Reportagem em Frackville e Pottsville, Pensilvânia (EUA)
William Raibeck tinha razão. E, agora, depois de um ano e meio a ouvir que Donald Trump não tinha hipóteses, está radiante por poder esfregar na cara de todos os que discordavam dele. Agora, o magnata nova-iorquino vai mesmo ser o 45º Presidente dos EUA. “Ah, ah! Esses filhos da mãe diziam que todos que ele não ganhava, nem as primárias nem nada, mas eu sempre acreditei nele”, garante este engenheiro reformado de 67 anos, sentado ao lado da mulher, Mary.
“Sinto-me lindamente” reforça. “Estou muito contente por ele ter feito essa gente toda passar por parva”, diz, num lote que vai “desde os liberais até a algumas cabeças de alfinete do Partido Republicano”.
William vive em Frackville, uma vila no interior na Pensilvânia, um estado que desde 1992 pertencia ao Partido Democrata e que Donald Trump venceu com 1,2% de vantagem sobre Hillary Clinton. Foi com esta viragem, a par da inesperada vitória de Donald Trump no Michigan e no Wisconsin, que a “muralha azul” dos democratas ruiu aos pés do candidato republicano.
O condado de Schuylkill, onde William vive, foi aquele que registou a maior variação de votos em relação às eleições anteriores. Em 2012, Mitt Romney venceu Barack Obama naquele condado por 13,4% dos votos — confirmando a vantagem que os conservadores têm naquele condado. Só que, no dia 8 de novembro, Donald Trump conseguiu uns incríveis 70% naquele condado e Hillary Clinton ficou com apenas 26,7%. Ou seja, conseguiu uma vantagem de 43,4% dos votos — para lá do triplo de 2012.
Perante estes números, William ri uma, duas, três vezes. E quantas mais forem precisas. “Eu sempre disse que os tipos das sondagens estavam inclinados para o lado dos republicanos”, diz. “Para mim, as sondagens são uma fachada completa, não servem para nada e os media usam-nas para fazer propaganda”, queixa-se. Segundo o site FiveThirtyEight, que foi reunindo e avaliando as sondagens mais relevantes destas eleições, Hillary Clinton surgia com 3,7% de vantagem neste estado que tem sido dos que mais tem sofrido com a desindustrialização do manufacturing belt (cintura industrial) que hoje é só rust belt (cintura da ferrugem). Entre as últimas 20 sondagens realizadas na Pensilvânia, apenas uma previa uma vitória de Donald Trump.
“Ninguém sabe para quem é que eles ligam, provavelmente vão às listas dos que estão registados no Partido Democrata e ligam-lhes um a um”, aventa. “Eu não conheço ninguém que tenha recebido uma chamada de uma empresa de sondagens”, diz. Logo a seguir, a sua mulher salta do silêncio daquele lado do sofá e diz-lhe: “Conheces sim, porque eles ligaram-me”. “Ah, foi?”, pergunta-lhe surpreendido. “Então foi porque se enganaram.”
William e a Mary sempre votaram no Partido Republicano e, a não ser que aconteça alguma tragédia, sempre votarão. “Cá em casa somos conservadores”, assegura William. São contra o aborto, não querem um sistema de saúde universal, acreditam que os imigrantes ilegais devem ser todos deportados, querem um muro na fronteira com o México, opõem-se a qualquer controlo das armas e não aceitam que duas pessoas do mesmo sexo se possam casar. Um pouco por tudo isto, detestam Barack Obama e o seu legado — e a última coisa que queriam era que este fosse prolongado por Hillary Clinton.
Para Mary, nunca houve um Presidente tão fracturante como Barack Obama. “Ele veio com aquelas coisas dos gays e dos negros… Ele dividiu este país ao meio, preto e branco de cada lado”, garante. “Antes dele nada era assim, nós não queríamos saber se uma pessoa era branca, preta, amarela, vermelha, cor-de-rosa… Não se falava disso.”
Mary tem 65 anos e está reformada, depois de ter trabalhado grande parte da sua vida como enfermeira. No seu local de trabalho, garante, falar de política era proibido — pelo menos para ela. “Porque tenho estas opiniões”, justifica. “O resto dos meus colegas eram quase todos liberais ou dos sindicatos, por isso se me ouvissem a falar das coisas que eu defendo olhavam-me logo de lado.”
William diz que, tal como “milhões de pessoas”, a sua mulher foi vítima da “ditadura do politicamente correto”, que aos poucos foi “silenciando” todos os que pensam da sua maneira até ao ponto de serem esquecidos “por aqueles que estão no poder”. “Eles esqueceram-se das pessoas normais, da gente comum, durante oito anos não quiseram saber de ninguém que não apoiasse os políticos liberais e as grandes empresas que lucram com eles”, diz.
É aqui que aparece Donald Trump. Depois de umas eleições primárias do Partido Republicano em que derrotou 16 adversários, deixou uma promessa clara a William, Mary e a todos que partilham as suas ideias no discurso de aceitação da nomeação para candidato às presidenciais: “Eu sou a vossa voz”.
