A noite ainda está cerrada e a Estrada Nacional 4 é iluminada pelos pirilampos dos tratores estacionados no Varchotel, em Elvas. São cinco da manhã, hora para que estava marcado o encontro, e começa a ouvir-se algum burburinho dos agricultores alentejanos que se cumprimentam e partilham informações sobre de onde vieram para ali chegar. A maioria mora a poucos quilómetros, mas muitos confessam ter feito uma longa viagem até ali, às portas da cidade alentejana, a pouco mais de uma dúzia de quilómetros da fronteira com Espanha. David Rosado foi um deles.
Se, para alguns, o dia começou apenas às 5h30 – hora a que o grupo já reunia algumas centenas de pessoas e em que chegaram os 150 tratores e 100 carrinhas que iam participar marcha lenta até à fronteira do Caia —, o do agricultor de Arraiolos começou bem mais cedo. “De Évora até aqui ainda são três horas de viagem com o trator. Saí de casa por volta das 2h30. Nem dormi“, confessa ao Observador, enquanto está ao volante.
Apesar de ter passado a noite ao volante do trator do patrão, que pediu emprestado por, pelo menos, dois dias, para estar presente na manifestação que prometia parar o país, David Rosado traz apenas boa disposição e vontade de lutar. “Temos de fazer força. Eles [Governo] não podem continuar a brincar connosco”, garante.
Na profissão há 30 anos, David Rosado veio preparado para uma estada um pouco mais demorada: preparou uma muda de roupa e, depois, iniciou a longa e lenta marcha em direção à fronteira com Espanha. No trator, assim como centenas de outros que rumam pela EN4, leva uma bandeira de Portugal que vai começando a ser iluminada pelo sol à medida que as horas vão passando e o número de manifestantes vai crescendo, até atingir alguns milhares. Não se ouve o hino nacional — que tem marcado vários protestos, nomeadamente o dos polícias, em todo o país —, mas evoca-se a pátria. “O mundo rural morre com Portugal”, pode ler-se num dos cartazes expostos nas máquinas agrícolas.
Os agricultores continuam a fazer-se ouvir pelas estradas de Elvas até à fronteira. Na A6, vários levam as carrinhas e às primeiras horas da manhã já tinham bloqueado o trânsito em ambos os sentidos. Os colegas com tratores, impedidos de avançar pela via rápida — e depois de terem garantido que o protesto, ainda que tivesse intenção de provocar constrangimentos, seria pacífico — são obrigados a escolher as vias secundárias e a desviar-se das forças de segurança, que impedem a passagem em vários pontos da região. Chegados à última rotunda antes de Espanha, têm a sensação de dever cumprido e festejam-na com algumas cervejas e bifes grelhados. Mas prometem não ficar por aqui.
Bloquearam estradas e fecharam fronteiras. As imagens dos protestos de agricultores portugueses
“Vamos entrar por Lisboa adentro, se o Governo não agir”
“Se o Governo não agir, vamos a caminho de Lisboa. Não digo esta semana, mas na próxima”, garante David Rosado, acrescentando que em Arraiolos já vários estão mobilizados para esse efeito.
O agricultor admite que está disposto a pedir novamente um trator emprestado ao patrão para ir para a capital. Mas dessa vez já não viajará ao volante da máquina que trouxe para a manifestação desta quinta-feira — um protesto que se multiplicou por vários pontos do país e que parou o trânsito em Santarém (onde a ponte da Chamusca esteve parcialmente cortada), Bragança (onde a fronteira da Bemposta ficou condicionada) e na Guarda (onde a A25 esteve bloqueada com um concentração de 200 tratores).
“Vou levar um trator bem maior que este. E não vou ser o único. Devem ir uns sete ou oito mil tratores”, garante. “Vamos entrar por Lisboa adentro. Vamos invadir as pontes 25 de abril e Vasco da Gama!”
David Rosado alerta que o número de tratores não será a única diferença entre este o protesto planeado para Lisboa. “Se tiver de acontecer, vamos para lá com outra raiva. Vamos levá-los à frente e já vai ser a doer”, assegura.
O agricultor não é o único a pensar no futuro do protesto. Apesar de haver muitos a dizer que ficam “aqui as noites que forem necessárias”, já há outros a pensar fazer as malas e rumar para Lisboa. “É a capital do país. Se não conseguirmos atingir o objetivo fora da capital, poderá ser sempre um objetivo final para conseguirmos reivindicar de uma forma mais próxima aquilo que é nosso por direito”, adianta ao Observador António Saldanha, um dos dinamizadores do Movimento Civil Agricultores de Portugal, uma iniciativa que se apresenta como “espontânea e apartidária”.
Apesar de não confirmar que esteja a ser planeada uma manifestação em Lisboa, o agricultor, que é cumprimentado por várias pessoas quando à chegada à concentração perto da fronteira, afirma que essa “possibilidade está sempre a ser pensada”. Ainda mais quando as respostas do Governo são insuficientes para as exigências pedidas.
