excelente jogador de futebol. A experiência dele ajudava-nos a ultrapassar esse momento mais conturbado que estávamos a viver, com muita falta de confiança. No fundo era alguém que falava a nossa linguagem”, recorda Nuno Gomes.
As próprias caraterísticas da personalidade da “Chalanix” ajudavam, diz Nuno, a recuperar a felicidade que tanto faltava ao plantel do Benfica na altura, mesmo que os resultados não fossem aparecendo: “Estava sempre bem-disposto. Lembro-me de que muitas vezes, no início do treino, ele vinha jogar connosco ao ‘meiinho’, à ‘rabia’. E notava-se que aquele pé esquerdo continuava intacto! Era sempre difícil ele perder a bola e era uma festa quando dava uma ‘cueca’ a algum de nós. Nisso era exímio. E esses momentos ajudaram-nos a recuperar a alegria, na altura, sem dúvida”.
Altura que já passou e que deu lugar a outros tempos. Chalana acabou por sair no final da época e integrar, na temporada seguinte, a equipa técnica de Quique Flores. Depois disso, e mais recentemente, teve paragens por várias equipas técnicas dos escalões mais jovens do Benfica, no Caixa Futebol Campus, no Seixal. Nuno Gomes foi diretor do centro de formação do Benfica durante dois anos e garante que enquanto lá esteve, e por mais que passassem os anos, Chalana não era esquecido: “Havia jovens que nunca tinham visto o mister Chalana jogar, mas ele passava imenso tempo no Seixal, era impossível não terem contacto com ele. E a equipa técnica a que ele pertencia também não deixava que os miúdos não o conhecessem. Havia um ritual, todos os anos, que era mostrar aos jogadores mais novos, na sua apresentação, um vídeo do Chalana, para perceberem a dimensão de quem os ia treinar”.
E eles percebiam. Até porque o Benfica também é um pedaço de Fernando Chalana, passem 20, 40 ou 60 anos. “Ele ama o futebol, mas, principalmente, ama o Benfica. Foi das pessoas que melhor me passou aquilo que é ser benfiquista e ser jogador do Benfica”.
Os números de um génio que só foi travado pelas lesões
Jogos: 387
Golos: 52
Épocas realizadas como sénior: 17 (de 1975/1976 até 1991/1992)
Títulos: 17 (13 em Portugal, 4 em França)
Clubes que representou: 5 (Barreirense, Benfica, Bordéus, Belenenses e Estrela da Amadora)
Internacionalizações: 27 (com 2 golos)
Altura: 1.65 cm