Agora que Donald Trump ganhou as presidenciais, também eles se sentem à vontade para usarem as suas vozes. “Acabou-se o politicamente correto, agora somos um país livre”, reage William. “Isso não é bem assim”, corrige-o Mary, contando o caso de um dos seus filhos, que é engenheiro aeronáutico na Califórnia. “Ele está farto de levar nas orelhas lá, porque disse que votou no Trump”, queixa-se. “Dizem que é racista, que é isto, que é aquilo…”
A “mudança” de Trump depois da “mudança” de Obama
Pouco tempo depois de os resultados serem conhecidos, começou a circular um meme nas redes sociais onde aparecia o mapa dos EUA e todos os seus condados — a azul, os poucos onde venceu Hillary Clinton; a vermelho os muitos onde Donald Trump saiu por cima. Com o mapa a demonstrar a enorme extensão geográfica da vitória republicana (nem tanto demográfica, uma vez que as grandes cidades votaram em Hillary Clinton, que até teve mais votos no total), a imagem dizia: “Trump tem melhor cobertura do que a [empresa de telecomunicações] Verizon. Agora já nos ouvem?”.
Sentada ao balcão do Wooden Keg Tavern, um bar em Pottsville, a maior cidade do condado de Schuylkill, Jen Andruchek também tem uma piada sobre estas eleições e telemóveis — em particular os telemóveis conhecidos como Obamaphones. Todos os anos, o Estado norte-americano gasta cerca de 2 mil milhões de dólares ao disponibilizar gratuitamente telefones com tarifários pagos destinados a quem receba outros tipos de ajuda do Estado. O programa começou no tempo dos telefones com Reagan, Clinton continuou-o e Obama alargou-o aos telemóveis. “Vi no Facebook uma imagem do Obama a segurar um telefone, a queixar-se da rede. ‘Estou? Estou?!’”, conta Jen, a rir. Do outro lado da montagem, aparecia Donald Trump a rir, como se tivesse deitado abaixo um torre de telecomunicações.
Jen, que é professora de crianças com necessidades especiais, gosta bastante de telemóveis. “Sei tudo sobre os iPhones”, gaba-se. E sempre que não sabe algo, seja sobre iPhones ou sobre a vida em geral, carrega no botão do seu telemóvel e pergunta diretamente à Siri. “Siri, qual é o condado de Scranton, na Pensilvânia”, pergunta. “Lackawanna”, responde-lhe a máquina, dando-lhe o nome de um dos poucos condados onde Hillary Clinton ganhou naquele estado. “É isso, é”, responde-lhe, acenando com a cabeça em sinal de aprovação.
Aprovação maior foi quando, duas semanas antes das eleições, recebeu uma mensagem do marido, Eric. Quando saiu do trabalho, em vez dizer-lhe simplesmente que estava a voltar para casa, escreveu: “Babe, I’m coming home… All aboard the Trump train!”. Que é como quem diz “amor, estou a caminho de casa… a bordo do comboio do Trump!”. Jen, que sempre votou no Partido Republicano, ficou aliviada e feliz por saber que o marido ia juntar-se-lhe.
Eric, que está sentado ao balcão mesmo ao lado da mulher, ri-se quando ela conta esta história. Aos 45 anos, este operador de máquinas pesadas na construção civil e bombeiro voluntário, não só votou quase sempre no Partido Democrata como está registado nele — Jen também, mas apenas porque lhe disseram que seria mais fácil arranjar emprego assim. A última vez que Eric votou foi em 2008, quando Barack Obama prometeu “mudança”. Em 2012, absteve-se. “Não gostava mais do Obama mas também não achava que o Romney ia meter os americanos a trabalhar, quando ele despediu tantos americanos.” E em 2016 votou em Donald Trump. Porquê? “Porque quero mudança.” Oito anos depois da mudança, Eric quer a mudança depois da mudança.
“Eu quero mudança e nunca achei que a Hillary Clinton fosse capaz de trazer mudança, ela apenas queria continuar tudo o que tem sido feito até agora”, diz. Para Eric, é essencial mudar o sistema de seguros conhecido por Obamacare, criticado por ser demasiado burocrático e que levou as seguradoras a aumentarem os preços. Além disso, gostava de ver uma maior regulação do comércio internacional. “Eu era camionista numa empresa de têxtil na altura em que o Bill Clinton aprovou o NAFTA e nós desaparecemos do mapa assim que aquilo começou”, garante, sem deixar espaço para dúvidas.