Protestos dos Agricultores. “Nós não queremos chatear as pessoas”
Governo prometeu pacote de 440 milhões, mas “promessas não alimentam as mesas dos portugueses”
Ainda é cedo para falar do verdadeiro impacto da manifestação dos agricultores, com a paralisação de várias estradas. Apesar das dezenas de camiões de transporte de mercadorias estacionados em plena via (e com os condutores pacientemente encostados aos rails, depois de terem sido aconselhados pelos patrões a ter calma e a aguardar) e da presença de vários grupos que conversam tranquilamente no meio da autoestrada, ainda não é possível quantificar a verdadeira dimensão do protesto que fechou fronteiras de norte a sul. Mas já há sinais de que a manifestação gerou reações.
“Já tivemos respostas do Governo, que inclusivamente na quarta-feira prometeu medidas. Mas não passa disso: promessas. E as promessas não alimentam as mesas das casas dos portugueses“, afirma António Saldanha.
Após terem sido anunciados os protestos dos agricultores, criados a partir de grupos de WhatsApp, a ministra da Agricultura, Maria do Céu Antunes, anunciou um “Pacote de Apoio ao Rendimento dos Agricultores”, no valor de 440 milhões de euros. Este inclui apoios para mitigar os efeitos da seca, com medidas para apoiar a produção, de 200 milhões de euros, e a criação de uma linha de crédito a juro zero, de 50 milhões de euros.
“Quer dizer, antes não havia, e agora já há. É tudo muito estranho”, confessa ao Observador Miguel Trindade Henriques, agricultor de Portalegre que, tal como David Rosado, se levantou às 2h30 para fazer o caminho até Elvas ao volante do trator.
Mas não é só a rapidez da reação — e a súbita disponibilidade de verbas — que os agricultores consideram “estranha”. Depois da “gota de água”, com o atraso no pagamento dos apoios, que só chegaram na semana passada, e os cortes de 25% a 35%, os profissionais não entendem como é que essas promessas do Governo são apresentadas sem qualquer data para avançar.
Esta quinta-feira, quando questionada sobre os protestos, a ministra da Agricultura disse que não havia qualquer previsão de data e que, em primeiro lugar, teria de notificar a Comissão Europeia, sendo que a resposta podia demorar ainda dois meses. Além disso, Maria do Céu Antunes admitiu que os agricultores estão a passar por “momentos difíceis”. Miguel Trindade Henriques parece cético com a solidariedade manifestada pela responsável da área. “A ministra da Agricultura quer acabar com a agricultura”, afirma o agricultor.
“É pena que os polícias não se tenham juntado a nós”
O agricultor de Portalegre é da opinião de que o protesto “já deu o que tinha a dar” e que bastava um dia para fazer efeito. No entanto, não afasta a possibilidade de pernoitar junto à fronteira com Espanha.
“Só vou embora quando for obrigado a isso. Tenho família, uma criação de bovinos para alimentar e dava-me jeito estar lá, mas se o protesto continuar fico por aqui”, assegura o agricultor, que assumiu o negócio do pai há cerca de 17 anos. E não foi o único herdeiro de um sonho a marcar presença na manifestação.
Protestos. “Agricultores não desmobilizam sem uma resposta do Governo”
José Luís seguiu as pisadas do avô na lide dos olivais. O jovem agricultor, que lidera a marcha de carros que corta o trânsito nas estradas de Elvas, só tem um lamento: “É pena que os polícias não se tenham juntado a nós“, confessa ao Observador, após cumprimentar um militar da Guarda Nacional Republicana (GNR), que se encontrava a bloquear uma rotunda. “Eles não estão contra nós, mas, se se tivessem juntado, fazíamos ainda mais barulho.”
O jovem, natural de Elvas, foi um dos dinamizadores do protesto, mas admite que começou por pensar que a marcha lenta nunca aconteceria. “Falei com uma amiga e ela sugeriu a ideia. E eu disse logo que ninguém ia ter coragem de o fazer. Ela perguntou-me: ‘Se eu começar, tu acompanhas?’. E eu disse que sim’“.
E não foi o único. O que começou com um pequeno grupo de WhatsApp, com apenas 100 participantes, transformou-se em 15 grupos diferentes em apenas dois dias. Quatro dias depois, essa “coragem” parou autoestradas em todo o país e impediu a circulação de centenas de viaturas durante boa parte do dia.
No entanto, e apesar das promessas de alguns de que só iam embora depois de terem respostas “decentes” do Governo, o dia ainda estava longe de terminar quando alguns agricultores começaram a desmobilizar, depois de perceberem que a circulação entre os dois lados da fronteira estava a regressar à normalidade.
Alguns dos camiões de mercadorias que estavam parados desde manhã foram autorizados pela GNR a passar a fronteira do Caia. Outros foram conseguindo chegar a Espanha através de uma estrada secundária. Confrontados com a falta de eficácia do protesto, os agricultores eram tomados pelos pelo desânimo e começavam a pensar voltar para trás. “Para isto, não valia a pena termos vindo”, desabafa um dos manifestantes ao Observador. “Se já estão a deixar passar toda a gente, mais vale irmos embora.”
A veia inorgânica do protesto vem ao de cima nesse momento. Apesar do pessimismo de uns, que se preparam para dar o protesto por concluído, outros garantem estar firmes na linha da frente, decididos a não deixar ninguém passar por ali. Esses, os que se mantêm decididos, prometem continuar por ali até o que o Governo “pague o que deve”.