Mas, acima de tudo, Eric gostava de uma “mudança de cultura”. “As pessoas têm de trabalhar, meu”, diz, com a mulher a interrompê-lo. Estão os dois a beber Yuengling, da cervejeira de Pottsville, que é a mais antiga do país e que no final de outubro recebeu a visita de um dos filhos de Donald Trump. “A única coisa que o Obama fez pelas pessoas foi dar-lhes o luxo de poderem ser umas falhadas e não terem de fazer pelas suas vidas”, acusa. “E há muitas mulheres e pessoas de certas minorias que adoram isso nele e queriam que a Hillary Clinton fizesse o mesmo por eles”, diz, afunilando ainda mais o caso das mulheres e do seu apoio a Hillary Clinton. “Muitas delas apoiaram-na só porque é mulher”, garante. “Mas eu acho que nós não devemos ter uma mulher Presidente, não me parece boa ideia. Todas as mulheres que tive como chefes eram umas cabras e todos os homens que foram meus chefes foram impecáveis.”
Ainda mais do que as “mulheres e pessoas de certas minorias”, os dois queixam-se das gerações mais jovens — precisamente aquelas que votaram em maiores números a favor de Hillary Clinton e que estão agora a sair às ruas a gritar “ele não é o meu Presidente!” em frente à Trump Tower, em Nova Iorque.
Donald Trump, Barack Obama e o Anticristo
“Esta geração é tão preguiçosa…”, murmura Eric, quase abafado pela banda que ao fundo do bar se atira à Sweet Caroline, de Neil Diamond. Jen completa-lhe novamente o raciocínio: “Eles querem que tudo seja fácil, querem tudo aqui e agora, mas ao mesmo tempo não têm nenhum ética de trabalho, não sabem fazer nada nem respeitam ninguém”. Jen escusa-se a dizer qual é a sua idade, mas já está distante dos “jovens”. Por isso, não tem problemas nenhuns em dizer que “eles estão a destruir este país”.
“Vou dar um exemplo”, inicia Eric, que começa por dizer que é chefe dos bombeiros voluntários de Pottsville. “Noutro dia fomos chamados de emergência para um sítio aqui perto por causa de um rapaz que se tinha encharcado de drogas”, diz. “Quando chegámos lá, ele estava em overdose. Nós não podemos agir nesses casos, isso é com a polícia. Então chamámos a polícia, eles apareceram logo e eles deram-lhe NARCAN”, conta, referindo-se ao pó inalável que ressuscita as pessoas em caso de overdose. “Quando o rapaz se levantou, o polícia, que é meu amigo, disse-lhe: ‘Tens muita sorte por teres uma segunda oportunidade na vida’. E sabes o que é que o miúdo respondeu? Virou-se para o meu amigo e disse: ‘Pfff, esta é a minha terceira vez'”.
“Nós não éramos assim”, diz Eric, repetindo a frase que todas as gerações mais dizem sobre aqueles que vieram depois delas, e procurando a aprovação da mulher. “Não, nem pensar, nunca fomos assim”, responde-lhe. Segundo um estudo da University of Pittsburgh Graduate School of Public Health, as mortes por overdose na Pensilvânia aumentaram 14 vezes entre 1979 e 2014. E em 2015, o número subiu para 3 383, mais 23,4% do que no ano anterior.
Já com um novo pint de Yuengling pela frente, Jen diz que acredita que Donald Trump poderá ter a chave para muitos destes problemas. “Ele é um empresário de sucesso e se chegou onde está hoje é porque tem uma ética de trabalho enorme”, diz. Agora é a vez de Eric acrescentar às palavras da mulher as suas: “Ele é um bilionário, tem um negócio enorme, e este país precisa de ser gerido como um negócio. E, se assim for, ele não vai permitir este tipo de comportamentos a ninguém”.
Isto, claro, são tudo promessas de Donald Trump e aquilo que os seus eleitores fazem delas. Mas estarão eles preparados para, um dia, descobrirem que também Donald Trump não irá cumprir tudo o que prometeu, mesmo que acabe uma a cada três frases com “acreditem em mim”?
Para Eric, isso é possível. “Eu já fui enganado pelo Obama, portanto também é possível que seja enganado por Trump”, avança. “Mas pior do que isto é impossível, portanto ele tem muito por onde melhorar, mesmo que não cumpra tudo”, diz. “Mas a verdade é que, neste momento, nós não fazemos ideia do que é que ele vai fazer.”
Atualmente, Donald Trump tem uma equipa com alguns dos seus aliados mais reputados para estudarem a transição de poder, que será consumada a 21 de janeiro de 2017. Na sexta-feira, em entrevista ao Wall Street Journal, ao contrário do que disse durante a campanha, disse que ia manter algumas alíneas do Obamacare e arrepiou caminho na ideia de nomear um procurador para investigar o caso do uso de um e-mail privado por parte de Hillary Clinton durante os seus quatro anos como Secretária de Estado.
Já William tem mais certezas. “Eu acho que ele nunca me vai desiludir”, garante. “O Trump tem tomates e tem dinheiro, não deve favores a ninguém neste mundo nem precisa de dar graça aos grandes interesses”, explica. “Eu acredito mesmo que ele pode ser difícil. Eu acredito em milagres.”
De novo, Mary torna a sair do seu silêncio e termina: “Ele até pode ser o Anticristo, mas pelo menos não é Obama”.